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A
Cidade sem Nós
«(…) À medida que o pavimento se
abre, sementes de mostarda, trevo e outras ervas são sopradas do Central Park e
penetram pelas fissuras, que se abrem ainda mais. No mundo actual, e antes que
elas vão muito longe, a manutenção urbana geralmente aparece, mata as sementes
e fecha as rachas. Mas, no mundo pós-pessoas, já não há ninguém para andar
constantemente a remendar Nova Iorque. As sementes são sequidas por uma das
mais prolíficas espécies exóticas, a árvore chinesa ailanthus. Mesmo no meio de oito milhões de pessoas, os ailanthus, também inocentemente conhecidos
por árvore-do-paraíso, são invasores implacáveis, capazes de criar raízes nos
pequenos espaços dos túneis subterrâneos, passando despercebidos até as suas
copas começarem a sair pelos interstícios dos passeios. No prazo de cinco anos,
sem ninguém que mate as suas sementes, as poderosas raízes da árvore-do-paraíso
levantarão passeios e criarão o caos nos esgotos, já pressionados por todos os
sacos de plástico e jornais velhos que ninguém limpa. À medida que o solo, há
muito aprisionado sob o pavimento, fica exposto ao calor e à chuva, surgem
outras espécies, e rapidamente as folhas secas se juntam aos detritos que
entopem os esgotos. As plantas pioneiras não terão de esperar que o pavimento
se desfaça. A começar pela lama que se junta nas sarjetas, começará a formar-se
uma camada de solo sobre a superfície dura e estéril de Nova Iorque, e as
sementes germinarão aí. Com muito menos material orgânico disponível, apenas poeira
soprada pelo vento e poluição urbana, foi precisamente isso que aconteceu num
viaduto abandonado da Via Férrea Central de Nova Iorque no West Side de
Manhattan. Desde que os comboios deixaram de passar por lá em 1980, às
inevitáveis árvores-do-paraíso juntou-se uma cada vez maior camada de erva e de
esfuziantes betónias, ponteadas por tufos de solidago. Em alguns locais, a linha emerge dos segundos andares de
armazéns que dantes servia para vias elevadas semeadas de açafrões selvagens,
íris, primaveras, ásteres e flores da cenoura selvagem. Por isso, muitos
nova-iorquinos, ao olharem pelas janelas no bairro artístico de Chelsea,
ficaram tão comovidos com a visão deste involuntário e florescente espaço verde
que profeticamente reclamava para si uma fatia morta da sua cidade, que foi
baptizado de Linha Alta e oficialmente classificado como parque.
Nos primeiros anos sem calor, os
canos rebentam por toda a cidade, o ciclo congelamento-descongelamento muda-se
para dentro de casa, e as coisas começam a deteriorar-se seriamente. Os
edifícios começam a gemer com a dilatação e contracção dos seus interiores; as
juntas entre as paredes e os telhados separam-se. Nesses pontos, penetra a
chuva, os rebites enferrujam, e as coberturas saltam, deixando passar a luz do
Sol. Se a cidade ainda não ardeu, arderá agora. Colectivamente, a arquitectura
de Nova Iorque não é tão combustível como, digamos, a de S. Francisco, com as
suas incendiárias madeiras vitorianas. Mas, sem bombeiros que respondam à
chamada, um raio de uma trovoada seca que incendeie um monte de ramos secos em
Central Park lançará chamas pelas ruas. No espaço de duas décadas, os
pára-raios começarão a enferrujar e a partir-se, e os fogos no telhado saltarão
de prédio em prédio, entrando pelos escritórios apainelados cheios de papel
combustível. As canalizações de gás incendeiam-se com um jorro de chamas que
rebenta com as janelas. A chuva e a neve penetram por elas, e em breve cada
chão de cimento estará a gelar e a aquecer, e a começar a partir-se. A exposição
solar e a madeira queimada acrescentarão nutrientes à crescente camada de solo
de Manhattan. As trepadeiras e heras sobem pelas paredes cobertas de líquenes,
que prosperam na ausência de poluição no ar. Falcões-de-cauda-vermelha e falcões
peregrinos fazem ninho nas altas estruturas cada vez mais esqueléticas.
No espaço de dois séculos, calcula
o vice-presidente do Jardim Botânico de Brooklyn, Steven Clemants, as árvores
colonizadoras terão substituído em grande medida as sementes pioneiras. As
goteiras sepultadas sob toneladas de folhas mortas oferecem um novo solo fértil
para os carvalhos e plátanos dos parques citadinos. As acácias e os arbustos
fixam azoto, permitindo que girassóis, capim e ageratina cresçam ao lado de
macieiras, sendo as suas sementes espalhadas pelos pássaros que proliferam. A
biodiversidade aumentará ainda mais, prevê o director de engenharia civil da
Cooper Union, Jameel Ahmad, à medida que os prédios desabam e se esmagam uns
contra os outros, e o calcário do cimento esmagado aumenta o pH do solo,
chamando árvores como o amieiro-negro e a bétula, que crescem em ambientes
menos ácidos. Ahmad, um homem caloroso de cabelo prateado que fala descrevendo
círculos com as mãos, pensa que o processo começará mais cedo do que se pensa.
Natural de Lahore, Paquistão, cidade de antigas mesquitas incrustadas de
mosaicos, ensina hoje como projectar e modificar edifícios de modo e suportarem
ataques terroristas, e adquiriu bons conhecimentos sobre fraquezas estruturais».
In
Alan Weisman, Um Mundo Sem Nós, tradução José Barreto, Estrela Polar, 2007,
ISBN 978-972-892-277-0.
Cortesia EPolar/JDACT