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«(…)
Para além da torre de dentes, ficava um grande poço e acima dele uma massa de
uma incompreensivelmente complexa maquinaria de água que servia ao palácio de
muitas cúpulas sobre o monte. Sem água não somos nada, o viajante pensou. Até
mesmo o imperador, privado de água, logo se transformaria em pó. A água é o
verdadeiro monarca e nós todos somos seus escravos. Uma vez, em sua terra, em
Florença, havia encontrado um homem que sabia fazer a água desaparecer. O
mágico enchia uma jarra até à boca, murmurava palavras mágicas, virava a jarra
e, em vez de líquido, dela saía pano, uma torrente de lenços de seda coloridos.
Era um truque, claro, e antes do fim do dia o viajante havia arrancado do
sujeito o seu segredo e o escondera entre seus próprios mistérios. Ele era um
homem de muitos segredos, mas apenas um apropriado a um rei. A estrada para a
muralha da cidade subia íngreme pela encosta e ao subir com ela o viajante viu
o tamanho do lugar aonde havia chegado. Era evidentemente uma das grandes cidades
do mundo, maior, parecia ao seu olhar, do que Florença, Veneza ou Roma, maior do
que qualquer cidade que o viajante já havia visto. Ele visitara Londres uma
vez; também ela uma metrópole menor que aquela. Com o fim da luz, a cidade
pareceu crescer. Densos bairros amontoavam-se fora das muralhas, muezins
cantavam de seus minaretes e à distância ele podia ver as luzes de grandes
propriedades. Fogos começaram a se acender na penumbra, como alertas. Do bojo
negro do céu veio a resposta do fogo das estrelas. Como se a terra e o céu
fossem exércitos se preparando para a batalha, pensou. Como se seus acampamentos
se aquietassem à noite e esperassem a vinda da guerra do dia. E em toda aquela
multiplicidade de ruas e em todas aquelas casas de poderosos, além, nas
planícies, não havia um homem que tivesse ouvido seu nome, nem um único que
pudesse acreditar de imediato na história que tinha para contar. Mas tinha de
contar. Atravessara o mundo para isso, e havia de contar. Andava a passos
largos e atraía muitos olhares curiosos por conta do cabelo amarelo, além de
sua altura, o cabelo loiro comprido e inegavelmente sujo esvoaçando em torno do
rosto como a água dourada do lago. O caminho subia, passava diante da torre de
presas na direcção de um portal de pedra com dois elefantes em baixo relevo, um
na frente do outro. Por esse portão, que estava aberto, vinham os ruídos de
seres humanos brincando, comendo, bebendo, farreando. Havia soldados a postos
no portão de Hatyapul, mas em atitude relaxada. As verdadeiras barreiras
estavam adiante. Aquele era um local público, um local para reuniões, compras e
prazer. Homens apressados ultrapassaram o viajante, levados por fomes e sedes.
De ambos os lados da rua calçada entre o portão externo e o interno havia
hospedarias, estalagens, barracas de comida e mascates de todo tipo. Ali se
dava o negócio eterno de comprar e ser comprado. Roupas, utensílios,
bugigangas, armas, rum. O mercado principal ficava além do portão menor, do
sul. Os moradores da cidade faziam ali suas compras e evitavam este lugar, que
era para recém-chegados ignorantes que não sabiam o preço real das coisas.
Aquele era o mercado dos trapaceiros, o mercado dos ladrões, ruidoso,
extorsivo, desprezível. Mas viajantes cansados, ignorantes do mapa da cidade e
relutantes, de qualquer forma, em caminhar até a muralha externa para o mercado
maior e mais justo, não tinham opção senão tratar com os mercadores do portão
do elefante. Suas necessidades eram urgentes e simples.
