quinta-feira, 30 de junho de 2016

A Feiticeira de Florença. Salman Rushdie. «Ele podia sonhar em sete línguas: italiano, espanhol, árabe, persa, russo, inglês e português. Pegava línguas do mesmo jeito que a maioria dos marinheiros pegava doenças; línguas eram a sua gonorreia, sua sífilis…»

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«(…) Para além da torre de dentes, ficava um grande poço e acima dele uma massa de uma incompreensivelmente complexa maquinaria de água que servia ao palácio de muitas cúpulas sobre o monte. Sem água não somos nada, o viajante pensou. Até mesmo o imperador, privado de água, logo se transformaria em pó. A água é o verdadeiro monarca e nós todos somos seus escravos. Uma vez, em sua terra, em Florença, havia encontrado um homem que sabia fazer a água desaparecer. O mágico enchia uma jarra até à boca, murmurava palavras mágicas, virava a jarra e, em vez de líquido, dela saía pano, uma torrente de lenços de seda coloridos. Era um truque, claro, e antes do fim do dia o viajante havia arrancado do sujeito o seu segredo e o escondera entre seus próprios mistérios. Ele era um homem de muitos segredos, mas apenas um apropriado a um rei. A estrada para a muralha da cidade subia íngreme pela encosta e ao subir com ela o viajante viu o tamanho do lugar aonde havia chegado. Era evidentemente uma das grandes cidades do mundo, maior, parecia ao seu olhar, do que Florença, Veneza ou Roma, maior do que qualquer cidade que o viajante já havia visto. Ele visitara Londres uma vez; também ela uma metrópole menor que aquela. Com o fim da luz, a cidade pareceu crescer. Densos bairros amontoavam-se fora das muralhas, muezins cantavam de seus minaretes e à distância ele podia ver as luzes de grandes propriedades. Fogos começaram a se acender na penumbra, como alertas. Do bojo negro do céu veio a resposta do fogo das estrelas. Como se a terra e o céu fossem exércitos se preparando para a batalha, pensou. Como se seus acampamentos se aquietassem à noite e esperassem a vinda da guerra do dia. E em toda aquela multiplicidade de ruas e em todas aquelas casas de poderosos, além, nas planícies, não havia um homem que tivesse ouvido seu nome, nem um único que pudesse acreditar de imediato na história que tinha para contar. Mas tinha de contar. Atravessara o mundo para isso, e havia de contar. Andava a passos largos e atraía muitos olhares curiosos por conta do cabelo amarelo, além de sua altura, o cabelo loiro comprido e inegavelmente sujo esvoaçando em torno do rosto como a água dourada do lago. O caminho subia, passava diante da torre de presas na direcção de um portal de pedra com dois elefantes em baixo relevo, um na frente do outro. Por esse portão, que estava aberto, vinham os ruídos de seres humanos brincando, comendo, bebendo, farreando. Havia soldados a postos no portão de Hatyapul, mas em atitude relaxada. As verdadeiras barreiras estavam adiante. Aquele era um local público, um local para reuniões, compras e prazer. Homens apressados ultrapassaram o viajante, levados por fomes e sedes. De ambos os lados da rua calçada entre o portão externo e o interno havia hospedarias, estalagens, barracas de comida e mascates de todo tipo. Ali se dava o negócio eterno de comprar e ser comprado. Roupas, utensílios, bugigangas, armas, rum. O mercado principal ficava além do portão menor, do sul. Os moradores da cidade faziam ali suas compras e evitavam este lugar, que era para recém-chegados ignorantes que não sabiam o preço real das coisas. Aquele era o mercado dos trapaceiros, o mercado dos ladrões, ruidoso, extorsivo, desprezível. Mas viajantes cansados, ignorantes do mapa da cidade e relutantes, de qualquer forma, em caminhar até a muralha externa para o mercado maior e mais justo, não tinham opção senão tratar com os mercadores do portão do elefante. Suas necessidades eram urgentes e simples.
Galinhas vivas, barulhentas de medo, penduradas de cabeça para baixo, agitadas, os pés amarrados juntos, à espera da panela. Para vegetarianos havia outros caldeirões, mais silenciosos: vegetais não gritam. E eram vozes femininas que o viajante ouvia no vento, ululando, provocando, instigando, rindo para homens invisíveis? Eram mulheres que ele farejava na aragem da noite? De qualquer forma, era tarde demais para procurar o imperador hoje. O viajante tinha dinheiro no bolso e fizera uma viagem demorada e extensa. Seu modo de agir era este: chegar a seu objectivo por vias indirectas, com muitos desvios e divagações. Desde que aportara em Surat tinha passado por Burhanpur, Handia, Sironj, Narwar, Gwalior e Dholpur até Agra, e de Agra para ali, a nova capital. Agora queria a cama mais confortável que pudesse encontrar e uma mulher, de preferência uma sem bigode, e, por fim, a quantidade de esquecimento, de fuga de si mesmo, que nunca se pode encontrar nos braços de uma mulher, mas apenas numa boa bebida forte. Depois, com seus desejos satisfeitos, ele dormiu no perfumoso bordel, roncando, prazeroso, ao lado de uma prostituta insone, e sonhou. Ele podia sonhar em sete línguas: italiano, espanhol, árabe, persa, russo, inglês e português. Pegava línguas do mesmo jeito que a maioria dos marinheiros pegava doenças; línguas eram a sua gonorreia, sua sífilis, seu escorbuto, sua febre, sua peste. Assim que adormeceu, metade do mundo começou a tagarelar em sua cabeça, contando incríveis histórias de viajantes. Nesse mundo semi-descoberto, cada novo dia trazia notícias de novos encantamentos. A visionária, reveladora poesia dos sonhos do quotidiano ainda não havia sido esmagada pela estreita e prosaica realidade. Ele era um contador de histórias, tinha sido atraído para fora de sua porta por histórias de portentos, e por uma em particular, uma história que poderia fazer sua fortuna ou, talvez, custar-lhe a vida.
A bordo do navio pirata do milorde escocês, batizado de Scáthach em honra à deusa da guerra de Skye, uma nau cuja tripulação durante muitos anos roubara e pilhara alegremente para cima e para baixo do litoral da América espanhola, mas que actualmente estava a caminho da Índia em negócios de Estado, o lânguido clandestino de Florença evitara ser sumariamente lançado ao rio Branco do sul da África ao tirar uma cobra-d’água viva de dentro do ouvido de um perplexo contramestre, a qual jogara na água em seu lugar. Ele havia sido encontrado debaixo de um escaler do castelo de proa do navio, sete dias depois de a nau contornar o cabo Agulhas, ao pé do continente africano, usando um gibão e calça de malha cor de mostarda, enrolado numa grande capa de retalhos feita com losangos de couro de cores vivas como de arlequim, aninhado sobre uma pequena bolsa de tecido grosso, dormindo um sono profundo de muitos altos roncos, sem fazer nenhum esforço para se esconder. Ele parecia perfeitamente disposto a ser descoberto e incrivelmente confiante em sua capacidade de charme, persuasão e encanto. Afinal de contas, já o tinham levado bem longe. De facto, ele se revelou um bom mágico. Transformava moedas de ouro em fumaça e fumaça amarela de volta em ouro. Uma jarra de água doce virada de boca para baixo deixava cair uma torrente de lenços de seda. Ele multiplicava peixes e pães com dois passes de suas mãos elegantes, o que era uma blasfémia, claro, mas os marinheiros esfaimados o perdoaram com facilidade. Persignando-se depressa, para se garantir contra a possível ira de Cristo Jesus pela usurpação de seu posto por esse milagreiro moderno, engoliram o banquete inesperado, mesmo que teologicamente insalubre». In Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-692-4.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

Contos e Fantasias. Maria Amália Carvalho. «Ela também lhe não escrevera, o que o não surpreendera nada. Estava tão costumado a ser uma coisa inútil e desprezada, que nunca lhe viera à ideia a possibilidade sequer de possuir uma carta dela»

