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O Tempo de Meu Pai
«(…) Eu também queria
ter no meu pescoço ouro e pedras preciosas. Parecia-me, por mais pequena que eu
fosse, a coisa mais maravilhosa do mundo e, ainda que hoje eu saiba que há bens
infinitamente mais desejáveis, sou sempre sensível ao seu brilho. Prometi a mim
mesma ir, quando fosse grande, interrogar os Cabiros. O que o meu pai, no
decurso da sua viagem, não pôde fazer. Ele disse-nos, quando voltou, que o
vento do Norte havia sido tão violento que o seu navio não pudera aportar em Samotrácia.
E acrescentou: vou aproveitar para ir a Tróia. A minha mãe, não sei por que
razão, pareceu irritar-se com esse projecto. Não farias tu melhor, disse-lhe
ela, em pensar no que deves fazer, quando o outro..., mas ela interrompeu-se, porque
Germânico franziu o sobrolho, dirigindo-nos o olhar, ao meu irmão e a mim. Mas
penso que em vez disso, continuou ele, como se ela não o tivesse interrompido, não
será mau que eu vá consultar os Manes dos nossos antepassados mais distantes. Talvez
eles me dêem algum conselho útil. Fiquei muito intrigada com aquelas palavras.
Caio assumiu um ar sério. No dia seguinte, roguei-lhe que me explicasse o que o
nosso pai quisera dizer. Se tu não fosses tão pequena, saberias, começou ele, que
a nossa família veio para Roma vinda do país em que nós estamos. Bom, não
exactamente, mas daquela cidade de Tróia, de que ontem se falava... Pelo que
ele se pôs a contar toda a Ilíada, seguida da Eneida. O seu pedagogo falava-lhe
disso todos os dias, para o manter tranquilo, porque Caio adorava histórias,
sobretudo aquelas em que intervinham heróis, dos quais lhe tinham dito que nós
descendíamos. E depois, ele descobria que essas altas personagens, suas
antepassadas, estavam sempre em contacto íntimo com os deuses e as deusas, o que
o lisonjeava e parecia prometer-lhe que, quando ele fosse maior, faria a mesma
coisa, teria o mesmo poder. Muitos anos mais tarde, quando ele foi imperador,
pude ver que ele jamais esquecera esse sonho da sua infância, tornado, com os
anos, uma certeza indiscutível.
Quando o nosso pai voltou de Tróia foi altura
de deixarmos Lesbos. A minha mãe estava já restabelecida e Livila podia
aguentar uma viagem. Percorríamos as costas da Ásia. A terra nunca estava
distante e fazia bom tempo. Parávamos o mais frequentemente possível num porto,
e eles são muitos, sucedem-se, naquela região. Essas escalas eram-me
agradáveis. De cada vez que o fazíamos, com Caio e o seu preceptor, íamos a
terra, e víamos o que havia para ver em todo o nosso redor. Construía-se um pouco
por todo o lado, recuperavam-se os edifícios públicos meio arruinados pela
antiguidade ou construíam-se de novo. Eu achava esses passeios um pouco longos
e, quando regressava ao barco, o sono não se fazia esperar. Estava cansada também
pela interminável tagarelice do meu irmão, que punha mil questões sobre as
cenas que estavam representadas nos frontões dos templos recém-construídos ou
ao longo dos pórticos. Eu ouvia o que lhe dizia o seu pedagogo e aprendi muito durante
os nossos passeios a Mirina, a Sardes, a Esmirna e a outros locais célebres. À
noite, sonhava com o que ouvira contar na viagem. Os Gigantes revoltados contra
Júpiter, o combate dos Titãs e dos deuses eram os companheiros do meu sono. Descobria
que o mundo que os meus olhos viam era apenas uma pequena parte de tudo o que
existe. Sendo ainda uma pequena rapariga, já não era mais surpreendida pelas
coisas do que o eram as grandes personagens, que tinham tanta ciência, mas
também tanta ignorância!
Como é que se sabia, por exemplo, a história
que eu acabava de decifrar num relevo: a bela Aracne, tão orgulhosa que
pretendera saber tecer e bordar melhor do que a deusa Minerva? E como é que se
sabia que Minerva se encolerizara e aceitara o desafio? Ambas teceram, durante
dias, mas, naturalmente, Minerva ganhou-lhe. Então, para punir a imprudente, a
deusa transformou-a numa aranha (um animal que eu detestava e que me fazia
fugir), que jamais cessava de fazer, por todo o lado, as suas teias miseráveis
e que toda a gente perseguia nos cantos poeirentos onde ela escondia a sua
vergonha. Quando eu perguntava a Caio como é que se havia tomado conhecimento
de tudo isso, ele respondia-me, desdenhosamente: foram os Antigos que o
contaram. Mas eles, como o souberam eles? Mas pelos próprios deuses! Não sabes
que os deuses nos falam, que nos transmitem oráculos?» In Pierre Grimal, Memórias de
Agripina, Lyon Edições, Romances Históricos, 2000, ISBN 972-8461-51-8.
Cortesia Lyon E./JDACT