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Carta
II
«(…)
E o gozo, o gozo brutal, o gozo Deus, fere-me a retina, fricciona-me a
epiderme, abraça-me, deslumbra-me e puxa-me para si com seus pulsos de aço como
uma amante no cio. O vício tem recantos como uma cidade à noite. A quantos já
teria pertencido aquilo? Quem seriam? Tateio. A carne, esta coisa brutal cheia de veias, de nervos, tendões,
glândulas e ossos, cheia de instintos e misérias; a carne que sua e cheira mal;
que se desforma, se infecta, se ulcera, se cobre de gelhas, de pústulas,
verrugas e pêlos (d’ Annunzio), é mole, viscosa, flácida. Parece moída. Quantos
a terão beijado? Quantos a terão acariciado? Quantos lhe terão batido, quantos?
O pobre corpo nu corre a roda toda como um copo numa adega, amarrota-se,
enlameia-se. Toca-me a vez: os mesmos abraços que dei à minha noiva, os mesmos
beijos que dei à minha mãe dou-os agora a esta. Isto é lógico. Vender o corpo é
melhor do que vender a alma, mas vender a alma e o corpo como seria bom! Mulheres
honradas? Ah, tu crês em mulheres honradas e homens bons? És parvo. Todo o
homem atraiçoa e toda a mulher falseia. Todos mentem. Mentira é o céu, o
inferno é mentira. É mentira Deus, é mentira o Bem, o Amor e a humanidade. Em
que acredito eu? No crime e no dinheiro. O crime é Deus, o dinheiro é Deus, e de
ambos o dinheiro é maior. É por dinheiro que se compram almas, por dinheiro é
que as mulheres se vendem. Quantas almas não conterá um saco de dobrões,
quantas? A quantos corpos não poderia ele despir? Por dinheiro tudo se compra.
As bençãos das santas e o crânio dos heróis, a camisa de dormir da tua noiva e
o rosário do teu confessor. Ciganas, saltimbancos e mendigos, fidalgos e
aguardente, trapeiros e sacerdotes, coveiros e apóstolos, santos e famintos, sultanas
e cadelas, bobos e cortesãs, escravos e libertos, tudo isto é da sua coorte. O próprio
Deus, o próprio céu rende-se, quando se lhe mostra um punhado de ouro. E como o
dinheiro ri! Tu nunca ouviste o dinheiro rir? Despeja um saco de ouro e ouvirás
uma gargalhada. O som do ouro que se choca é o seu riso, e esse riso a quantos
não despedaça a alma?!
Quero que mates o teu irmão, que dispas a tua irmã
na praça pública, que esbofeteies a tua mãe. Chego-me a ti e digo-te: ouro,
terás muito ouro, um grande deboche de ouro se o fizeres. E tu não resistirás,
eu sei-o. Uma prostituta não é ninguém. aquela que se dá aos marujos e aos
ladrões, à noite, nos recantos, levando-lhes a sua carne para que se saciem,
vale tanto como a que se dá ao ministro, e a que é cortesã do papa. A vida das
primeiras é mais suada. Como elas devem odiar as mães. Pobres mulheres? É uma
vida como qualquer outra. A da esfregadeira, a da mulher a dias, a da
amortalhadeira não pesa mais, não custa mais? Aquilo rende, aquilo ainda dá
muito dinheiro. Porque não trabalham? É boa! Então quem me havia de aturar a
mim, a ti, a todo o mundo, a todos os canalhas? Quem, não me dirás? Tua irmã?
Tua mãe? O crime é um negócio, a Vida uma escravatura. A alma é escrava do
crime, a carne é escrava do gozo. Morrem? Que temos nós com isso? Todos nós
temos que morrer. Quem se lembra de uma prostituta que morre? Os corpos
perdem-se na terra e no esquecimento como as blasfémias se perdem no ar. A Vida
é uma grande cama onde existe sempre a plena orgia da carne. Lá passam as noites
uma rameira abraçada a um poeta, um bêbado no peito de uma marquesa que
empobreceu. É o panteão ignorado dessa carne infame que o homem chicoteou com
beijos. E não sei, como de cada um, assim amassado em lágrimas, não floriu uma
chaga, tanta peçonha e amargura eles continham. É a sarjeta onde se escoa a
lama da Vida, para onde a terra baba a nata da podridão». In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred
Teixeira, Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.
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