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«(…) Os operários tinham de respeita-lo. Eles não tinham precisão nenhuma de se rir do seu corpo enfezado e raquítico. Não é preciso ser-se atlético para se ser respeitado pelos homens a quem se paga. Tadeu havia de arranjar algum meio de lhes pagar. Andava então doente, esquisito, com uma excitação nervosa que o torturava. O seu afecto por Margarida tivera uma recrudescência violenta e dolorosa. Tinha vagos pressentimentos que o faziam chorar. Parecera-lhe que a sua tia, uma vez, ao encontrá-lo num corredor, olhara para ele com uma aguda ironia malévola. Não sabes, Tadeu? Gritou Margarida entrando como um raio de sol no quarto onde costumava brincar com o primo. Não sabes? E atirou-lhe negligentemente aos pés com um feixe de flores e de folhas verdes que estivera colhendo na quinta. Também eu vou com o pai e a mãe. Vamos a Paris... Muito longe... Muito longe... Estive à escuta…, percebi umas coisas mas não percebi outras. Falaram num convento…, no Sacré Coeur... Sabes o que é?...  Tadeu sabia. Não disse nada, mas no outro dia não pôde levantar-se da cama. Tinha dores em todo o corpo e um grande cansaço, como de quem deu uma larga caminhada. Gemia baixinho abrasado em febre, e quando pediu muito humildemente, com medo de recusa, para ver Margarida, disseram-lhe que a doença dele podia pegar-se e que as meninas não iam ao quarto dos homens. Pois isto é um homem? Pensava Tadeu desolado. Margarida de endoidecida com a mudança, com o movimento, com a espectativa de uma existência desconhecida e nova, esqueceu-se completamente do enfermo. Partiu sem pedir sequer para lhe dizer adeus!... Quando Tadeu ao cabo de um mês de doença saiu do quarto com o rosto macilento, abatido, cansado, como o de um velho, com a espinha dobrada e as magras pernas vacilantes, pediu para ir ao quarto onde brincava com a sua pérola, e agachou-se a um cantinho a chorar com uns uivos dolorosos, com uns uivos caninos que faziam mal. Sentia-se para sempre só...
O marquês tinha ido sozinho para França. Fora, ao que se dizia, buscar a filha ao Sacré-Coeur. A educação de Margarida devia estar completa. Fora-se embora com nove anos de idade, e já se tinham passado sete depois que ela partira. Sete anos! Que longo período! A casa dos marqueses era pouco mais ou menos a mesma coisa. Tadeu perdera a sua mãe, mas aquela figura apagada, melancólica, de uma debilidade de valetudinária, pouca falta tinha feito no palácio iluminado e radioso. O marquês aconselhado por alguma pessoa de juízo e de caridade tinha consentido a que logo depois da partida de Margarida seu sobrinho entrasse para um colégio. Também já lhe não servia para nada. Com o seu corpo magro e desengonçado, um corpo de funambulo, um corpo de grotesco, tinha melancolias quixotescas que incomodavam quem o via. Os criados deram por mais de uma vez com o rapazola a chorar de bruços num recanto do jardim, chamado o canteiro de Margarida. Era um pequeno espaço semeado de flores, onde principalmente abundavam os malmequeres brancos que tinham o poético nome da filha do marquês. Havia ali uma grande árvore, um castanheiro copado cuja rama folhuda abrigava os longos pensamentos dolorosos de Tadeu. Não se podia consolar! Era ali naquele sítio fresco, esmaltado de flores, exalando um cheiro agreste e sadio, que ele se deixava ficar horas e horas esquecido de todos, numa espécie de letargo bestial, o letargo de um animal ferido. E desfiava na memória todo o seu passado, toda a vida que vivera, abandonado, desprezado, perseguido de chufas ou de maus tratos, de caprichos humilhantes, ou de observações glacialmente desdenhosas. Só ela nunca o ferira! Só ela fora no seu viver de cão apedrejado um consolo dulcíssimo! Uma nesga do céu que se entreabrira! Só ela nunca se tinha rido à custa dele, e fora ele, o mísero, o abandonado, o enfermo, que tivera o primeiro sorriso daquela boquinha de rosas, o primeiro beijo daqueles lábios frescos e húmidos de leite.
Era feio, era raquítico, era estúpido e desastrado. Todos o conheciam, todos o repetiam em alto e bom som para que ele o não ignorasse, mas dia amava-o; ela não o dizia, não o pensava, não o tinha notado sequer! Para dia era forte, e grande, e poderoso! A ele é que Margarida confiara sempre os seus desejos, os seus sonhos, os seus afectos de criança mimosa. Ralhava-lhe às vezes, batia-lhe, quando aspirava ao impossível que Tadeu lhe não podia dar, mas as crianças ricas têm horas de tédio só comparáveis ás horas sinistras de um imperador romano, e Tadeu compreendia isso tanto, que antes queria as cóleras, do que os desalentos rápidos e violentíssimos da sua pérola. Tudo que houvera bom na sua vida lhe tinha vindo dela. Dos outros, nada! E ele odiava todos os outros, só para poder adorá-la com um culto exclusivo de negro pelo seu fetiche. Não perguntava por notícias; para quê? Tinha a certeza íntima de que lhas não dariam completas nem verdadeiras. Antes não queria saber nada, do que banalizar a sua idolatria, revelando-a aos seus inimigos. Ela também lhe não escrevera, o que o não surpreendera nada. Estava tão costumado a ser uma coisa inútil e desprezada, que nunca lhe viera à ideia a possibilidade sequer de possuir uma carta dela. No entanto ia adoecendo, definhando, parecia uma sombra. Um médico que o viu torceu o nariz, e deu claramente a entender que aquilo nunca chegaria a ser um homem. Foi então que se lembraram de o mandar para um colégio, em primeiro lugar para não terem o desgosto de o ver a cada passo, em segundo lugar para o distraírem da ideia fixa que o estava consumindo. No primeiro dia em que Tadeu fez a sua entrada no colégio houve uma tal galhofa, um gáudio tão extraordinário entre a rapaziada, que os professores para manterem a ordem tiveram de empregar severos castigos. Não havia meio de o ver sem rir. Tinha um tic nervoso a um canto da boca, tinha os olhos de vidro embaciado, tinha as pernas muito magras e muito cambadas, e um modo de falar tímido, acanhado, medroso que era de fazer morrer de riso os rapazes». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.

Cortesia de LLivros/JDACT

O Destino de Adhara. Licia Troisi. «O espaço oprimente daquele subterrâneo era iluminado por uma série de tochas presas à parede. O cheiro de mofo confundia-se com o da penetrante fumaça. Homens vestidos de branco perambulavam pelos aposentos»

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«O homem de preto seguiu adiante sem pressa. Movia-se com segurança pelas ruelas desertas da cidade, o capuz a encobrir-lhe o rosto, a capa roçando em suas botas. Sombra entre as sombras, virou decididamente na rua que já conhecia. Havia explorado o lugar alguns dias antes. A entrada era anónima: uma porta de madeira encimada por uma viga de pedra. Não precisou olhar para o símbolo gravado na arquitrave para saber que tinha chegado. Parou por um momento, sabendo bem que aquele não era o seu objectivo principal, pois a sua missão era outra. É imprescindível, é de vital importância que encontre o sujeito, está entendendo?, dissera Kriss, da última vez que haviam se encontrado. Eu sei, limitara-se a responder ele, baixando a cabeça. Então não pare até conseguir encontrá-lo, e não deixe nada ou ninguém se meter em seu caminho. Kriss fitara-o sem acrescentar coisa alguma, para que o homem de preto pudesse avaliar devidamente aquele silêncio e preenchê-lo de sentido. Mas ele não era do tipo que podia ser amedrontado tão facilmente. Pode funcionar com quem te adora como um deus, mas comigo não dá. Fizera uma mesura em sinal de respeito e dirigira-se à saída. Não se esqueça do nosso trato, dissera Kriss, antes de ele superar o limiar da porta. O homem de preto detivera-se por um instante. Nunca poderia esquecer, pensou com seus botões. E agora, lá estava ele, diante daquela porta. Ainda tinha a possibilidade de parar, de ir embora. De retomar o seu caminho e voltar à sua missão. Está preparado até para isto, a fim de alcançar o seu objectivo?, perguntou a si mesmo, enquanto os olhos se demoravam nos veios da porta. Não precisou esperar por uma resposta. Respirou fundo, devagar, e desembainhou a espada. Em seguida deu um violento pontapé na madeira e entrou. Uma sala de despojados tijolos, de tecto absurdamente baixo. Era o que o Vidente costumava repetir continuamente: é uma solução provisória, precisam ter paciência. Mas pelo menos nos garante aquele segredo, para nós tão necessário. Só poderemos pensar num local mais digno depois de o nosso plano estar bem encaminhado. O espaço oprimente daquele subterrâneo era iluminado por uma série de tochas presas à parede. O cheiro de mofo confundia-se com o da penetrante fumaça. Homens vestidos de branco perambulavam pelos aposentos, de rostos escondidos atrás de máscaras de bronze, lisas, com apenas dois furos na altura dos olhos. Portas fechadas, das quais provinham abafados murmúrios e um salmodiar lento, hipnótico. Cheiro de sangue e magia, olor de morte. Naquele pesado silêncio, o estrondo da porta derrubada ressoou com a violência de uma explosão. Os primeiros Vigias, aqueles mais perto da entrada, nem mesmo tiveram tempo de perceber o que estava acontecendo. O homem de preto ceifou-os com um único e fluido movimento da espada. As capas brancas tingiram-se de vermelho, as máscaras de bronze caíram no chão, tilintando. Por baixo, os rostos torcidos de dor de dois jovens oficiais e de um ministro. Os demais tiveram tempo para ensaiar uma reacção. Quem estava armado desembainhou a espada e começou a lutar, alguns fugiram, tentando salvar o que ainda podia. O homem de preto parecia irrefreável. Afinal de contas, os inimigos não estavam à sua altura. Durante os longos anos das suas andanças tivera a oportunidade de enfrentar adversários muito mais tarimbados, e as cicatrizes no seu corpo testemunhavam cada uma daquelas batalhas. É nisto que dá a moleza de um mundo que se acostumou com a paz, pensou com desprezo. Passos abafados atrás dele. Nem precisou olhar. Recitou as palavras, baixinho, e ficou envolvido numa esfera de prata. Os punhais levantados contra ele ricochetearam na superfície elástica da barreira. Um mágico..., murmurou alguém com horror. O homem de preto sorriu com maldade.
Adrass trancou a porta com o ferrolho. A sua respiração parecia não encontrar o caminho que, dos pulmões, levava para fora. Colou o corpo na madeira, encostando o ouvido. Estridor de lâminas, gritos, baques de corpos que tombavam no chão. O que estava acontecendo? Haviam sido descobertos? Começou a tremer. Lutou para não se deixar tomar pelo pânico. Não. Não. O que lhe haviam ensinado não era nada daquilo. Desde a primeira aula, quando pusera os pés lá dentro. Se, porventura, algum dia formos descobertos, só pensem em salvar o nosso trabalho. É a única coisa que realmente importa aqui. Estamos cuidando de algo maior, de um fim superior, não se esqueçam disto. Palavras do Vidente. Adrass engoliu em seco. Salvar o nosso trabalho. Afastou-se resolutamente da porta e dirigiu-se com firmeza às estantes presas a uma pequena parede do cubículo onde se encontrava. Procurou entre os velhos pergaminhos, entre as minuciosas anotações escritas com sua grafia miúda e elegante. Guardou numa bolsa de couro alguns documentos, rasgou outros. Revistou potes e filtros, remexeu ampolas e ervas. Anos de trabalho. Como escolher o que deveria ser salvo de uma vida inteira de labuta, apenas em poucos momentos apressados? Um vago ganido chamou a sua atenção para a mesa no meio do aposento. Adrass recuperou a calma. Ali estava o que ele tinha de salvar: a criatura. Era a única coisa que valia a pena levar para fora. Era algo muito mais importante do que sua vida desprezível, do que os estudos deles todos. Era tudo. Gritos de moças do outro lado da porta. Não! Estão matando até elas! Chegou perto da mesa, desatou as tiras de couro que prendiam a criatura, libertou-a. Segurou-a rudemente pelos ombros forçando-a a se levantar. Vamos lá, acorde, acorde logo!, disse, dando-lhe uns bofetadas nas faces. Mas ela permanecia inerte em seus braços, de olhos entreabertos que pareciam não vê-lo. Do outro lado da porta, ruídos mais violentos. Os inimigos estavam se aproximando. O coração de Adrass pulou descontrolado. Morrerei, mas o nosso trabalho não será perdido. Sim, morrerei, mas o nosso trabalho não terá sido em vão..., repetia como um mantra as frases que lhe haviam ensinado quando se tornara Vigia. Se pelo menos colaborasse!, surpreendeu-se ao pensar quase com raiva. Por que a criatura não acordava? Puxou-a para longe da mesa, com força, ela desmoronou inerte no chão. Mal conseguia mexer os lábios. Adrass pegou uma ampola com água e derramou-a em cima da criatura. Ela estremeceu. Isso mesmo, muito bem..., preste atenção. Segurou-a pelos ombros, fitou-a nos olhos, olhos apagados. Talvez ainda fosse cedo demais... Procurou afastar o pensamento. Agora vamos sair daqui, está entendendo? Preste atenção! Um vislumbre de vaga compreensão animou os olhos da criatura. Isso mesmo, é assim que se faz! Um estrondo do outro lado da porta. Adrass estremeceu. Segurou o corpo por trás, voltou a levantá-lo e arrastou-o consigo. conseguiu alcançar um botão na parede. Uma pequena parte do muro estalou revelando um caminho estreito e escuro». In Licia Troisi, O Destino de Adhara, Lendas do Mundo Emerso, Editora Rocco, 2008, ISBN 978-858-122-046-8.

