segunda-feira, 11 de março de 2013

A Paixão. Tetralogia Lusitana. Almeida Faria. «… com sinos e o grito, muito agudo e cortante, quente, perto, do comboio sem pressa e do seu fumo lento que atravessa montes e montados; o tecto é alto, a cama é muito larga, chega para dois corpos abertos ao destino…»

jdact

Arminda
«Às portas da cidade estávamos os dois; como dizer se em volta havia mar ou vento? Chegaram depressa os outros agressivos; juntaram-se à nossa roda; criaram o ciúme; as faces eram máscaras más, caras de feroz mudez; o silêncio que deles ressumava corrompia o tempo; o ventre e os seios sentia consciente; os outros riam ou uivavam quando o pai chegou e disse que era assim, que podíamos partir, que estávamos curados; eles permaneceram no pavilhão sem fim, mais furiosos, um respirar de morte os assolava; a morte morde; à voz do pai apenas pressentida, os corpos furiosos dois a dois uniram-se junto à conjugada conjuração dos astros; eis que, contudo, num esgar dorido, braços e pernas erguiam para o vácuo e a sua união deles era tão fugaz que nem sequer chegava para sê-lo; a voz do pai distava, ditava; na mesa os pratos vacilaram; rei e rainha no mar da inconsciência sós estavam; uma imagem deles porém não conseguida; os corpos repetiam o seu rito fatal; a esperança de um dia; carros que passavam à luz de candeeiros tinham um fogo branco nos ruídos; as sombras dispersaram sobre o deserto frio; deserto frio; frio: - hã, ah és tu, João Carlos; obrigada por me teres chamado; que sonho sinistro tive.

Mãe
Que sonho sinistro; assim como Arminda, a mãe está irritada desde que despertou, e se recorda; visto da cama, em que o marido dorme, o tecto é alto, branco, as paredes azuis, de um azul forte nobre, aquecem-lhe o silêncio, as três janelas dão para o desterro da rua, com barrancos e bosta, com sinos e o grito, muito agudo e cortante, quente, perto, do comboio sem pressa e do seu fumo lento que atravessa montes e montados; o tecto é alto, a cama é muito larga, chega para dois corpos abertos ao destino, tem relevos de fogo, patas de águia fincadas, o sobrecéu ausente para destruir o medo; há muito o sol raiou, por dentro, a solidão da terra, a podre e estéril e fecunda, a porca, a mal amaldiçoada até ao fim; este é o quarto no interior do qual a vida se gerou na vila; ao canto do oratório com um cheiro chocho a velho, onde o ouro dos anjos e dos santos e das flores estilizadas sem graça brilhou ao fundo de dentro da penumbra, repousa um frasco de remédio de qualquer morto antigo já esquecido; ele repousa, o morto, outro, em qualquer cama de qualquer quarto de qualquer casa outra, repousa frio e longo, fino e grave como todos os mortos, sob o selo de cera da sua face morta, ele repousa, ei-lo, na mesma cama em que, de núpcias noite nova, os amantes se abraçam, ternos e furiosos, com receio e espanto se descobrem, na primavera, entre os lençóis bordados, largos, no chão de lustre escuro amontoam-se as roupas e o vestido da noiva, como de bailarina, mítico e cheio de espuma, seios, sobre o tapete fofo meio gasto , azul e encarnado, desenhado no qual, em esper… noites cravejadas de estrelas e do crescente agudo como um sabre, um sexo, um alfange cortando os inimigos, em cima dum cavalo célere e de focinho estreito, o árabe galopa com a mulher nos braços e as palmeiras bravas longamente espalmam palmas, estalam, de longe, da mesquita e palácio, na mesma cama em que suaram dores de parto e seres roxos nasceram, e abortos e, até ao horizonte grande, fundo, para além dos telhados secos, pardos, dos muros cegos, brancos, da torre da igreja fina e estreita, em curvas suaves e volutas e aletas, uma pequena cruz de ferro ao cimo, um pára-raios, sem cor contra o azul um tanto encarniçado, para além das coisas e dos corpos, das faces que impressionam, abalam, intimidam, comovem depois de, por muito tempo antes em desatenção e pressa olhadas, agora desfloradas, em seu mistério surdo e carga de sentidos, para além da taberna diante, de janelas baixas, gradeadas, cheias de som e duma luz intensa, natural, dispersa, à qual se juntam vozes de homens de quando em vez gritadas e o ruído arrastado, repetido e áspero das malhas férreas que raspam pelo chão até baterem, certeiras, na madeira ou no fito , para além, até ao horizonte longe, vermelho como se a vila ardesse em silhueta, em leque, em arco, amarelo, verde e ocre, azul, ao alto, nascente de miragens, puro pesadelo». In Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial Caminho, O Caminho da Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.

Cortesia de Caminho/JDACT