Motivos que me moveram a dar a público a presente narração
«Todos sabem o que é a Inquisição (maldita) em geral; que ela fora
estabelecida em certos reinos como a Itália, Espanha, Portugal e na maior
parte das suas possessões do ultramar; que os juízes, que presidem esse
tribunal, usam de nímia severidade nas suas decisões.
NOTA: A Inquisição (maldita), posto que nascida em França, não
pôde ali conservar-se, apesar de ser organizada em 1255 por Alexandre III de acordo com S. Luís. Em 1221 foi introduzida por Inocêncio IV
por toda a Itália, menos Nápoles, onde existiram trinta e dois tribunais da sua
jurisdição, e pouco depois se estendeu pela Alemanha, mas não foi ali mais
feliz que em França. Já no princípio do século XIII penetrara a Inquisição (maldita)
a pouco e pouco na Espanha, mas desde 1478
foi organizada com estatutos regulares em Sevilha pelo zelo do cardeal Pedro
Gonsalves de Mendonça, arcebispo daquela diocese. Porém, no reinado de
Fernando e Isabel é que o primeiro inquisidor Torquemada lhe deu uma
forma tão ampla e enérgica como feroz e sanguinária. Durante os dezoito anos do ministério daquele terrível inquisidor
foram processadas 105 294 pessoas,
das quais 8800 foram queimadas em
pessoa e 6500 o foram em efígie. O abade
Bergier acha que é exagerado este número. O contágio da Espanha não podia
deixar de se comunicar a Portugal, mas vários motivos lhe obstaram, até que o
rei João III, possuído de grande zelo da religião e vencendo muitas
dificuldades, obteve do papa Paulo III a bula de 23 de Março de 1536, facultando o efectivo estabelecimento
da Inquisição (maldita) no seu reino. Esta bula determinava que nos primeiros
três anos seriam os réus processados nos termos regulares, à maneira do que se
praticava nos crimes de homicídio e furto, e que só passados dez anos se
poderia aplicar a pena de confisco. Também vulgarmente se atribui a introdução
da Inquisição (maldita) ao espanhol Juan Perez de Saavedra, natural de Córdova,
insigne falsificador de documentos, o qual, com o suposto carácter de núncio
apostólico e uma bula também falsa, se apresentara na corte de João III,
onde fora recebido com a consideração devida a eminente personagem, que
afectara. Visitara uma parte do reino e com o pretexto de absolvições,
indulgências e dispensas sacara avultadas somas, até que descoberta a
impostura, no fim de seis meses, fora preso em Moura e processado pela Inquisição
(maldita) de Espanha, que o condenara às galés. Passados dezanove anos de
castigo, fora posto em liberdade por Filipe II, a instâncias do papa Paulo IV,
que o desculpara como um instrumento de que Deus se servira para fazer grandes
benefícios à Igreja. E assim, apesar deste desfecho, continuou a Inquisição (maldita)
a exercer as suas funções como se fora legalmente criada. O Alexandre Herculano dá por falsa esta tradição.
O frade de S. Francisco da província da Piedade, frei Diogo da Silva, que antes
de ser religioso fora desembargador da casa de suplicação, e depois bispo de
Ceuta, confessor de el-rei e finalmente arcebispo de Braga até o tempo de sua
morte, obteve o cargo de primeiro inquisidor em Portugal. Foi no século XVII
que a Inquisição (maldita) fez neste reino o mais terrível uso do seu poder.
Desde o seu estabelecimento e durante o domínio dos Filipes, obtivera o maior
favor das leis e o aumento da sua jurisdição, e só porque João IV se lembrara de a reformar e privar da pena de
confisco, o seu cadáver teve de passar por uma absolvição solene para obter
sepultura eclesiástica. Os autos-de-fé eram frequentes e até ao ano de 1792 apareceram nos cadafalsos em
hábitos de infâmia penitenciados por este tribunal 22 058 réus e foram condenados ao fogo 1454. O marquês de Pombal, apesar de abrir aos cristãos-novos a
caneira das honras e de fazer tantas reformas, não se atreveu contudo a
extinguir a Inquisição de Portugal e contentou-se em reformá-la, convertendo-a
em tribunal régio e tirando-lhe o carácter eclesiástico e a influência pontifícia.