Cortesia de ERocco/JDACT

Julieta. Anne Fortier. «Só então, olhando de perto, vi que ele parecia magoado e ressentido, como se houvesse passado as últimas noites bebendo até dormir. Mas talvez isso fosse natural. Sem tia Rose, o que seria de Umberto?»

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«Dizem que morri. Meu coração parou e eu não respirava, aos olhos do mundo, estava morta de verdade. Alguns dizem que durou três minutos, outros afirmam que foram quatro. Pessoalmente, começo a achar que a morte é, acima de tudo, uma questão de opinião. Sendo Julieta, acho que eu devia ter percebido que isso ia acontecer. Mas queria muito acreditar que, dessa vez, não seria de novo a mesma velha tragédia lamentável. Dessa vez ficaríamos juntos para sempre, Romeu e eu, e nosso amor nunca mais seria interrompido por tenebrosos séculos de exílio e morte. Mas não se pode tapear o Bardo. Assim, morri, como tinha que ser, quando minhas falas se esgotaram, e tornei a cair no poso da criação. Ó alegre pena, eis tua folha. Pronto, tinta, deixa-me começar. Que sangue é esse aqui que mancha a pedra do portal deste sepulcro? Demorei um pouco a descobrir por onde começar. Você poderia dizer que minha história teve início há mais de 600 anos, com um assalto numa estrada na Toscana medieval. Ou, mais recentemente, com uma dança e um beijo no Castello Salimbeni, quando meus pais se viram pela primeira vez. Mas eu nunca ficaria sabendo de nada disso sem o acontecimento que mudou minha vida da noite para o dia e me obrigou a viajar à Itália em busca do passado. Esse acontecimento foi à morte de minha tia-avó Rose.
Umberto levou três dias para me encontrar e me dar a triste notícia. Considerando minha virtuosidade na arte de desaparecer, muito me admira que ele tenha conseguido. Mas, por outro lado, Umberto sempre teve a insólita capacidade de ler meus pensamentos e prever meus actos e, além disso, havia um número limitado de colónias de férias dedicadas a Shakespeare na Virgínia. Quanto tempo ele ficou lá, assistindo do fundo da plateia a representação teatral, não sei dizer. Eu estava nos bastidores, como sempre, absorta demais com as crianças, suas falas e a cenografia para notar qualquer outra coisa a meu redor até cair o pano. Depois do ensaio geral daquela tarde, alguém tinha posto o frasco de veneno no lugar errado e, na falta de coisa melhor, Romeu teria de cometer suicídio comendo balinhas Tic-Tac. Mas elas me dão azia!, queixou-se o menino, com toda a angústia acusatória de um adolescente de 14 anos. Excelente!, respondi, resistindo ao impulso maternal de ajeitar a boina de veludo em sua cabeça. Isso o ajudará a entrar no personagem. Só mais tarde, quando as luzes se acenderam e a garotada me arrastou até o palco para me bombardear com sua gratidão, notei aquela figura familiar parada perto da saída contemplando-me em meio aos aplausos. Rígido e majestoso com seu fato e gravata escuros, Umberto se destacava como um homem solitário de civilização num charco primitivo. Sempre fora assim. Desde quando eu me lembrava, ele nunca havia usado uma única peça de roupa que se pudesse considerar informal. Para ele, bermudas cáqui e camisas pólo eram trajes de homens aos quais não restara nenhuma virtude, nem mesmo a vergonha. Mais tarde, quando a investida dos pais agradecidos diminuiu e pude finalmente sair do palco, o director do projecto me parou por um instante. Ele me segurou pelos ombros e me sacudiu calorosamente, me conhecia bem demais para tentar me dar um abraço.
Óptimo trabalho com a garotada, Julie!, comentou, animado. Posso contar contigo de novo no próximo Verão, não é? Com certeza, menti, recomeçando a andar. Estarei por aqui. Enfim me aproximando de Umberto, busquei em vão aquele arzinho de felicidade que costumava surgir no canto de seus olhos quando me via depois de um certo tempo. Mas não havia nem sinal de sorriso e então compreendi por que ele tinha vindo. Aninhando-me em silêncio em seu abraço, desejei ter o poder de virar a realidade de cabeça para baixo, como uma ampulheta, e fazer com que a vida não fosse um processo finito, mas uma passagem perpetuamente repetida por um buraquinho no tempo. Não Chore principessa, murmurou ele, com o rosto em meu cabelo, ela não gostaria disso. Não podemos viver para sempre. Ela estava com 82 anos. Eu sei, mas..., recuei e enxuguei os olhos. Janice estava lá? Umberto apertou os olhos, como sempre fazia quando se mencionava minha irmã gémea. O que você acha?, retrucou. Só então, olhando de perto, vi que ele parecia magoado e ressentido, como se houvesse passado as últimas noites bebendo até dormir. Mas talvez isso fosse natural. Sem tia Rose, o que seria de Umberto? Até onde minha memória alcançava os dois sempre tinham estado atrelados numa parceria necessária de dinheiro e força bruta, ela bancando a beldade que fenecia, ele, o mordomo paciente, e, apesar de suas diferenças, estava claro que nenhum dos dois jamais se dispusera a tentar viver sem o outro». In Anne Fortier, Julieta, Editorial Planeta, ISBN 978-989-657-127-6, Sextante, 2010, ISBN 978-859-929-691-2.

Cortesia de EPlaneta/Sextante/JDACT

A Ruiva e Outras Histórias. Fialho de Almeida. «Às vezes, eram rapazes de quinze a vinte anos que jaziam. Carolina em os vendo exaltava-se, todos os nervos se lhe distendiam na ânsia de um desejo que jamais formulara»

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(…) Uma tarde, passeando na grande rua que corre ao longo da fachada do cemitério, tinha parado a contemplar, no alto de um pedestal glorioso, a estátua do conde das Antas. E falava, ainda, nos seus últimos dias, daquela enérgica figura de soldado, grande barba sobre o peito e cabeça de um vigor leonino, a mão apertando o punho da espada... e, desde então, a sua ânsia pedia-lhe militares, que arrastam nas ruas os sabres prateados e destacam, na agitação dos enterros, dentre os graves toilettes negros com a alegria embriagadora dos seus vivos rutilantes e das suas divisas sanguíneas, cor dos desejos insaciáveis. Nos seus devaneios passavam pálidas figuras de alferes, dos que tilintam esporas no lajedo dos passeios e retorcem bigodes frisados, contemplando as janelas, em domingos de procissão. Todos os dias visitava a casa das observações: ali, sobre bancas, expunham-se caixões abertos; ela mesma metia nas mãos dos mortos as argolas de alarme, e tal emprego quotidiano permitia-lhe ver gentes de todas as castas e profissões. Meninas ricas, filhas de milionários e nascidas entre veludos, áureas meninices em berços de renda, acalentadas por amas normandas de cachos louros, iam ali dormindo nos seus caixões de cetim, vítimas de tísica galopante, olhos vítreos e face cavada, lábios brancos em listras lívidas e o gelado sorriso dos mártires, clareando em reflexos os rostos, de uma rigidez de escultura. Rapazes pobres, dos que ao clarão das forjas crestaram a vida, figuras secas de famintos, torciam nos rostos expressões de sofrer infernal e gelavam-se na nudez miseranda da morte, ao lado de reverendos, com a barba bem feita, a batina nova e grave, quebrada em pregas simétricas, finas camisas de bretanha, tiras de folhos e sapatos de fivela, cingindo, à força de apertadas com uma fita contra o peito, cruzes de marfim bento, símbolo de uma fé que nunca os caracterizou na vida. E os grandes devassos, os magros adúlteros que nos foyers das óperas e nos camarins das cantoras, nas casas de batota e nas alcovas fáceis fazem pública a sua dissolução e desonra, vinham também, diante da pequena, exibir a última elegância. Carolina, pelo número e aspecto dos convidados de um enterro, chegara à perfeição de fixar a posição social de qualquer defunto.
Os conselheiros reuniam graves figuras circunspectas de velhotes de luva preta e grandes pés, folgados em botas macias. Os condes faziam-se acompanhar dos coches da casa real, riqueza oxidada e rota, em que se sentiam os anos, os ratos e o óleo dos cabelos reais. Os escritores arrastavam figuras chupadas, de luneta, vastas cabeleiras polvilhadas de caspa, expectoração de discursos com gestos amplos e eloquência estrondosa. Conhecia o bombeiro, o polícia, o correio e juiz de irmandade. E odiava quem vinha só para entrar na cova, os que embarcavam para o outro mundo sem deixar, na gare, alguns amigos da infância, ou herdeiros de guardar conveniências. Ouvia nesses momentos dizer ao pai: súcia de vadios! Quando tinha de abrir cova sem receber gorjeta. E aprendera a dizer com ele esta frase profunda: até morrem pelo amor de Deus; cambada! Havendo enterro grande, punha uma garihaldi vermelha, azeite nos cabelos ruivos, sapatos de duraque preto, sem tacões e chatos como linguados. Toda risonha, ajoelhava na passagem do préstito, movendo os lábios como quem reza. Depois, na volta: uma esmolinha por aquela alma de Deus! E comprava pevides, amendoim torrado e alféloa, à tia Palma, uma de capote verde, sem um olho, que vinha vender à porta, num tabuleiro velho, secas gulodices de arraial. O que a abalava era aquela vida na casa das observações. Olhava já sem terror os cadáveres, como se fossem pessoas adormecidas no mesmo quarto, cada qual na sua maca de estalagem. Os homens, sobretudo. Alguns eram ainda novos, louros, pálidos e bem-feitos; alguns, ricos, tinham a pele fina, de um contacto cetinoso e bom.
Nas horas de calor, de Verão, quando sob os ciprestes os empregados do cemitério dormiam, ia devagarinho, sem ser pressentida, à casa dos depósitos, escolhia os cadáveres dos moços, dos belos, se os havia, e como um pequeno vampiro sequioso entreabria as mortalhas, despregando com uma navalhinha as camisas; metia a mão devagarinho pelo peito, metia, escorregando-a ao longo das carnes, beliscando-as levemente, com prazer; o olhar dilatava-se-lhe, havia na sua face uma mancha de excitação, mordia os lábios, exaltada; e, palpando, estudando, compreendendo e adivinhando, ficava absorta, um pouco curvada sobre os corpos, o hálito ardente, uma palpitação larga e cheia de ímpeto. A sua imaginação rasgava as névoas indecisas que, diante da inteligente maldade, a sua inexperiência despregava como uma máscara casta e límpida cheia de placidez. Estas explorações fizeram-na muito cedo mulher, preparando-a a compreender mistérios e umas meias frases que ouvia aos gatos-pingados, se passavam por ela. Às vezes, eram rapazes de quinze a vinte anos que jaziam. Carolina em os vendo exaltava-se, todos os nervos se lhe distendiam na ânsia de um desejo que jamais formulara.
Duma vez tinha beijado sôfrega uma cara, com balbuciações aflitas, ardendo em pecado, como uma alma de réprobo. Não conhecera mãe, nunca uma boa mulher a beijara e o coveiro não reprimia diante da filha as suas expansões brutais. Entregue a si própria, chamuscada por carícias pérfidas de homens entregues à rota corrente da sua bestialidade, fizera-se nisto. Havia no entanto dentro dela, ainda, uma coisa ideal e inexplicável, certa virgindade infantil: de noite rezava! Vinham-lhe tristezas íntimas, a insónia triturava-lhe por vezes a saúde como num almofariz de bronze. Sem saber porquê, era desgraçada. Desejaria ser como uma pequena que vira um dia costurando à porta de uma carvoaria, com uma rosa nas tranças. Mas, de súbito, alguma coisa a arremessava à lembrança condenada dos homens adormecidos na casa das observações, e via-os surgir das suas mortalhas alinhavadas, sorrindo, com vida; estendiam os braços a procurá-la; roídos de vermes, muitos vinham, como na dança do Roberto, roçar-lhe pelos quadris os membros esquálidos e podres. E estonteada, fitando no vácuo aquela visão candente, miserável nos seus quinze anos, sentava-se, extenuada e languescida, à sombra dos ciprestes anosos e dos túmulos soberbos, com a cabeça aos baques, revolta a alma por criminosas comoções». In Fialho de Almeida, A Ruiva e Outras Histórias, 1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN 978-972-370-963-6.

