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… 8 de Julho de 2013
«(…) Consigo imaginar o toque das
mãos dele, a sua leve pressão, revigorante e protectora. Às vezes dou por mim a
tentar lembrar-me da última vez que tive alguma espécie de contacto físico
relevante com outra pessoa, nem que tenha sido um abraço ou um aperto de mão caloroso,
e sinto o coração estremecer-me.
… 9 de Julho de 2013
O monte de roupa da semana passada
ainda ali está, e parece mais sujo e mais abandonado do que há uns dias. Li
algures que um comboio, quando nos atropela, é capaz de nos arrancar a roupa do
corpo. Não é assim tão invulgar, ser atropelado por um comboio. Duas a três
centenas de mortes por ano, é o que dizem, portanto pelo menos uma dia sim, dia
não. Não sei quantas serão acidentais. Olho com atenção, enquanto o comboio passa
lentamente, à procura de sangue nas roupas, mas não vejo nada. O comboio pára
no semáforo, como de costume. Consigo ver a Jess de pé no pátio à frente das
portas duplas. Tem um vestido rosa-choque e os pés descalços. Está a olhar por
cima do ombro, para dentro de casa; deve estar a falar com o Jason, que deve
estar a fazer o pequeno-almoço. Fico de olhos presos na Jess, na casa dela, enquanto
o comboio vai arrancando. Não quero ver as outras casas; não quero sobretudo
ver a casa quatro portas abaixo, aquela que dantes era a minha.
Morei no n.º X de Blenheim Road
durante cinco anos, anos de uma felicidade absoluta e de uma miséria completa.
Agora não consigo olhar para lá. Aquela foi a minha primeira casa. Não a casa
dos meus pais, nem um apartamento partilhado com colegas: foi a minha primeira casa. Simplesmente não
consigo olhar para lá. Ou consigo, e até olho, e quero olhar, mas não quero,
pelo menos tento não olhar. Todos os dias digo a mim própria para não olhar, e
todos os dias olho para lá. Não consigo evitar, ainda que não haja lá nada que
eu queira ver, ainda que tudo o que eu vir só poderá deixar-me magoada. Ainda que
me lembre perfeitamente do que senti naquela vez em que olhei para cima e
reparei que as persianas beges do quarto do primeiro andar tinham desaparecido,
substituídas por umas cortinas quaisquer cor-de-rosa-claras; ainda que ainda me
lembre da dor que senti ao ver a Anna a regar as roseiras junto à cerca, com a
t-shirt esticada por cima da sua grande barriga, e de ter mordido o lábio até fazer
sangue.
Fecho os olhos com força e conto até
dez, quinze, vinte. Pronto, agora já desapareceu, nada há para ver. Entramos na
estação de Witney e voltamos a sair, com o comboio a acelerar a marcha à medida
que os subúrbios se diluem na suja e pardacenta região norte de Londres, as
casas geminadas substituídas por pontes cheias de grafiti e edifícios vazios
com as janelas partidas. Quanto mais nos aproximamos de Euston, mais ansiosa me
sinto; a tensão aumenta; como será o dia de hoje? Há um prédio asqueroso de
betão do lado direito da linha, uns 500 metros antes de entrarmos em Euston.
Alguém desenhou na parede uma seta a apontar para a estação junto às palavras fim
de viagem. Penso na trouxa de roupas junto à linha e sinto a garganta apertada.
O comboio da tarde, o das 17h56, é
um pouco mais lento do que o da manhã: a viagem leva uma hora e um minuto, sete
minutos a mais, apesar de parar nas mesmas estações. Pouco me importa, porque
não tenho grande pressa de voltar a Ashbury tal como não tenho grande pressa de
chegar a Londres de manhã. Não só por ser Ashbury embora o sítio seja
suficientemente mau, uma cidade-dormitório dos anos 60 que se espalhou como um
tumor no coração de Buckinghamshire. Não é melhor nem pior do que todas as outras
cidades iguais a essa, o centro cheio de cafés e lojas de telefones móveis e
sucursais da JD Sports, cercado por uma faixa de subúrbios, seguida pelo grande
cinema multiplex com hipermercado da Tesco. Vivo num quarteirão finório (mais
ou menos) e novinho em folha (assim-assim), que fica no sítio onde o coração
comercial da cidade se começa a fundir nos arrabaldes residenciais, mas não é
essa a minha casa. A minha casa é a vivenda geminada vitoriana junto ao caminho
de ferro, aquela de que eu era dona a meias. Em Ashbury não sou dona da casa,
nem sequer inquilina: sou uma mera ocupante, instalada no pequeno quarto de hóspedes
do duplex desenxabido e inofensivo da Cathy, vítima do seu favor e da sua
misericórdia». In Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, 2015, tradução de José Leiria,
Topseller, 20/20 Editora, 2015, ISBN 978-989-880-054-1.
Cortesia de Topseller/JDACT