O jesuíta Malagrida, que não passava
de um visionário, foi a última vítima condenada à morte por este tribunal.
Desde então, o Santo Ofício (maldito), combatido pela opinião pública, caiu em
descrédito; ainda perseguia, mas já não se atrevia a fazer alardo público da
sua intolerância e sanguinárias sentenças, até que pela revolução de 1820 foi abolido com aplauso geral.
É igualmente certo que o rigor da Inquisição (maldita) não é uniforme
em todos os países onde ela existe, porque a inquisição da Espanha é mais
severa que a da Itália e menos que a de Portugal e suas possessões.
NOTA: Mas pior que a Inquisição de Portugal é a de Goa reputada
por alguns autores; e entre outros pelo francês François Pyrard, que ali
residiu desde Junho de 1608 até Janeiro de 1610, o qual na sua Viagem,
1858 diz que a Inquisição de Goa era
mais severa que a de Portugal porque mui frequentemente queimava os
judeus, a quem os portugueses chamam cristãos-novos, etc. O João Félix
Pereira é outro autor que modernamente corrobora a opinião de Pyrard: A
Inquisição de Goa se distinguiu por maiores rigores que todos os tribunais da
metrópole; milhares de vítimas pereceram nas chamas; e quando estas
sanguinolentas execuções faziam temer algum movimento sedicioso, os vice-reis e
governadores, já não gozando a força aberta, empregavam o ferro dos assassinos
e o veneno. É por estas e outras atrocidades que o sábio jurisconsulto Coelho
da Rocha, pintando vivamente a intolerância com que Portugal pela sua Inquisição
(maldita) tratava os estrangeiros, sujeitando seus navios à visita dos seus
esbirros, e fazendo desaparecer o grande comércio a que a natureza destinara aquele
reino, lamenta a Inquisição de Goa nestas sentenciosas frases: Nada
há porém que iguale o desacordo de estabelecer o Santo Ofício em Goa, onde
todas as considerações mandavam evitar a severidade religiosa para com homens ignorantes
convertidos de pouco; e em uma praça onde mercadejavam nações tão variadas em
crenças como em cor e origem. Após estes vultos europeus, citaremos,
pela coincidência das mesmas ideias, os Quadros Históricos de Goa, de J.
C. Barreto Miranda, que é um dos ornamentos da mocidade goana aplicada às
letras, o qual, discorrendo sobre a Inquisição de Goa, diz (seguindo a Ferdinand
Denis, no seu Portugal) o seguinte: As crueldades que em nome da religião da paz
e amor praticava este tribunal na Europa, subiam a maiores excessos na Índia,
onde os inquisidores, cercados dum luxo severo que não cedia em nada à magnificência
real dos maiores potentados da Ásia, via com orgulho submetido ao seu poder
tanto o arcebispo como o vice-rei. E por último, bastará para se fazer
ideia da omnipotência da Inquisição de Goa o seu edital de 14 de Abril de 1736,
que é um verdadeiro manifesto contra os usos e costumes religiosos dos
indianos, documento importantíssimo, tirado pela primeira vez à luz do dia do
arquivo da secretaria do governo pelo literato português que temos entre nós, o
conselheiro Rivara, que tanto tem publicado sobre as coisas de Goa (Ensaio
Históríco da Língua Concani, 1858.
A imprensa publicou já as máximas da inaudita jurisprudência
deste tribunal, a análise dessas máximas e as consequências que têm resultado delas
em muitos casos; mas ninguém, que me conste, tem até, agora ousado revelar o
que se passa no secreto dessa casa, porque os inquisidores, empenhados em
manterem ilesa a sua jurisdição, são os primeiros que ocultam ou não descobrem
o triste sudário dos segredos da instituição». In Charles Dellon (1649-1709?),
Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden, Holanda, Narração da Inquisição
de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866,
Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN 972-608-075-4.
A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de E. Antígona/JDACT