Cortesia de LLivros/JDACT

quarta-feira, 29 de junho de 2016

O Legado dos Templários Steve Berry. «De Molay fora preso no Templo de Paris e ali mantido desde Outubro. A alta torre com quatro torreões de canto era um dos quartéis-generais dos templários, um centro financeiro, e não possuía qualquer câmara de tortura»

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Paris. 1308
«Jacques de Molay desejava a morte, sabendo que a salvação nunca lhe seria proposta. Era o vigésimo segundo grão-mestre dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, uma ordem religiosa com duzentos anos de existência. Todavia, nos últimos três meses, ele, assim como cinco mil dos seus irmãos, eram prisioneiros de Filipe IV, rei de França. Levantai-vos, ordenou Guillaume Imbert da soleira da porta. De Molay permaneceu deitado. Sois insolente mesmo face à morte, afirmou Imbert. A arrogância é tudo o que me resta. Imbert era um homem maquiavélico, com cara de cavalo e impassível como uma estátua. Era também o grande inquisidor de França e o confessor pessoal de Filipe IV, o que significava que conhecia os segredos do rei. De Molay interrogara-se muitas vezes sobre o que alegraria a alma do dominicano, para além de lhe incutir dor. Todavia, sabia perfeitamente aquilo que o irritava. Não farei nada daquilo que me pedir. Já haveis feito bem mais do que pensais. Era verdade e De Molay voltou a lamentar a sua fraqueza. As torturas infligidas por Imbert após as prisões de 13 de Outubro haviam sido brutais e muitos irmãos tinham já confessado os crimes de que eram acusados. De Molay estremeceu ao recordar-se das suas próprias revelações. Dissera que todos aqueles que eram admitidos na Ordem rejeitavam Jesus Cristo e cuspiam na cruz em sinal de desrespeito. Chegara mesmo a vacilar e a escrever uma carta a apelar aos irmãos que confessassem, tal como ele fizera, e um grande número deles obedecera. Porém, há alguns dias, emissários de Sua Santidade, o papa Clemente V, tinham chegado finalmente a Paris. Clemente era conhecido por ser o fantoche de Filipe e fora por esse motivo que De Molay levara florins de ouro e doze cavalos carregados com prata para França no Verão passado. Se as coisas tomassem o pior dos rumos, esse dinheiro seria usado para comprar a boa vontade do rei. Todavia, subestimara Filipe. O rei não desejava um tributo parcial. Ambicionava sim todos os bens da Ordem. Com esse intuito, tinham sido levantadas acusações de heresia e centenas de templários foram presos num só dia. Aos emissários do papa, De Molay revelara a tortura de que fora alvo e abjurara publicamente a sua confissão, decisão que acarretaria retaliações. Por esse motivo, disse: Imagino que Filipe esteja neste momento preocupado que o seu papa afinal de contas tenha espinha dorsal. Não me parece que insultar o seu captor seja uma atitude sensata, afirmou Imbert. E o que seria sensato? Fazer o que mandamos. E depois que contas daria ao meu Deus? O vosso Deus está à espera que vós e todos os outros Cavaleiros Templários respondais. Imbert falava na sua habitual voz metálica e desprovida de quaisquer emoções.
De Molay não tinha nenhum desejo de continuar a argumentar. Ao longo dos últimos três meses suportara interrogatórios intermináveis e privação do sono. Fora colocado a ferros, os pés besuntados com gordura e colocados perto de chamas, e o corpo esticado na roda. Também fora obrigado a assistir à tortura de outros templários, não passando a maior parte de simples agricultores, diplomatas, navegadores, artífices, guarda-livros e eclesiásticos. Já se envergonhava o suficiente das coisas que confessara e não estava disposto a dizer mais nada. Permaneceu deitado na malcheirosa cama e esperou que o carcereiro saísse. Imbert fez sinal e dois guardas entraram na cela e colocaram De Molay de pé. Trazei-o, ordenou. De Molay fora preso no Templo de Paris e ali mantido desde Outubro. A alta torre com quatro torreões de canto era um dos quartéis-generais dos templários, um centro financeiro, e não possuía qualquer câmara de tortura. Imbert vira-se forçado a improvisar e convertera a capela num lugar de inimaginável angústia, que De Molay visitara repetidas vezes ao longo dos últimos três meses. De Molay foi arrastado para o interior da capela e trazido até ao centro do chão axadrezado. Muitos irmãos haviam sido admitidos na Ordem sob aquele tecto ornamentado de estrelas. Segundo sei, começou Imbert, é aqui que tem lugar a mais secreta das vossas cerimónias. O francês, que envergava vestes negras, dirigiu-se a um dos lados da grande sala onde se encontrava um receptáculo esculpido que De Molay conhecia bem. Já observei o conteúdo desta arca. Contém uma caveira humana, dois fémures e uma mortalha branca. Curioso, não é? Não estava disposto a revelar mais nada. Em vez disso, pensou nas palavras que cada postulante proferia quando era recebido na Ordem. Sofrerei todas as penas que Deus achar por justas. Muitos dos vossos irmãos contaram-me de que modo estes objectos eram usados. Imbert abanou a cabeça. A vossa Ordem transformou-se numa coisa revoltante. Aquele comentário foi a gota de água. Como servos do servo de Deus, prestamos contas exclusivamente ao nosso papa. Só ele nos pode julgar». In Steve Berry, O Legado dos Templários, 2006, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-808-9.

Cortesia PdomQuixote/JDACT

O Cego de Sevilha. Robert Wilson. «Teve uma sensação que beirava a satisfação, ao passar pelas portadas vermelhas da Puerta del Príncipe, na fachada da Plaza de Toros de La Maestranza, prestes a receber as primeiras touradas da semana que antecedia a Feria de Abril»

