terça-feira, 7 de junho de 2016

Horto de Incêndio. Al Berto. «… caminham vergados no zumbido dos ventos com os braços erguidos, cantam a linha do horizonte é uma lâmina corta os cabelos dos meteoros, corta as faces dos homens que espreitam para o palco nocturno…»

jdact e wikipedia

Outro dia
«cai na manhã do coração desolado
a toutinegra que longe daqui cantava e
nesse instante
a tristeza do rosto subiu aos lábios
para queimar a morte próxima do corpo e
da terra

mas se a noite vier
cheia de luzes ilegíveis de véus
de relógios parados, ergue as asas
fere o ar que te sufoca e não te mexas
para que eu fique a ver-te estilhaçar
aquilo que penso e já não escrevo, aquilo
que perdeu o nome e se bebe como cicuta
junto ao precipício e à beleza do teu corpo

depois
deixarei o dia avançar com o barco
que levanta voo e traz as más noticias dos jornais
e o cheiro espesso das coisas esquecidas, os óculos
para ver o mar que já não vejo e um dedo incendiado
esboçando na poeira uma janela de ouro
e de vento»

Horto
«homens cegos procuram a visão do amor
onde os dias ergueram esta parede
intransponível

caminham vergados no zumbido dos ventos
com os braços erguidos, cantam

a linha do horizonte é uma lâmina
corta os cabelos dos meteoros, corta
as faces dos homens que espreitam para o palco
nocturno das invisíveis cidades

escorre uma linfa prateada para o coração dos cegos
e o sono atormenta-os com os seus sonhos vazios

adormecem sempre
antes que a cinza dos olhos arda
e se disperse

no fundo do muito longe ouve-se
um lamento escuro
quando a alba se levanta de novo no horto
dos incêndios

prosseguem caminho
com a voz atada por uma corda de lírios
os cegos
são o corpo de uma fogo lento, uma sarça
que se acende subitamente por dentro»
Poemas de Al Berto, in “Horto de Incêndio

In Al Berto, Horto de Incêndio, Hablar/Falar de Poesia, nº 1, 1997, Assírio e Alvim, ISBN 978-972-370-410-5.

Cortesia AAlvim/JDACT