Galinhas
vivas, barulhentas de medo, penduradas de cabeça para baixo, agitadas, os pés amarrados
juntos, à espera da panela. Para vegetarianos havia outros caldeirões, mais silenciosos:
vegetais não gritam. E eram vozes femininas que o viajante ouvia no vento, ululando,
provocando, instigando, rindo para homens invisíveis? Eram mulheres que ele farejava
na aragem da noite? De qualquer forma, era tarde demais para procurar o imperador
hoje. O viajante tinha dinheiro no bolso e fizera uma viagem demorada e extensa.
Seu modo de agir era este: chegar a seu objectivo por vias indirectas, com
muitos desvios e divagações. Desde que aportara em Surat tinha passado por
Burhanpur, Handia, Sironj, Narwar, Gwalior e Dholpur até Agra, e de Agra para
ali, a nova capital. Agora queria a cama mais confortável que pudesse encontrar
e uma mulher, de preferência uma sem bigode, e, por fim, a quantidade de
esquecimento, de fuga de si mesmo, que nunca se pode encontrar nos braços de
uma mulher, mas apenas numa boa bebida forte. Depois, com seus desejos
satisfeitos, ele dormiu no perfumoso bordel, roncando, prazeroso, ao lado de
uma prostituta insone, e sonhou. Ele podia sonhar em sete línguas: italiano,
espanhol, árabe, persa, russo, inglês e português. Pegava línguas do mesmo
jeito que a maioria dos marinheiros pegava doenças; línguas eram a sua gonorreia,
sua sífilis, seu escorbuto, sua febre, sua peste. Assim que adormeceu, metade
do mundo começou a tagarelar em sua cabeça, contando incríveis histórias de viajantes.
Nesse mundo semi-descoberto, cada novo dia trazia notícias de novos
encantamentos. A visionária, reveladora poesia dos sonhos do quotidiano ainda
não havia sido esmagada pela estreita e prosaica realidade. Ele era um contador
de histórias, tinha sido atraído para fora de sua porta por histórias de
portentos, e por uma em particular, uma história que poderia fazer sua fortuna
ou, talvez, custar-lhe a vida.
A
bordo do navio pirata do milorde escocês, batizado de Scáthach em honra à deusa
da guerra de Skye, uma nau cuja tripulação durante muitos anos roubara e
pilhara alegremente para cima e para baixo do litoral da América espanhola, mas
que actualmente estava a caminho da Índia em negócios de Estado, o lânguido
clandestino de Florença evitara ser sumariamente lançado ao rio Branco do sul
da África ao tirar uma cobra-d’água viva de dentro do ouvido de um perplexo
contramestre, a qual jogara na água em seu lugar. Ele havia sido encontrado
debaixo de um escaler do castelo de proa do navio, sete dias depois de a nau
contornar o cabo Agulhas, ao pé do continente africano, usando um gibão e calça
de malha cor de mostarda, enrolado numa grande capa de retalhos feita com
losangos de couro de cores vivas como de arlequim, aninhado sobre uma pequena
bolsa de tecido grosso, dormindo um sono profundo de muitos altos roncos, sem
fazer nenhum esforço para se esconder. Ele parecia perfeitamente disposto a ser
descoberto e incrivelmente confiante em sua capacidade de charme, persuasão e
encanto. Afinal de contas, já o tinham levado bem longe. De facto, ele se
revelou um bom mágico. Transformava moedas de ouro em fumaça e fumaça amarela
de volta em ouro. Uma jarra de água doce virada de boca para baixo deixava cair
uma torrente de lenços de seda. Ele multiplicava peixes e pães com dois passes
de suas mãos elegantes, o que era uma blasfémia, claro, mas os marinheiros esfaimados
o perdoaram com facilidade. Persignando-se depressa, para se garantir contra a possível
ira de Cristo Jesus pela usurpação de seu posto por esse milagreiro moderno, engoliram
o banquete inesperado, mesmo que teologicamente insalubre». In
Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN
978-972-203-692-4.
Cortesia
de PdQuixote/JDACT