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«(…) Um ponto de luz, pequeno como uma estrela, perfurou a grande cúpula. Cresceu em círculo e tirou-o do seu poço negro. Não, quero ficar. Deixem-me aqui nas trevas da masmorra. Mas se sentia inexoravelmente arrastado, atirado para dentro do círculo em expansão, até ressurgir na sala, onde continuava James Cagney, e agora uma moça, que não representava a única diferença que havia a registar. Tinha um fio eléctrico lhe vincando o rosto. Tinha sido apertado com força por debaixo do nariz e atava-o ao espaldar alto da cadeira, de tal modo que sentia os contornos esculpidos de uma espécie de antigo brasão lhe penetrando no couro cabeludo. Mas havia mais. Valha-me Maria, Mãe de Cristo, Virgen de la Macarena, de la... De la Esperanza... O que me fizeram? Sentia lágrimas quentes nas bochechas, correndo pelos lados do rosto até aos cantos da boca. Caíam-lhe pesadamente na camisa branca. Deixavam um sabor de metal adocicado entre os dentes. O que me fizeram. A tela da televisão rolou na direcção dele e se deteve junto dos seus joelhos. Estavam acontecendo demasiadas coisas ao mesmo tempo. Cagney beijava a moça, provocadoramente. A corda se enfiava em seu septo. O pânico crescia dos pés, se espalhando violentamente pelo corpo, reunindo mais pânico pelo caminho, se afunilando à entrada dos órgãos, se dirigindo veloz para a aorta em compressão. Irreprimível. Imbatível. Impensável. Tinha o cérebro lívido, os olhos ardendo, as lágrimas irrompendo sem cessar. As pálpebras, rastilhos queimando na escuridão, avançavam sobre as pupilas negras e brilhantes, ferindo o branco dos olhos. Surgiu um conta-gotas na sua visão incendiada, com uma trémula gota de orvalho suspensa no tubo de vidro. Os olhos iam absorvê-la. E pedir mais. Agora vai ver tudo, disse a voz. E eu forneço as lágrimas. A gota caiu no olho. A fita começou a rodar e gemeu. James Cagney e a moça foram consumidos por uma crescente tempestade. Depois veio a gritaria e a administração meticulosa de lágrimas.
Tudo começou no momento em que entrou naquela sala e viu aquele rosto. Tinha recebido a ligação às 8:15, precisamente quando se preparava para sair de casa: um cadáver, uma suspeita de crime e um endereço. Semana Santa. Fazia sentido que houvesse pelo menos um assassínio na Semana Santa; não que tivesse algum efeito sobre as multidões que acompanhavam a deslocação diária de Virgens Santas, tremendo nos seus andores, convergindo para a catedral. Tirou cuidadosamente o carro do casarão que pertencera ao pai, na calle Bailén. Os pneus trepidaram nos paralelepípedos das ruas estreitas e vazias. A zona antiga, relutante em acordar em qualquer época do ano, estava especialmente silenciosa àquela hora durante a Semana Santa. Entrou no largo fronteiro ao Museo de Bellas Artes. As casas caiadas, emolduradas a ocre, estavam silenciosas por detrás das palmeiras altaneiras, duas colossais árvores da borracha e grandes jacarandás que ainda não tinham florido. Abriu a janela à manhã, ainda fresca devido ao orvalho da noite anterior, e rumou ao Guadalquivir e à alameda que forma o Paseo de Cristóbal Cólon. Teve uma sensação que beirava a satisfação, ao passar pelas portadas vermelhas da Puerta del Príncipe, na fachada da Plaza de Toros de La Maestranza, prestes a receber as primeiras touradas da semana que antecedia a Feria de Abril. Isto era o mais próximo que conseguia da felicidade, nos dias que corriam, e ainda durava quando virou à direita, depois da Torre del Oro, e atravessou o rio, que estava enevoado sob os primeiros raios de sol, se afastando da parte velha da cidade. Na Plaza de Cuba, se desviou do caminho habitual de ida para o trabalho, e desceu a calle de Asunción. O novo juez de guardia, um muito jovem juiz de escala, estivera à sua espera no imaculado patamar de entrada, em mármore branco, do grande e dispendioso apartamento de Raúl Jiménez, no sexto andar do Edificio del Presidente. E tinha tentado avisá-lo.
Lembrava-se disso. Prepare-se, inspector-chefe, dissera. Para o quê? Perguntou Falcón. Durante o embaraçoso silêncio que se seguiu, o inspector-chefe Javier Falcón tinha escrutinado minuciosamente o aspecto do terno do juez de guardia, que decidiu ser italiano ou de um estilista espanhol; Adolfo Dominguez, talvez. Caro, para um jovem juiz como Esteban Calderón, de trinta e seis anos e apenas um de serviço. A aparente falta de interesse de Falcón decidiu Calderón, que não quis ser tomado por ingénuo pelo inspector-chefe do Grupo de Homicídios de Sevilla, de quarenta e cinco anos, mais de vinte dos quais passados vendo gente assassinada em Barcelona, Saragoça, Madrid e agora Sevilha. Já vai ver, disse, com um encolher de ombros nervoso. Então posso avançar? Perguntou Falcón, observando os procedimentos regulamentares com um juiz com quem nunca antes trabalhara. Calderón anuiu e disse que a Policía Científica tinha acabado de entrar no edifício e que ele podia fazer as suas observações iniciais da cena do crime. Falcón atravessou o corredor que ligava a entrada ao escritório de Raúl Jiménez, pensando em se preparar, mas sem saber como. Parou à porta da sala de estar e franziu o sobrolho. Estava vazia. Voltou-se para Calderón, que estava nesse momento de costas para ele, ditando qualquer coisa à secretária del juez, enquanto o médico forense escutava. Falcón espreitou para dentro da sala de jantar, igualmente vazia. Estavam de mudança? Perguntou. Claro, inspector-chefe, disse Calderón. A única mobília ainda no apartamento é uma cama no quarto das crianças e o escritório completo do Sr. Jiménez. Isso quer dizer que a Sra. Jiménez já se encontra na casa nova com as crianças? Não temos certeza. O meu adjunto, o inspector Ramírez, deve estar chegando. Mandem-no imediatamente vir ter comigo». In Robert Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, tradução de Ana Pires e Pedro Pla, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Tinha certeza de que a maior parte da plateia concordava comigo, mas mesmo assim ninguém teve coragem de se levantar e me defender. O silêncio foi tal que…»

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«Do jeito enigmático que lhe era peculiar, minha avó fez o possível para me ensinar a enfrentar a carnificina da vida. Cascos descontrolados, carruagens velozes, machos predatórios..., graças à avó, quando fiz 10 anos tudo isso já estava mais ou menos dominado. Infelizmente, o mundo se revelou muito diferente do nobre campo de batalha que ela me levara a esperar. O valor do que estava em jogo era irrisório, as pessoas pálidas e covardes; minhas artes de amazona de nada me valiam. E com certeza nada do que a avó me ensinara durante nossas longas tardes de chá de hortelã e monstros imaginários poderia ter me preparado para as correntes e ventos contrários do mundo académico. Naquela tarde específica de Outubro, o dia em que tudo começou, uma rajada de ira inesperada me derrubou no meio da apresentação de um artigo. Instada pelo todo-poderoso professor Vandenbosch, sentado na primeira fila, a presidente da mesa se levantou e, covardemente, passou um dedo pela garganta para me informar que eu tinha exactamente zero minuto para terminar minha apresentação. Segundo meu próprio relógio, eu estava dentro do tempo regulamentar, mas meu futuro académico dependia da aprovação daqueles distintos especialistas. Para concluir... Olhei de relance para o professor Vandenbosch: ele me encarava com um olhar belicoso, braços e pernas cruzados..., fica claro que, apesar de todas as descrições explícitas de seus hábitos reprodutivos, esses autores gregos nunca consideraram as valentes amazonas como algo mais do que companheiras fictícias e quase eróticas em seus jogos. Um burburinho de animação percorreu o auditório. Mais cedo, ao chegar do pátio chuvoso, estavam todos molhados e um tanto desanimados, mas minha apresentação obviamente contribuíra para aquecer o recinto. No entanto... Meneei a cabeça para a presidente da mesa de modo a lhe assegurar que estava quase terminando. ... mesmo sabendo que essas mulheres guerreiras sedentas de sangue não passavam de ficção, nossos autores não se acanharam em usá-las nas histórias de alerta sobre os perigos da liberdade feminina irrestrita. Por quê? Corri os olhos pela plateia, tentando contar meus aliados. Porque os gregos se sentiam obrigados a manter as esposas dentro de casa? Não se sabe. Mas com certeza esse alarmismo em relação às amazonas deve ter contribuído para justificar o tratamento inferior dado às mulheres. Assim que as palmas silenciaram, o professor Vandenbosch passou por cima da presidente da mesa, levantou-se e olhou em volta com um ar sério, esmagando com a simples força do olhar as muitas mãos levantadas. Então se virou para mim com um sorrisinho arrogante estampado no rosto.
Obrigado, Dra. Morgan. Alegra-me constatar que deixei de ser o académico mais ultrapassado de Oxford. Espero, para o seu bem, que a academia um dia volte a precisar do feminismo. De resto, fico aliviado em dizer que há muito tempo já passamos dessa fase e aposentamos o velho machado de batalha. Embora o ataque tivesse vindo disfarçado de brincadeira, foi tão absurdo que ninguém riu. Mesmo eu, presa atrás do ambão, fiquei pasma demais para ensaiar uma reacção. Tinha certeza de que a maior parte da plateia concordava comigo, mas mesmo assim ninguém teve coragem de se levantar e me defender. O silêncio foi tal que dava para ouvir o leve tamborilar das gotas de chuva no telhado de cobre. Dez torturantes minutos depois, consegui fugir do auditório e me refugiar em meio à névoa húmida de Outubro. Apertei um pouco mais o xaile em volta do corpo e tentei visualizar o bule de chá que me esperava em casa..., mas ainda estava furiosa demais. O professor Vandenbosch nunca gostara de mim. Segundo um relato particularmente maldoso, ele certa vez divertira os colegas com uma fantasia na qual eu era raptada de Oxford para estrelar uma série de TV sobre o poder da mulher. Já a minha teoria era que ele estava-me usando para atingir sua rival, Katherine Kent, minha supervisora, achando que conseguiria enfraquecer a posição dela atacando seus protegidos. Katherine, é claro, tinha-me desaconselhado a fazer outra apresentação sobre as amazonas. Se continuar nessa linha de investigação, vai virar gozo académico, afirmara ela, directa como sempre. Eu me recusava a acreditar nisso. Um dia aquele tema iria cair nas graças das pessoas e o professor Vandenbosch nada poderia fazer para sufocá-lo. Faltava só eu arrumar tempo para terminar meu livro ou, melhor de tudo, conseguir pôr as mãos no Historia Amazonum. Mais uma carta para Istambul, dessa vez de próprio punho, e quem sabe a caverna mágica de Grigor Reznik finalmente se abrisse para mim. Eu precisava tentar. Devia isso à avó.
Ao avançar cabisbaixa pela rua, eu estava preocupada demais para reparar que alguém me seguia, até que um homem me alcançou na faixa de pedestres da High Street e tomou a liberdade de me abrigar sob seu guarda-chuva. Tinha a aparência de um sessentão jovial, e com certeza não fazia parte do mundo académico: por baixo da capa impermeável sem mancha nenhuma pude ver que vestia um fato caro, e desconfiei que suas meias combinassem com a gravata. Dra. Morgan, começou ele, com um sotaque que revelava origens sul-africanas. Gostei da sua apresentação. A senhora tem um minutinho? Ele meneou a cabeça para o outro lado da rua, em direcção ao Grand Café. Posso convidá-la para beber alguma coisa? A senhora parece estar precisando. Que gentileza... Olhei para o relógio. Mas infelizmente estou atrasada para outro compromisso. E estava mesmo. Aquela era a semana de selecção de novos membros no clube universitário de esgrima e eu prometera passar no final do dia para ajudar na demonstração dos equipamentos. Bem a calhar, por sinal, já que estava mais que disposta a atacar alguns inimigos imaginários. Ah..., fez o sujeito, mas foi me seguindo pela rua, e as pontas do guarda-chuva espetaram meu cabelo. E mais tarde? A senhora está livre hoje à noite? Hesitei. Os olhos daquele homem tinham um quê perturbador: mais intensos do que o normal e com um tom meio amarelado, não muito diferente do das corujas no alto das estantes no escritório do meu pai. Em vez de virar na Magpie Lane, que era escura e quase deserta, parei na esquina e exibi o que deveria ser um sorriso simpático. Acho que não ouvi direito o seu nome. John Ludwig. Tome... Ele revirou os bolsos por alguns instantes e fez uma careta. Estou sem cartão. Não faz mal. Tenho um convite a lhe fazer. Ele me encarou com os olhos semicerrados, atento, como para se certificar do meu valor. A fundação para a qual trabalho fez uma descoberta importantíssima, falou, mas fez uma pausa e franziu o cenho, talvez incomodado por estarmos na rua. Tem certeza de que não posso lhe oferecer uma bebida?» In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-453-0.

