Holanda
«Um poeta está sentado na Holanda. Pensa na tradição. Diz para si
mesmo: eu sou alimentado pelos séculos, vivo afogado na história de outros homens.
E a sua alma é atravessada pelo sopro primordial. Mas tem a alma perdida: é um
inocente que maneja o fogo dos infernos. Abre-se ao fundo da sua meditação
holandesa um grande lago: a solidão, e em volta passeiam vacas. A Holanda agora
é isto: vacas, e, no centro, o inferno, a revolucionária inocência de um poeta
sentado. - Por quem me tomam? - pode ele perguntar. - O que eu quero é o amor.
E sempre assim, sempre: cidades inexplicáveis no meio da terra ou
prados imensos onde se tem medo. Prados para vacas, não para um poeta di-la-ce-ra-do
por uma tormentosa inocência. Já não escreve poemas nem pergunta às pessoas o
seu nome. Ele próprio, visto estar destinado à inteira perdição, vai perdendo o
nome pelo país adiante. Agora vigia a paz devoradora dos animais, as coisas, a
imobilidade. Vou partir, imagina. As cidades ardem, os campos enlouquecem. Um
poeta tem de partir, repartir, repartir-se. Um poeta deve ser uno. O inferno
não o deixa. Às vezes lamenta-se: Sinto-me como se tivesse percorrido o
deserto; não sei nada. À noite falava baixo, conhecendo que não possuía a protecção
das coisas e a sua vida estava a ser corroída Por uma vocação menos que
humilde: degradante. Não servia para nada; essa era a sua mais implacável vocação.
Ficava sentado a ver os homens holandeses cuidarem dos animais e da terra e a
vigiarem o céu. Os homens holandeses invocavam os poderes que se debruçavam, um
pouco como holandeses, sobre o exercício humano.
Na Holanda o Demónio é negativo. O poeta sabia da irremissível solidão
do Demónio, e pedia por ele: Piedade para o Demónio, piedade para a solidão
demoníaca. Na Holanda é assim. O Demónio está no meio das vacas: não escreve poemas,
não pode exercer os dons. Pensa, perde o nome. Quem esperaria dele que
trabalhasse a terra ou protegesse as alimárias?
Pela noite fora o poeta mantinha-se o mais deitado possível, com o
talento voltado para o ar, ouvindo os pequenos ruídos do mundo. E pensava: Como
se atreve a terra a tamanha placidez? Ou estarei eu marcado por alguma
culpa insondável? De onde
descendo, que não sou amado dos holandeses nem me acalmo e participo nas
tarefas? Mas uma noite recebeu a visitação. O seu espírito iluminou-se:
Tu és um homem. Sim, sou um homem, disse, mas não sou holandês. Aliás, não se
compreendia bem o que fosse aquilo de ser um homem. - Para onde pensam que vou ou de
onde venho? -
perguntaria. - Eu aspiro ao amor.
Percebe-se isto? Holanda,
Holanda, país conquistado às águas! (Não
é assim que se diz?). Holanda erguida devagar ao concreto. Entretanto o
poeta abisma-se no espírito demoníaco e invoca uma protecção obscura, a piedade,
para o Demónio». In Herberto Helder, Os Passos em Volta, Assírio & Alvim, Lisboa,
2009, ISBN 978-972-37-0119-7.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT