Jaz aqui, na pequena praia
extrema,
o Capitão do Fim. Dobrado o
Assombro,
o mar é o mesmo: já ninguém
o tema!
Atlas, mostra alto o mundo
no seu ombro.
Fernando Pessoa, in ‘Mensagem’
«Fora convocado juntamente com o irmão Diogo e o capitão Infante, aos
sete dias do mês de Maio do ano da graça do Senhor de mil quatrocentos e oitenta e sete, às casas de Santarém onde el-rei
pousava aquando de uma das suas costumeiras andanças por desvairados lugares do
reino a fim de conhecer o que se passava sob a sua governação e dar remédio aos
males do povo, premiando os bons servidores e castigando os venais. A roda da
fortuna girara de novo na sua vida, desta vez em seu benefício, ao provocar a queda
de Diogo Cão das boas graças de João II, por não ter descoberto o
cabo de África, ao contrário do que afirmara. Do mesmo modo como, no regresso
da sua primeira viagem, havia cumulado o navegador de benesses pela falsa
descoberta, contemplando-o com dez mil reais brancos e um brasão de armas,
el-rei não hesitara agora, provado o seu erro, em correr com ele para sempre da
corte como se fora um cão raivoso.
O moto do Príncipe Perfeito era Por
tua Lei e por tua Grei, a sua divisa um pelicano ferindo o próprio
peito para alimentar com o seu sangue os filhos no ninho e, como homem e
cavaleiro, exigia de si tanto ou mais do que pedia aos seus servidores,
raramente desculpando erros ou traições. Assim, ainda no auge da fúria, el-rei
atentara nele, que, com outros capitães, assistia, aturdido, à penosa cena de
humilhação do valoroso navegador, e encarregara-o de prosseguir a malograda viagem
e descobrir por fim a passagem do Atlântico para o Índico. A convocação desse
dia seria seguramente para el-rei lhes dar o seu regimento e últimas
instruções. Sua Alteza estava a comer, numa mesa armada sobre um estrado alcatifado,
tendo de pé a seu lado o cunhado, que se mantinha em silêncio, com o olhar sem
vida dos seus olhos verdes quase brancos pairando por sobre as cabeças dos
assistentes, fitando alhures. Diziam as más-línguas da corte que el-rei o
queria sempre por perto para o ter mais vigiado, não fosse o dissimulado duque
de Beja e de Viseu pretender vingar a morte do irmão mais velho e urdir uma
nova conspiração para o assassinar.
Não deteve o pensamento muito tempo nestes mexericos cortesãos, pois o
seu espírito estava prenhe de outros cuidados e ambições mais terrenas, ardendo
em ânsias de receber finalmente a tão esperada ordem de partida. Inquietou-o
uma assistência tão numerosa, entre emissários estrangeiros, astrónomos,
pilotos, capitães e cortesãos, mas também de espiões como Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva. El-rei comia pouco e com
tanta detença que causava pena e fadiga a quem o assistia, parecendo mais
interessado na prática que entretinha com os embaixadores e cortesãos do que com
a comida que tinha no prato. - Nenhum navio redondo consegue fazer a
torna-viagem da Mina - a fala vagarosa e entoada pelo nariz tirava graça e
sabor às suas palavras - por causa das grandes correntes que há no mar, somente
as nossas caravelas de velas latinas o podem fazer.
- As caravelas são como os
cavalos mouros, disse alguém, vivas, velozes, mas também dóceis e sóbrias, próprias
para viagens aventurosas. O Príncipe Perfeito saudou o dito com
agrado, seguro de que em nenhuma outra parte da Cristandade, além de Portugal,
se construíam navios latinos e o segredo da sua construção estava bem guardado.
Pêro de Alenquer, o maior piloto
da Costa da Guiné e a quem se deviam muitas descobertas daquela derrota, disse
com um sorriso de confiança: - Meu senhor, juro-vos que serei capaz de trazer
da Mina qualquer nau, por muito grande que seja. - Não se pode fazer - replicou
el-rei, com secura. - Já muitas vezes foi tentado, porém, todas as naus que lá
mandei não conseguiram tornar ao reino. - Eu fá-lo-ei, Sereníssimo Senhor -
insistiu Alenquer, com orgulho, sem atentar no rosto fechado de João II, desde
já a isso me obrigo!
- A um vilão peco não há cousa
que lhe não pareça que fará - lançou-lhe el-rei, com um sarcasmo tão violento
que fez o piloto enrubescer de humilhação e, enfim, não faz nada!
Depois de comer, retirou-se a uma outra sala para receber aqueles que
previamente convocara, causando espanto a todos os presentes e ao próprio Pêro de Alenquer ao enviar-lhe
recado que lhe queria falar e, sem uma palavra, o piloto seguiu atrás dos
convocados e entrou na sala em último lugar. El-rei tinha o rosto grave e a voz
soou um pouco brusca, quase dura, quando dirigiu a palavra a Alenquer, que se mantinha diante
dele de olhos baixos mas de cabeça erguida. - Pêro, se há pessoa que por seu
ofício e arte de navegar merece ser favorecida e honrada, essa pessoa és tu e já
o afirmei perante muitos. A causa de te haver dito aquilo de há pouco, e peço-te
que me perdoes o agravo, foi porque cumpria a meu serviço... - ante o olhar
desconcertado do piloto, justificou-se com um ligeiro sorriso de ironia: - Para
ter o ouro da Mina guardado da cobiça de outros reinos, tenho de fazer crer que
navios redondos como os deles não podem fazer a torna-viagem e até tenho dado
ordens para afundarem algumas naus velhas e sem préstimo nos mares da Guiné, para
os escolhos darem à costa e se julgue que foi desastre, provando que com tais
embarcações não é possível fazer-se a volta do mar. Nunca mais digas que o podes
fazer, antes guarda muito segredo disso e eu te farei grande mercê. Pêro de Alenquer curvou-se com
muito acatamento, já esquecido da pública humilhação pelo pensamento da mercê
que iria receber do seu generoso senhor que quando cometia uma injustiça contra
qualquer dos seus vassalos sempre lhe dava uma compensação superior à ofensa
que infligira». In Navegador da Passagem, A História de um Descobridor de Mundos, que o Mundo
Ignorou, Deana Barroqueiro, Porto
Editora, 2008, ISBN 978-972-0-04162-3.
Continua
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