Cortesia de EArqueiro/JDACT

A Feiticeira de Florença. Salman Rushdie. «Alerta!, dizia a torre. Você está entrando no reino do Rei Elefante, um soberano tão rico de paquidermes que pode usar os dentes de milhares de animais só para me decorar»

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«À última luz do dia o lago a refulgir abaixo da cidade-palácio parecia um mar de ouro fundido. Um viajante que chegasse por ali ao entardecer, este viajante, chegando por ali agora, por esta estrada à beira do lago, poderia achar que estivesse se aproximando do trono de um monarca tão fabulosamente rico que permite que uma parte de seu tesouro seja vertida numa gigante depressão de terra para deslumbrar e intimidar seus hóspedes. E grande como era o lago de ouro, devia ser apenas uma gota do mar de sua maior fortuna, a imaginação do viajante não conseguia nem imaginar o tamanho do oceano-mãe! Também não havia guardas à beira da água; seria, então, o rei tão generoso que permitia a seus súditos, e talvez até mesmo a estrangeiros e visitantes como o próprio viajante, colher do lago a líquida riqueza? Esse seria, de facto, um príncipe entre os homens, um verdadeiro Preste João, cujo reino perdido de fábula e canção continha maravilhas impossíveis. Talvez (conjecturou o viajante) a fonte da eterna juventude ficasse por trás das muralhas da cidade, talvez até mesmo o legendário portal do Paraíso na Terra ficasse em algum lugar nas redondezas. Mas então o sol desceu abaixo do horizonte, o ouro mergulhou abaixo da superfície da água e se perdeu. Sereias e serpentes o guardariam até voltar a luz do dia. Até então, a água em si seria o único tesouro disponível, uma bênção que o viajante sedento aceitou agradecido. O estranho estava num carro de bois, mas em vez de ir sentado nas ásperas almofadas de dentro ia em pé, como um deus, apoiado com mão displicente no guarda-corpo da treliça de madeira que emoldurava o carro. O rodar de um carro de bois nunca é macio, o carro de duas rodas pulava e sacudia ao ritmo dos cascos dos animais, sujeito também às irregularidades da estrada sob suas rodas. Mesmo assim, o viajante ia de pé, parecendo despreocupado e contente. O cocheiro desistira havia muito de gritar com ele, primeiro tomando o estrangeiro por um bobo, se queria morrer na estrada, que morresse, porque ninguém naquela terra ia lamentar! Depressa, porém, o desdém do cocheiro deu lugar a uma relutante admiração. O homem podia, sim, ser bobo, podia-se até dizer que tinha uma cara de bobo bonita demais e usava roupas de bobo inadequadas, um casaco de losangos coloridos de couro, naquele calor!, mas seu equilíbrio era impecável, de se admirar. O touro marchava em frente, as rodas do carro nos buracos e pedras, mas o homem de pé mal oscilava e conseguia, de alguma forma, manter a elegância. Um bobo elegante, o cocheiro pensou, ou talvez não fosse bobo nada. Talvez alguém a se respeitar. Se tinha algum defeito, era a ostentação, a vontade de ser não apenas ele próprio mas uma representação de si mesmo e, o cocheiro pensou, porque aqui todo mundo é um pouco assim também, então esse homem não é tão estranho no meio da gente afinal. Bastou o passageiro dizer que estava com sede e o cocheiro se viu indo até a beira da água para buscar bebida para o estrangeiro em um recipiente feito com uma cabaça envernizada que levantou para o outro pegar, como se ele fosse, ora, algum aristocrata que devia ser servido. Você fica parado aí feito alguém importante, e eu saio correndo para te servir, disse o cocheiro, de testa franzida. Não sei por que trato você tão bem. Quem te deu o direito de me dar ordens? O que você é, afinal? Não é um nobre, isso com certeza, senão não ia estar neste carro. Mesmo assim, tem essa pose. Então você deve ser algum tipo de malandro. O outro bebeu sedento na cabaça. A água escorria pelos cantos da boca por seu queixo barbeado como uma barba líquida. Depois, devolveu a cabaça vazia, soltou um suspiro de satisfação e enxugou a barba. O que eu sou?, perguntou, como se falasse consigo mesmo, mas usando a linguagem do próprio cocheiro. Eu sou um homem que tem um segredo, isso é o que eu sou, um segredo que só o ouvido do imperador pode ouvir. O cocheiro ficou mais tranquilo: o sujeito era um bobo, afinal. Não precisava tratá-lo com respeito. Guarde o seu segredo, disse. Segredo é coisa de criança, e de espião. O estrangeiro desceu do carro na frente do caravançarai, onde todas as viagens terminavam e começavam. Era surpreendentemente alto e levava uma bolsa de tecido grosso. E de feiticeiras, disse ele ao cocheiro do carro de bois. E de amantes também. E de reis.
No caravançarai tudo era alvoroço e barulho. Cuidavam dos animais, cavalos, camelos, bois, burros, cabras, enquanto outros animais, indomáveis, corriam soltos: macacões gritalhões, cachorros que não eram de ninguém. Periquitos explodiam guinchando como fogos de artifício verdes no céu. Os cocheiros trabalhavam, os carpinteiros, e em armazéns nos quatro cantos da enorme praça homens planejavam suas viagens, estocando comida, velas, óleo, sabão e cordas. Cules de turbante, camisas vermelhas e dhotis corriam sem cessar para lá e para cá com trouxas de tamanho e peso inacreditáveis sobre a cabeça. Havia, no geral, muita carga e descarga de mercadorias. Ali se encontrava acomodação barata para a noite, camas de corda e madeira cobertas com espinhosos colchões de crina de cavalo, enfileiradas militarmente sobre os tectos dos prédios de um só andar que cercavam o enorme pátio do caravançarai, camas onde um homem podia deitar, olhar o céu e se imaginar divino. Além, para oeste, ficavam os campos murmurantes dos regimentos do imperador, recém-chegados das guerras. O exército não tinha permissão para entrar na zona dos palácios, precisava ficar ali, no sopé do morro real. Um exército desempregado, recém-chegado da batalha, tinha de ser tratado com cautela. O estranho pensou na Roma antiga. Um imperador não confiava em nenhum soldado, a não ser a sua guarda pretoriana. O viajante sabia que a confiança era uma questão que ele teria de tornar convincente. Senão, logo morreria. Não longe do caravançarai, uma torre cravejada de presas de elefante marcava o rumo do portão do palácio. Todos os elefantes pertenciam ao imperador, e ao fazer uma torre eriçada com suas presas ele demonstrava seu poder. Alerta!, dizia a torre. Você está entrando no reino do Rei Elefante, um soberano tão rico de paquidermes que pode usar os dentes de milhares de animais só para me decorar. Nessa mostra de poder da torre, o viajante reconhecia a mesma qualidade brilhante que luzia em sua própria testa como uma chama, ou uma marca do diabo; mas o homem que levantou a torre transformou em força essa qualidade que no viajante muitas vezes era vista como fraqueza. Será o poder a única justificativa para uma personalidade extrovertida?, o viajante perguntou a si mesmo e não conseguiu responder, porque se viu a esperar que a beleza pudesse ser outra desculpa também, porque ele decerto era bonito e sabia que sua aparência tinha um poder próprio». In Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-692-4.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

A Mulher de Pedra. Tariq Ali. «Sonhos inúteis. A nossa vida nunca se alterava. Uma vez no meio familiar da sua cidade e do seu país, o meu pai de pronto adoptava o comportamento e os maneirismos de um aristocrata turco»

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O Verão de 1899
«(…) Iskander Pasha duvidava dos motivos que tinham levado o filho mais novo a fazer semelhante escolha e, neste aspecto, não andava muito longe da verdade. O meu pai agia sempre com o mesmo refinamento e elegância com que se movimentara nos salões parisienses onde, durante muitos anos, exercera as funções de embaixador da Sublime Porte junto da República Francesa. Isto era o que nos contava o nosso irmão mais velho, Saiman, que fora autorizado a acompanhá-lo e fizera os seus estudos superiores na Academia de Paris, facto que o transformara num amante de tudo o que fosse francês, com excepção dos homens. Sempre que o meu pai regressava de Paris trazendo consigo móveis novos, tecidos e quadros de mulheres nuas para a ala ocidental da casa, e perfumes para as suas esposas, o nosso estado de espírito melhorava consideravelmente. Halil sussurrava: talvez, desta vez, ele se tenha transformado num homem moderno. Ríamos todos, ansiosos. Talvez pudéssemos realizar na nossa casa um baile de Ano Novo. Usaríamos vestidos, dançaríamos e beberíamos champanhe, exactamente como o nosso pai e Salman faziam em Paris e Berlim. Sonhos inúteis. A nossa vida nunca se alterava. Uma vez no meio familiar da sua cidade e do seu país, o meu pai de pronto adoptava o comportamento e os maneirismos de um aristocrata turco.
Desde o dia em que fugira para me casar, esta era a primeira vez que voltava a ser convidada para regressar à velha casa de Verão, se bem que apenas na companhia de Orhan. Dmitri e a minha adorável Emineh ficaram em casa. Talvez para o ano, prometera a minha mãe. Talvez nunca!, ripostara eu aos gritos, furiosa. A minha mãe visitara-me por três vezes, mas sempre em segredo, levando roupas para as crianças e dinheiro para mim. Agia como intermediária e, muito lentamente, as relações com o meu pai acabaram por ser restabelecidas. Começámos a comunicar um com o outro. Ao fim de dois anos a trocar cartas bem educadas e insuportavelmente formais, ele convidou-me papa levar Orhan até à casa de Verão. Sinto-me feliz por ter aceite o seu convite. Estive prestes a recusá-lo. A minha vontade era insistir que não iria ter com ele a menos que também pudesse levar a minha filha comigo, mas Dmitri, o meu marido, convencera-me de que estava a ser teimosa e idiota. Agora sinto-me satisfeita por não ter deixado que o orgulho levasse a melhor. Caso tivesse pedido desculpas pelo meu acto de desafio e implorado a seus pés para que me compreendesse, há muito que teria sido perdoada. Contrariamente à impressão que possa ter criado, Iskander Pasha não era um homem cruel nem vingativo. Tratava-se de uma criatura do seu tempo, inflexível e ortodoxo, na forma como lidava connosco.
Nessa primeira noite, enquanto Orhan dormia saí de casa e pus-me a caminhar por entre os pomares, o cheiro familiar a tomilho e à árvore da pimenta a despertar um número infinito de recordações. A Mulher de Pedra ainda lá estava, e dei por mim a segredar-lhe: regressei, Mulher de Pedra. Regressei com um rapazinho. Senti a tua falta, Mulher de Pedra. Houve muitas coisas que não pude contar ao meu marido. Nove anos é muito tempo, quando não se pode falar dos nossos próprios desejos. Três dias depois de o meu pai ter contado a Orhan a história de Yusuf Pasha, sofreu uma trombose. A porta do seu quarto encontrava-se entreaberta. As janelas que levavam à varanda estavam abertas de par em par e uma brisa suave trouxera consigo o cheiro doce dos limões. A minha mãe costumava entrar no quarto dele logo de manhã cedo para abrir as janelas, de modo que ele pudesse sentir o odor do mar. Naquela manhã, entrou no quarto e viu-o a respirar de maneira estranha, deitado de lado. A minha mãe fê-lo voltar-se. O rosto do meu pai apresentava-se mudo e pálido. Os seus olhos fixavam um qualquer ponto distante e, de maneira instintiva, ela soube que eles procuravam algo situado fora desta vida. O meu pai sentira o toque gelado da morte e não desejava prolongar a sua existência». In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000, tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea, 2002/2003, ISBN 972-105-125-X.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

