O Profeta do Orvalho
De longe nos chegam as notícias de catástrofes;
a terra tremeu na Martinica, na Formosa e em Nápoles,
e aqui é a minha alma doente que estremece e vibra
sob o impulso de um vulcão secreto
que mistura sofrimento com júbilo,
que confunde doença com saúde eterna.
Podia encomendar a minha alma magoada
a estes acolhedores deuses da casa
com quem é possível falar e que num instante
se tornam nossos cúmplices em nome da eternidade.
Mas que hei-de eu dizer-lhes que eles não saibam já?
Eu sou uma alma estremecida e indefesa
à espera que um tremor real da terra
daqui me leve para onde moram as outras almas.
Volto à sabedoria dos provérbios ancestrais
e sei que a flor tombada da árvore
a ela não poderá regressar, perdida que está
para o mistério da seiva, para o sortilégio do estio.
Caíram da árvore que eu sou
as flores mais amadas, as de aroma perene,
e eu vi que a minha vida se tornou igual
ao orvalho da manhã, evaporada pelo sol
como uma gota de água na pele de uma folha.
Falo dos que amei e visita-me a sua sombra,
tão perfeita e precisa que quase logro tocar-lhe.
Como eu gostava de ter sabido educar, na idade certa,
este pobre coração rebelde e ansioso
que nunca cessou de buscar na viagem
a paz que a imobilidade lhe negou.
Deixei, com o andar dos anos, que fosse ele
a conduzir-me os passos e a moldar-me os gestos.
Ao ouvir a pressa da água no corpo da rocha,
percebi que a minha vida se havia de esgotar
nessa voragem de andanças e regressos,
como o bambu que a labareda consome,
sem poder evadir-me dessa sina escrita no vento
com a pena aguçada dos poetas da chuva.
Poema de Wenceslau de Moraes,
in ‘O Profeta do Orvalho’
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