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«Foi
na Primavera de há três anos, no princípio da crise que abalou este lado do
mundo, que visitei a terra onde mataram Catarina Eufémia. Aconteceu por acaso;
foi também por acaso que, nessa mesma viagem, ouvi falar pela primeira vez do
homem que saltara do topo de um edifício com um manuscrito amarrado ao peito.
Naquela altura, estas duas figuras, tão distantes no tempo e na geografia,
porém tão próximas naquilo que incompreensivelmente as acabou por unir,
diziam-me menos do que nada. Começarei por aí. Nesses tempos, dificilmente a
história de um mártir me suscitaria interesse ou, o que é mais exacto e
verdadeiro, dificilmente qualquer história que não fosse a minha me suscitaria
interesse; era também exacto e verdadeiro que eu andava adormecido, num sentido
quase literal do termo, uma vez que a vida decorria na sua boçal normalidade: a
minha carreira ainda tinha importância, o meu pai ainda não enlouquecera e eu
ainda não compreendera nada, isto é, ainda não me dera conta de que a nossa
existência era indissociável da memória dos mortos. Também desconhecia que,
paradoxalmente, só ignorando os mortos poderíamos passar incólumes por esta
vida, uma vez que, ao procurar resgatá-los, eles acabariam por assombrar o
resto dos nossos dias. Naquele tempo, portanto, tudo era mais simples porque eu
me esquivava a despertar e, talvez por isso, porque qualquer despertar é
doloroso e nos obriga a ver e porventura a tentar compreender a realidade, não
podia sequer desconfiar da maneira como Catarina (e a sua história confusa,
cruel e fascinante) seria, ao mesmo tempo, a origem da minha libertação e de
todos os meus equívocos.
Quem
me levou nessa viagem ao Sul foi Raul Cinzas, o editor-chefe do jornal onde eu
trabalhava. Ou talvez minta, e tenha sido eu a levar Cinzas em viagem; pouco
importa: eu conhecia-o superficialmente como o velho comunista, porque
esse era o epíteto que as pessoas lhe colavam, não apenas dentro da redacção do
diário, mas também noutros jornais e em certos bares que os representantes mais
boémios da profissão frequentavam. Além disso, se passássemos os olhos pelos
artigos e as colunas que regularmente escrevia, era impossível não reparar no
seu profundo desgosto com o mundo contemporâneo e as sucessivas desilusões
provocadas pelos achaques do capitalismo. Juntava-se a isto um gosto excessivo
pelas tabernas, um certo pendor para a nostalgia e uma séria inclinação
panfletária para a defesa dos direitos dos trabalhadores (que o levava a fazer
greve com excessiva regularidade). Cinzas perfazia, a todos os títulos, a
imagem perfeita do velho socialista do novo século. Nada disto me interessava
muito: a única coisa que eu sabia seguramente sobre ele, nessa Primavera, era
que gostava de beber, um gosto que partilhávamos; e assim, nessa noite amena,
de brisas suaves e mornas e grilos trilando pelos montes, enquanto fazíamos o
caminho de regresso a Lisboa pela estrada que conduzia a Beja, com Cinzas
bêbedo e sentado no lugar do passageiro enquanto eu conduzia, a uma velocidade
demasiado lenta até para a estrada secundária em que nos encontrávamos (uma vez
que também eu havia abusado da aguardente que nos tinham servido no final da
refeição que se seguiu ao lançamento do livro), eu aguardava pacientemente que
ele se decidisse a trocar algumas palavras com o seu subordinado, coisa que,
nos primeiros dois meses de integração nos quadros do jornal, raramente se
dignara fazer. O que me disse foi: vamos fazer um desvio ali à frente, jovem.
Poderia
ser uma alcunha carinhosa, jovem, mas, como descobri poucos dias depois
de chegar à redacção, era apenas a alcunha que Cinzas utilizava, havia mais de
três décadas, para todos os desconhecidos que surgiam por ali, incluindo um
historiador reformado que, a certa altura, fora contratado temporariamente para
supervisionar um dossier sobre a Primeira República. Para onde vamos? Já
vais ver, respondeu. Depois, coçou o pescoço junto à maçã de adão e sacou de um
pequeno frasco de metal que escondia no bolso interior do casaco. Abriu-o, deu
um gole, passou-mo. Hesitei um segundo mas depois aceitei. Enquanto tossia
violentamente, cuspindo baforadas de álcool para o ar, dei uma guinada ao
volante e saímos da estrada em direcção a uma pequena localidade chamada
Baleizão. À entrada da aldeia, Cinzas indicou-me um caminho de terra à
esquerda.
Os
faróis do carro iluminavam agora uma série de placas que não consegui ler; ao
meter pelo caminho, ficamos imediatamente imersos em campos de longas espigas
de trigo, cujas pontas maduras uma brisa morna, quase exangue, fazia ondular,
como se dançassem em movimentos pendulares. Em frente, a estrada esburacada
conduzia a um negrume sem traço de luz; ao meu lado, contudo, Cinzas parecia
tão seguro do caminho que fazíamos que não me atrevi a perguntar-lhe nada:
reduzi a velocidade, abri completamente a janela, deixando entrar o cheiro
fértil da terra, e acendi um cigarro, aguardando uma ordem. Não sabia por que
razão ali estávamos e, na verdade, não queria saber; a reputação do editor, de
extravagante alcoólico ocasionalmente dado a acessos de cólera, era suficiente
para inibir a minha curiosidade. Na verdade, eu não gostava de Raul Cinzas. Ou
melhor: nessa altura, não me dizia rigorosamente nada, era apenas alguém que se
atravessara na minha vida por meio dos insondáveis processos do acaso que
colocam os outros no nosso caminho. Porque era meu superior hierárquico e
porque, sem a sua aprovação, os meus artigos nunca veriam a luz do dia, e um
jornalista cujos artigos não chegam às páginas é um caso perdido, tratava-o com
aquele género de aquiescência que se oferece aos tolos, feita de concordâncias
gratuitas, do ocasional elogio às suas crónicas (que me escusava a ler) e de
uma silenciosa indiferença por tudo aquilo que o velho rabugento dizia». In
João Tordo, Anatomia dos Mártires, Publicações dom Quixote, 2011, ISBN
978-972-204-875-0.
Cortesia
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