As Cruzadas vistas pelos Árabes. Amin Maalouf. «Não tendo provavelmente mais nada que obter de sua vizinhança, eles tomaram, dizem, o rumo de Niceia, atravessando alguns vilarejos, todos cristãos, e apossaram-se das safras que acabavam de ser colocadas em celeiros»

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A Invasão. 1096-1100
«(…) Mesmo se o exército bizantino, dilacerado há anos por crises internas, fosse capaz de lançar-se sozinho numa Guerra de Reconquista, ninguém ignora que Alexis sempre pode apelar para auxiliares estrangeiros. Os bizantinos nunca hesitaram em recorrer aos serviços dos cavaleiros vindos do Ocidente. Mercenários com armaduras pesadas ou peregrinos a caminho da Palestina, são numerosos os franj que visitam o Oriente. Em 1096 eles não eram estranhos aos muçulmanos. Cerca de vinte anos antes, Kilij Arslan ainda não era nascido, mas os velhos emires lhe contaram, um desses aventureiros de cabelos louros, um tal de Roussel de Bailleul, que conseguira estabelecer um Estado autónomo na Asia Menor, marchou inclusive sobre Constantinopla. Apavorados, os bizantinos não tiveram outra escolha senão apelar para o pai de Kilij Arslan, que chegou a duvidar do que ouvia quando um enviado especial do basileu veio suplicando-lhe que voasse para socorrê-lo. Os cavaleiros turcos tinham-se então, de facto, dirigido para Constantinopla e conseguido vencer Roussel. Por isso, Suleiman fora generosamente recompensado em ouro, cavalos e terras.
Desde então, os bizantinos desconfiam dos franj, mas os exércitos imperiais, constantemente carentes de soldados experientes, veem-se obrigados a contratar mercenários. Não unicamente franj, aliás; os guerreiros turcos são numerosos sob as bandeiras do império cristão. E precisamente graças a compatriotas engajados no exército bizantino que Kilij Arslan fica sabendo, em Julho de 1096, que milhares de franj se aproximam de Constantinopla. O quadro pintado pelos informantes deixa-o perplexo. Esses ocidentais parecem-se muito pouco com os mercenários que se costuma ver. É verdade que há, entre eles, algumas centenas de cavaleiros e um número importante de infantes armados, mas também há milhares de mulheres, crianças, velhos em andrajos: parece um povo desalojado de suas terras por um invasor. Conta-se também que trazem todos, costuradas nas costas, faixas de tecido em forma de cruz. O jovem sultão, encontrando dificuldades em avaliar o perigo, pede aos seus agentes que dobrem a vigilância e que o deixem constantemente a par dos factos e condutas desses novos invasores. Como medida de precaução, ele manda verificar as fortificações de sua capital. As muralhas de Niceia, que tem mais de um farsakh (seis mil metros) de extensão, são coroadas por 240 torres. A sueste da cidade, as águas calmas do lago Ascanios constituem uma excelente protecção natural.
No entanto, nos primeiros dias de Agosto, a ameaça torna-se mais evidente. Os franj atravessam o Bósforo, escoltados por navios bizantinos e, mesmo sob um sol opressivo, avançam ao longo da costa. Apesar de terem sido vistos saqueando a caminho mais de uma igreja grega, pode-se ouvi-los bradar que vem exterminar os muçulmanos. Seu chefe seria um eremita chamado Pierre. Os informantes avaliam que sejam algumas dezenas de milhares, mas ninguém sabe dizer onde seus passos os levam. Parece que o imperador Alexis resolveu instalá-los em Citivot, um acampamento que ele acomodou anteriormente para outros mercenários, a menos de um dia de caminhada de Niceia. O palácio do sultão fica em estado de alerta. Enquanto os cavaleiros turcos preparam-se para alar seus cavalos a qualquer momento, assiste-se a um vaivém continuo de espiões e batedores que relatam os mínimos movimentos dos franj. Conta-se que cada manhã eles deixam o acampamento em hordas de vários milhares para explorar a vizinhança, onde saqueiam algumas fazendas e incendeiam outras, antes de voltar para Citivot, onde seus pares disputam os frutos da razia. Não há nada disso que possa realmente atemorizar os soldados do sultão. Nada também que possa preocupar seu senhor. Durante um mês, a rotina se repete. Mas eis que um dia, por volta de meados de Setembro, os franj modificam bruscamente seus hábitos. Não tendo provavelmente mais nada que obter de sua vizinhança, eles tomaram, dizem, o rumo de Niceia, atravessando alguns vilarejos, todos cristãos, e apossaram-se das safras que acabavam de ser colocadas em celeiros, nesse período de colheita, massacrando sem piedade os camponeses que tentavam resistir. Crianças de colo teriam sido queimadas vivas.
Kilij Arslan é apanhado de surpresa. Quando lhe chegam as primeiras noticias, os atacantes já estão sob os muros de sua capital; e o Sol ainda não atingia o horizonte quando os cidadãos veem subir a fumaça dos incêndios. Imediatamente, o sultão manda uma patrulha de cavaleiros, que se choca com os franj. Esmagados pelo número, os turcos são massacrados. Apenas raros sobreviventes voltam, ensanguentados, para Niceia. Vendo seu prestígio ameaçado, Kilij Arslan resolve começar a batalha imediatamente, mas os emires de seus exércitos o desaconselham. A noite já vai cair e os franj retiram-se às pressas para seu acampamento. A vingança terá que esperar. Contudo não por muito tempo. Aparentemente animados com seu sucesso, os ocidentais repetem a façanha duas semanas mais tarde. Dessa vez, o filho de Suleiman, avisado a tempo, segue passo a passo sua progressão. Uma tropa franca, compreendendo alguns cavaleiros, mas sobretudo milhares de saqueadores esfarrapados, pega a estrada de Niceia, depois, contornando a aglomeração, dirige-se para o leste e toma de surpresa a fortaleza de Xerigordon. O jovem sultão se decide. À frente de seus homens, cavalga rapidamente em direcção à pequena praça-forte onde, para comemorar sua vitória, os franj embebedam-se, incapazes de imaginar que seu destino já esteja selado. Pois Xerigordon apresenta uma armadilha que os soldados de Kilij Arslan conhecem bem, mas que esses estrangeiros inexperientes não foram capazes de descobrir: o abastecimento de água que se situava fora, bastante longe das muralhas. Então os turcos não precisam de muito tempo para interditar seu acesso. Basta-lhes tomar posição ao redor da fortaleza e não se mover mais. A sede luta por eles». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

Cortesia de Edições70/JDACT

terça-feira, 28 de junho de 2016

O Senhor do Tempo Louise Cooper. «Aí radicava toda a tristeza do assunto: no facto de que a identidade do desconhecido, cujas ardentes insinuações durante uma longínqua festa de Primeiro de Trimestre…»

