Arminda
«Às portas da cidade estávamos os dois; como dizer se em volta havia
mar ou vento? Chegaram depressa os outros agressivos; juntaram-se à nossa roda;
criaram o ciúme; as faces eram máscaras más, caras de feroz mudez; o silêncio
que deles ressumava corrompia o tempo; o ventre e os seios sentia consciente;
os outros riam ou uivavam quando o pai chegou e disse que era assim, que
podíamos partir, que estávamos curados; eles permaneceram no pavilhão sem fim,
mais furiosos, um respirar de morte os assolava; a morte morde; à voz do pai
apenas pressentida, os corpos furiosos dois a dois uniram-se junto à conjugada
conjuração dos astros; eis que, contudo, num esgar dorido, braços e pernas erguiam
para o vácuo e a sua união deles era tão fugaz que nem sequer chegava para
sê-lo; a voz do pai distava, ditava; na mesa os pratos vacilaram; rei e rainha
no mar da inconsciência sós estavam; uma imagem deles porém não conseguida; os
corpos repetiam o seu rito fatal; a esperança de um dia; carros que passavam à
luz de candeeiros tinham um fogo branco nos ruídos; as sombras dispersaram
sobre o deserto frio; deserto frio; frio: - hã, ah és tu, João Carlos; obrigada
por me teres chamado; que sonho sinistro tive.
Mãe
Que sonho sinistro; assim como Arminda, a mãe está irritada desde que
despertou, e se recorda; visto da cama, em que o marido dorme, o tecto é alto,
branco, as paredes azuis, de um azul forte nobre, aquecem-lhe o silêncio, as
três janelas dão para o desterro da rua, com barrancos e bosta, com sinos e o
grito, muito agudo e cortante, quente, perto, do comboio sem pressa e do seu fumo
lento que atravessa montes e montados; o tecto é alto, a cama é muito larga,
chega para dois corpos abertos ao destino, tem relevos de fogo, patas de águia fincadas,
o sobrecéu ausente para destruir o medo; há muito o sol raiou, por dentro, a
solidão da terra, a podre e estéril e fecunda, a porca, a mal amaldiçoada até
ao fim; este é o quarto no interior do qual a vida se gerou na vila; ao canto
do oratório com um cheiro chocho a velho, onde o ouro dos anjos e dos santos e
das flores estilizadas sem graça brilhou ao fundo de dentro da penumbra,
repousa um frasco de remédio de qualquer morto antigo já esquecido; ele
repousa, o morto, outro, em qualquer cama de qualquer quarto de qualquer casa outra,
repousa frio e longo, fino e grave como todos os mortos, sob o selo de cera da
sua face morta, ele repousa, ei-lo, na mesma cama em que, de núpcias noite nova,
os amantes se abraçam, ternos e furiosos, com receio e espanto se descobrem, na
primavera, entre os lençóis bordados, largos, no chão de lustre escuro amontoam-se
as roupas e o vestido da noiva, como de bailarina, mítico e cheio de espuma,
seios, sobre o tapete fofo meio gasto , azul e encarnado, desenhado no qual, em
esper… noites cravejadas de estrelas e do crescente agudo como um sabre, um
sexo, um alfange cortando os inimigos, em cima dum cavalo célere e de focinho
estreito, o árabe galopa com a mulher nos braços e as palmeiras bravas
longamente espalmam palmas, estalam, de longe, da mesquita e palácio, na mesma
cama em que suaram dores de parto e seres roxos nasceram, e abortos e, até ao
horizonte grande, fundo, para além dos telhados secos, pardos, dos muros cegos,
brancos, da torre da igreja fina e estreita, em curvas suaves e volutas e
aletas, uma pequena cruz de ferro ao cimo, um pára-raios, sem cor contra o azul
um tanto encarniçado, para além das coisas e dos corpos, das faces que
impressionam, abalam, intimidam, comovem depois de, por muito tempo antes em
desatenção e pressa olhadas, agora desfloradas, em seu mistério surdo e carga
de sentidos, para além da taberna diante, de janelas baixas, gradeadas, cheias
de som e duma luz intensa, natural, dispersa, à qual se juntam vozes de homens
de quando em vez gritadas e o ruído arrastado, repetido e áspero das malhas
férreas que raspam pelo chão até baterem, certeiras, na madeira ou no fito ,
para além, até ao horizonte longe, vermelho como se a vila ardesse em silhueta,
em leque, em arco, amarelo, verde e ocre, azul, ao alto, nascente de miragens,
puro pesadelo». In Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial Caminho, O Caminho da
Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.
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