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e wikipedia
«Dizem
que morri. Meu coração parou e eu não respirava, aos olhos do mundo, estava
morta de verdade. Alguns dizem que durou três minutos, outros afirmam que foram
quatro. Pessoalmente, começo a achar que a morte é, acima de tudo, uma questão
de opinião. Sendo Julieta, acho que eu devia ter percebido que isso ia
acontecer. Mas queria muito acreditar que, dessa vez, não seria de novo a mesma
velha tragédia lamentável. Dessa vez ficaríamos juntos para sempre, Romeu e eu,
e nosso amor nunca mais seria interrompido por tenebrosos séculos de exílio e
morte. Mas não se pode tapear o Bardo. Assim, morri, como tinha que ser, quando
minhas falas se esgotaram, e tornei a cair no poso da criação. Ó alegre pena,
eis tua folha. Pronto, tinta, deixa-me começar. Que sangue é esse aqui que mancha
a pedra do portal deste sepulcro? Demorei um pouco a descobrir por onde
começar. Você poderia dizer que minha história teve início há mais de 600 anos,
com um assalto numa estrada na Toscana medieval. Ou, mais recentemente, com uma
dança e um beijo no Castello Salimbeni, quando meus pais se viram pela primeira
vez. Mas eu nunca ficaria sabendo de nada disso sem o acontecimento que mudou minha
vida da noite para o dia e me obrigou a viajar à Itália em busca do passado.
Esse acontecimento foi à morte de minha tia-avó Rose.
Umberto
levou três dias para me encontrar e me dar a triste notícia. Considerando minha
virtuosidade na arte de desaparecer, muito me admira que ele tenha conseguido.
Mas, por outro lado, Umberto sempre teve a insólita capacidade de ler meus
pensamentos e prever meus actos e, além disso, havia um número limitado de colónias
de férias dedicadas a Shakespeare na Virgínia. Quanto tempo ele ficou lá,
assistindo do fundo da plateia a representação teatral, não sei dizer. Eu
estava nos bastidores, como sempre, absorta demais com as crianças, suas falas
e a cenografia para notar qualquer outra coisa a meu redor até cair o pano.
Depois do ensaio geral daquela tarde, alguém tinha posto o frasco de veneno no
lugar errado e, na falta de coisa melhor, Romeu teria de cometer suicídio
comendo balinhas Tic-Tac. Mas elas me dão azia!, queixou-se o menino, com toda
a angústia acusatória de um adolescente de 14 anos. Excelente!, respondi,
resistindo ao impulso maternal de ajeitar a boina de veludo em sua cabeça. Isso
o ajudará a entrar no personagem. Só mais tarde, quando as luzes se acenderam e
a garotada me arrastou até o palco para me bombardear com sua gratidão, notei
aquela figura familiar parada perto da saída contemplando-me em meio aos
aplausos. Rígido e majestoso com seu fato e gravata escuros, Umberto se destacava
como um homem solitário de civilização num charco primitivo. Sempre fora assim.
Desde quando eu me lembrava, ele nunca havia usado uma única peça de roupa que
se pudesse considerar informal. Para ele, bermudas cáqui e camisas pólo eram
trajes de homens aos quais não restara nenhuma virtude, nem mesmo a vergonha. Mais
tarde, quando a investida dos pais agradecidos diminuiu e pude finalmente sair
do palco, o director do projecto me parou por um instante. Ele me segurou pelos
ombros e me sacudiu calorosamente, me conhecia bem demais para tentar me dar um
abraço.
Óptimo
trabalho com a garotada, Julie!, comentou, animado. Posso contar contigo de
novo no próximo Verão, não é? Com certeza, menti, recomeçando a andar. Estarei
por aqui. Enfim me aproximando de Umberto, busquei em vão aquele arzinho de
felicidade que costumava surgir no canto de seus olhos quando me via depois de
um certo tempo. Mas não havia nem sinal de sorriso e então compreendi por que
ele tinha vindo. Aninhando-me em silêncio em seu abraço, desejei ter o poder de
virar a realidade de cabeça para baixo, como uma ampulheta, e fazer com que a
vida não fosse um processo finito, mas uma passagem perpetuamente repetida por
um buraquinho no tempo. Não Chore principessa, murmurou ele, com o rosto
em meu cabelo, ela não gostaria disso. Não podemos viver para sempre. Ela
estava com 82 anos. Eu sei, mas..., recuei e enxuguei os olhos. Janice estava lá?
Umberto apertou os olhos, como sempre fazia quando se mencionava minha irmã gémea.
O que você acha?, retrucou. Só então, olhando de perto, vi que ele parecia
magoado e ressentido, como se houvesse passado as últimas noites bebendo até
dormir. Mas talvez isso fosse natural. Sem tia Rose, o que seria de Umberto? Até
onde minha memória alcançava os dois sempre tinham estado atrelados numa parceria
necessária de dinheiro e força bruta, ela bancando a beldade que fenecia, ele,
o mordomo paciente, e, apesar de suas diferenças, estava claro que nenhum dos
dois jamais se dispusera a tentar viver sem o outro». In Anne Fortier, Julieta, Editorial
Planeta, ISBN 978-989-657-127-6, Sextante, 2010, ISBN 978-859-929-691-2.
Cortesia
de EPlaneta/Sextante/JDACT