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O Iniciado
«Com o amanhecer do primeiro dia da Primavera, melhorou o tempo húmido que tinha assolado a província de Wishet desde meados do Inverno. Homens que se diziam de sábios e asseguravam que tinham anunciado a mudança o consideraram um bom augúrio e, na intimidade de seus lares, os habitantes mais piedosos da província deram graças a Aeoris, o maior dos Sete Deuses. Seguindo uma tradição de séculos, todas as cidades e os povos do país celebrariam nesse dia a chegada da Primavera. O pequeno distrito do Wishet, situado a umas sete milhas terra adentro da capital da província, Porto do Verão se preparou com muita antecipação para as longas cerimónias. Como sempre, uma nutrida procissão, presidida pelo Margrave provincial, com um séquito de anciões e dignatários locais, desfilaria pela cidade até o rio, onde se realizaria o revestimento ritual e a adoração das estátuas em madeira dos Sete Deuses. Os ritos do Primeiro Dia do Trimestre podiam ser presenciados por toda a população, dos mais elevados personagens até os mais humildes, até por Estenya, uma viúva pobre que vivia com seu filho ilegítimo no bairro mais miserável da cidade e dependia para seu sustento da caridade dos membros mais afortunados de seu clã. Em um dia como aquele, Estenya percebia mais claramente que de costume sua situação deplorável, enquanto olhava sua imagem no espelho manchado pelas moscas. Seu vestido, o melhor que tinha, era velho; já estava usado quando chegou a seu poder. Repetidas lavagens tinham encolhido tanto a malha, que a barra não lhe chegava abaixo das panturrilhas. E o xaile bordado que usava, numa tentativa de ocultar a monotonia do vestido, era muito fino; serviria de pouco contra o vento de leste. Mas naquele dia, o aspecto era mais importante que a comodidade; teria que suportar o frio se não quisesse envergonhar seus parentes..., embora, reflectiu amargamente, o mais provável era que se limitassem a saudá-la brevemente durante as festas. Ela representava uma mancha em sua história imaculada, a linda e promissora moça que, inexplicavelmente, tinha cometido uma falta e pagara por ela após... Estenya procurou dar a seu rosto uma expressão que esperava que dissimulasse as rugas, que, a seus trinta anos, começavam a lhe danificar a tez, e amaldiçoou em silêncio os acontecimentos que, há doze anos, tinham-na lançado nesse caminho. Naquela ocasião, esgotada pelo parto e em um agudo estado emocional, quisera conservar seu filho contra as pressões de sua família para que o fizesse passar por filho de uma criada. Saiu com ele..., a custa de seu próprio futuro. O menino não tinha um pai que lhe desse o sobrenome de um clã, como era tradicional nos filhos varões, e a família dela se negou a quebrar as normas para outorgar ao pequeno o privilégio do sobrenome familiar. Assim, desde seu nascimento, o menino não fazia parte de nenhum clã e Estenya se viu rechaçada pela sociedade. A princípio, submeteu-se de bom grado às limitações que lhe eram impostas, mas com o tempo, ao murchar o esplendor de sua juventude, enquanto o menino, ao crescer, parecia que se afastava mais e mais dela, começou a lamentar amargamente a decisão que tinha tomado.
Mas embora tivesse pudesse livrar-se da carga do menino, duvidava muito que algum homem pudesse pensar em casar-se com ela agora. Havia muitas mulheres mais jovens e mais belas; mulheres sem um passado vergonhoso que atrapalhasse suas oportunidades. Se não tivesse sido tão estúpida, dizia-se. Um débil ruído a tirou, de repente, de seus pensamentos, e se virou, sobressaltada. O menino tinha aberto a porta e entrado no dormitório tão silenciosamente que ela não se dera conta de sua presença. Possivelmente estivesse ali dez minutos ou mais, observando-a daquela maneira inescrutável e inquietante, e seu olhar parecia dizer, como sempre, que sabia exactamente o que ela estava pensando. Quantas vezes tenho que dizer que não entre desta maneira em meu quarto? Quer me matar de susto? Sinto muito. O brilho dos estranhos olhos verdes do moço se extinguiu momentaneamente quando este baixou o olhar. Estenya lhe observou perguntando-se uma vez mais como tinha podido engendrar aquele menino. Todos os clãs do Wishet tinham certas características comuns de constituição e de cor, das que eram exemplo típico a robustez e a pele cítrica herdadas por Estenya de seu pai e de sua mãe. Mas o menino..., era já mais alto que ela, esbelto e vigoroso. Seus cabelos, negros como o azeviche, caíam emaranhados sobre os ombros, e os olhos verdes, em contraste com seu rosto pálido e magro, davam-lhe um inquietante ar felino. Talvez toda sua herança genética viesse de seu pai..., e, como sempre que Estenya pensava nisto, a ideia foi seguida do desagradável corolário: se pelo menos soubesse quem era seu pai! Aí radicava toda a tristeza do assunto: no facto de que a identidade do desconhecido, cujas ardentes insinuações durante uma longínqua festa de Primeiro de Trimestre tinha sido incapaz de resistir, fora, e continuaria sendo, um mistério. Aquele único erro tinha sido a causa de sua desgraça..., e nem sequer podia recordar o rosto daquele homem!
Observou atentamente seu filho. Não devia mostrar-se irritável nem impaciente com ele, pensou; não podia lhe jogar a culpa da situação em que se achava. Mas, entretanto, o ressentimento continuava presente, e qualquer que tivesse coração poderia compreendê-lo. Você não se penteou, acusou-lhe. Sabe como é importante que tenha hoje um bom aspecto. Se fizer que tenha de me envergonhar de você... Deixou que a ameaça flutuasse no ar sem pronunciá-la. Sim, mãe. Um brilho de rebelião brilhou nos estranhos olhos verdes, mas se extinguiu quase antes de que ela pudesse vê-lo. Ao voltar-se para sair da habitação, gritou-lhe: não quero vê-lo com o Coran. Não esqueça! Intimamente, Estenya lamentava ter que lhe impor esta restrição. Coran, o filho de sua prima, era da mesma idade que o menino, e o único bom amigo que este tinha. Mas os pais de Coran desaprovavam sua amizade, além do estritamente necessário, com um bastardo, fosse qual fosse o vínculo de sangue, e ela não se atrevia a contrariá-los. O menino não respondeu, embora ela soubesse que a tinha ouvido, e um momento mais tarde, seus passos ressonaram na escada da pequena casa desmantelada. Estenya suspirou. Não sabia se ele levaria sua advertência a sério; sempre tinha sido reservado, mas ultimamente sua mente se convertera em um livro fechado para ela. Só podia esperar, e tratar de passar aquele dia o melhor possível». In Louise Cooper, O Senhor do Tempo, O Iniciado, 1985, Digital Source, Viciados em Livros, Ebook, 2008.

Cortesia de DSource/Ebook/JDACT

A Conspiração do rei James. Phillip Depoy. «O motivo ficava-lhe sempre pouco além do alcance da mente. O próprio quarto parecia acostumado a palavras ásperas. Sim, conseguiu responder o cardeal, mas o sentido exacto…»

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Roma. 1605
«Sangue! Essa palavra tão significativa amolgou o tampo da mesa; o punho bateu repetidas vezes na madeira, de forma arrasadora e sem parar. Queremos sangue. A sala secreta, menor que um quarto de dormir, devolveu um débil eco da palavra final. Nas sombras ao longo da parede de pedra fria, um pequeno besouro negro correu sem fazer barulho para a quina. Mas, Sua Santidade, gaguejou o cardeal Venitelli, a manga trémula ao erguer a mão tão de leve, retorcendo duas vezes o solidéu roxo, esse livro é em inglês. Quem dará atenção a ele? O livro é circunstancial!, interrompeu o papa, aos berros. Se queremos reconquistar aquela ilhazinha imunda, chegou a hora. Jamais teríamos tentado fazer isso com Elizabeth, mas entregaram o trono a James. Ele é um homem orgulhoso, e agora pôs os poucos talentos literários que possui para trabalhar nessa obra. É ao mesmo tempo muito seguro de si e desequilibrado mental. Chegou a hora. Mas..., quando o senhor diz sangue... Venitelli não fazia ideia de como terminar a frase. O manto rubro do papa Clemente subia e baixava a cada trabalhosa respirada. Um colarinho branco e translúcido aflorou da roupa de baixo no pescoço. O fogo chiou na lareira do outro lado do quarto. O sangue deterá o livro. Essa parada revelará o plano de James para a Inglaterra. O plano revelado constrói a ponte de Roma a Londres. Essa ponte trará a Inglaterra de volta à Igreja. O senhor deve ver pelo menos o humor de Deus, senão o plano, nisso tudo. O quartinho de pedra no qual os dois se sentavam ficava bastante oculto. Ninguém o conhecia, além dos visitantes mais íntimos do papa. Pelo lado de fora, não se via a porta, escondida pelas pedras no longo corredor. Do lado de dentro, mal havia móveis, a não ser uma mesa e duas cadeiras. Duas grandes velas presas ao tecto iluminavam as paredes, cobertas por grossas tapeçarias de seda, que faziam o possível para absorver todo o som: cenas de caça de espantosa violência. As personagens pareciam movimentar-se aos arrancos à luz vacilante. No piso, estendia-se um pesado tapete de complicados desenhos roubado durante as Cruzadas, dizia-se, do próprio Saladino. O cardeal Venitelli sempre imaginava sentir o cheiro do acampamento dele tão logo pisava ali. Muitas vezes esforçara-se para explicar a sensação a si mesmo. O motivo ficava-lhe sempre pouco além do alcance da mente. O próprio quarto parecia acostumado a palavras ásperas. Sim, conseguiu responder o cardeal, mas o sentido exacto... Não precisa se preocupar com sentidos exactos. O papa Clemente gostava de julgar-se impaciente: isso despertava rápida acção nos subordinados. Já pusemos em andamento um certo plano, que envolve, em parte, o anfitrião dos tradutores na Christ Church, em Cambridge: um pastor chamado Marbury, protestante. Infelizmente, um homem inteligente num pântano de idiotas. Mas vamos ao que importa: um académico do grupo de Cambridge vai ser esta noite..., qual a melhor palavra? Eliminado. Quando isso acontecer, nós introduziremos no meio deles nosso anjo vingador.
Essa frase era um código bem conhecido para o cardeal, mas, querendo assegurar-se, ele começou a perguntar: com o que o senhor quer dizer... Essas tapeçarias são elegantes, não são? Clemente desviou os olhos. O outro compreendeu. Sua Santidade não devia dizer o nome do principal assassino, o anjo vingador. Assim, poderia afirmar com toda a honestidade, em futuras conversas, que não o identificara, e que certamente jamais falara com ele. Essa tarefa cabia ao cardeal; tarefa de que não gostava, ficou, portanto, com o rosto pálido e com a voz trêmula. Eu devo pedir..., pedir ao homem em questão que vá à Inglaterra e mate... Decerto que não. O papa girou a cabeça em torno dos ombros. Basta dizer-lhe que vai haver uma missão para os tradutores da Bíblia do rei James. Enfatize Bíblia. Depois diga estas palavras exactas: a volta da roda na moagem do trigo. Venitelli sentiu um punho apertar-lhe a barriga. Quantas vezes já havia transmitido essas frases em código ao tal homem, o que depois resultava em escabrosos assassinatos. A volta da roda na moagem do trigo, repetiu, balançando a cabeça. Sua Santidade sorriu, mas não o olhou. Vamos usar o homem em questão pelo talento especial dele; capacidade que só ele possui. Ele possui um telum secretus, se Nos permitem um ar dramático. Mas a verdadeira tarefa de nosso irmão..., a missão... O motivo de Nós atribuirmos essa tarefa ao senhor, meu irmão cardeal Venitelli, disse o papa, num tom tranquilizador, como a um menino de sete anos, é que o senhor raras vezes compreende a importância de qualquer situação. Mas actua com discrição. Deve entender que nada Nos impedirá de reivindicar a Inglaterra, trazê-la de volta à Madre Igreja. É o plano de Deus. Temos em mente uma série de factos, na verdade, embora possa levar vários anos para que se desenrolem, que Nos levarão a esse objectivo. Sim.
A voz de Venitelli demonstrava absoluta confusão. O Sumo Pontífice curvou-se para a frente, o rosto junto ao do subalterno, e mal falou acima de um sussurro, embora o som da sua voz parecesse o de um trovão. Este será o meu legado, entende? A História me registará como o homem que devolveu a Inglaterra à Igreja Verdadeira. E isso começa com a destruição desse livro... Essa loucura a que James aspira. O cardeal sentiu por um momento as narinas atacadas por um cheiro de camelos; ouviu fracas preces islâmicas. Embora não falasse árabe, acreditava que as rezas clamavam pelo sangue dos infiéis. Baixou o olhar para o tapete de Saladino, furioso. Seria possível uma maldição dos vencidos guerreiros muçulmanos permanecer ali, contaminando decisões tomadas naquela saleta? Talvez isso explicasse o cheiro antigo que sentia e a desconcertante veemência do papa. Está tentando pensar? Clemente fuzilou-o com os olhos. Vai pensar duas vezes em Nossas palavras? Venitelli apressou-se a empertigar-se. Mil perdões, Sua Santidade. Estendeu a mão o anel papal. O plano de Deus é glorioso, e seu nome viverá para sempre». In Phillip Depoy, A Conspiração do rei James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.

Cortesia de Prumo/JDACT