Cortesia
de wikipedia e jdact
Estudo
hermenêutico e crítico
«(…)
A obra de Pascoaes é um nunca acabar de tesouros escondidos, prontos a encher
de encantamento aquele que souber desencantá-los sob a leve camada de cinza
vulcânica que os cobre (in Génio Nocturno
de Pascoaes). Conforme a natureza e o objectivo, não nos ocuparemos dos
aspectos estéticos e estritamente literários da obra em si mesmos, ainda que,
tratando-se de um pensamento genesicamente concebido e dado à luz em modo
poético, não possamos separar o filosófico do poético. Não é nossa intenção
tratar propriamente da poesia e da literatura filosóficas do autor de Sempre, mas daquilo que desde já podemos
considerar como a sua filosofia poética. Enquanto verdadeira ou genesicamente
poética, todavia, e não apenas enquanto expressa em poesia. Por pensamento de Pascoaes
entenderemos, pois, aqui aquilo que vários críticos e comentadores têm
designado simplesmente como a sua filosofia e que, em boa verdade, se constitui
justamente como um pensamento filosófico-poético ou uma filosofia sui generis. O seu sentido e valor
epistemológico essenciais procuraremos determiná-lo em capítulo próprio. À
partida, e no próprio título que demos ao nosso estudo, evitando prematuras e
escusadas ambiguidades, preferimos designá-lo simplesmente por O Pensamento
de Teixeira de Pascoaes. Sem dúvida que nele se incluem componentes e
derivações, ora mais desenvolvidas ora mais fragmentárias, nas linhas de um
pensamento social e político, ideológico, religioso, ético, pedagógico, e até
mesmo estético. No âmbito da nossa exposição, porém, estes aspectos parcelares
serão apenas contemplados no seu essencial sentido, enquanto integrantes do corpus pascoaesiano de pensamento. A
outros, ou a outras oportunidades, deixamos a tarefa de ir atrás dessas
componentes sectoriais ou específicas em estudos de aprofundamento e
desenvolvimento. Para atingir o nosso objectivo, precisámos naturalmente de
utilizar um caminho ou um método adequado. Além do que decorre da natureza das
coisas, ele foi-nos expressamente sugerido pelo próprio Pascoaes quando diz em Os Poetas Lusíadas: … compete ao leitor
e aos antologistas subordinar as criações do Poeta a uma ordem natural e
compreensível, que parta do corpo para a alma e da terra para o céu; isto é do
menor para o maior. O objectivo de uma suma expositivamente sistemática e
integradora reclamava essa subordinação do pensamento do Poeta-Pensador a uma
ordem natural e compreensível. Isso, porém, só podia dar-se num momento segundo
do nosso trabalho. Para lá chegarmos, precisámos primeiro de ler, com
preocupação de compreender, a totalidade da obra, pela ordem cronológica da sua
produção. Ler com a preocupação de compreender significou essencialmente, para
nós, explorar hermeneuticamente o sentido dos textos, entendidos como terra
onde aquele se enraíza e oculta e de onde se abre para um céu de esplendor e
desocultação. Mais importante que reproduzir fotograficamente o corpo morto da
obra escrita foi, seguindo, ainda a sugestiva imagem do Poeta, penetrar-lhe a
alma que o anima e encontrá-la vivendo para além da morte daquele. Ler por
ordem cronológica, por sua vez, significou tentar captar o sentido evolutivo de
um pensamento a fazer-se e jamais dado como feito.
É
verdade que a obra de Pascoaes aparece como por demais complexa, anárquica e
mesmo incoerente, para poder ser reduzida a uma exposição sistematizante (tentar
uma sistematização do seu pensamento é desfocar a coerência interna da sua
obra, por vezes racionalmente incoerente, mal informada ou infundada, in A filosofia em Pascoaes). Como se
deduz, isto é verdade, se na tentativa de sistematização implicarmos a redução
do poético pensamento pascoaesiano a um pensamento abstractamente conceptual, o
que, se averigua epistemologicamente ilegítimo. No entanto, do seu estudo mais
aprofundado fica-nos a convicção de que a anarquia e a incoerência são mais
superficiais e aparentes do que profundas e reais, pertencendo mais à génese da
obra e sua tradução em texto escrito do que ao pensamento em si mesmo. O
próprio Pascoaes disso estava consciente quando escrevia: … seguir a ordem
cronológica, é lançar na desordem, quase sempre, a obra de um poeta. Neste
dito está subentendida a intuição do Autor de que, na aparente desordem e
incoerência em que foi sendo dada à luz, anda latente uma unidade solidária de
fundo, essencialmente dinâmica, a presidir e a determinar a sua construção como
obra. Aliás, não poderemos prescindir do pressuposto de que se trata de uma
obra que, no essencial, é formalmente poético-literária e de que, nela, a
lógica do discurso não é a da razão aristitélica ou filosófico-científica mas a
do génio intuitivo e espontâneo do poeta. Se lhe acresce um notável esforço de
racionalização, ele é conseguido por vias que todavia não são as do discurso
filosófico científico.
Foi
justamente esta característica formal que, no essencial, acabou por ditar, na
elaboração deste trabalho, a necessidade de uma Primeira Parte, introdutória ao
pensamento propriamente dito. Tornava-se indispensável, antes de tentar
compreender este, estudar os pressupostos dessa compreensão: a génese da obra
desde a terra-mãe do seu Autor-poeta e do seu contexto espácio-temporal, o seu
modo próprio de pensar e de se exprimir e a particular problemática
hermenêutica daí decorrente. Pareceu-nos, por outro lado, que o pensamento,
cuja matéria se expõe na Segunda Parte, ficaria melhor compreendido se
fechássemos o círculo (sempre necessariamente inacabado e paradoxalmente
aberto) da sua compreensão com uma síntese das mais relevantes marcas formais
que naquela matéria se detectam e o caracterizam. Com este trabalho, a que nos
atrevemos, além do mais, confiados em alguma prévia formação científica de base
na dupla área da filosofia e da literatura, esperamos contribuir não só para um
melhor conhecimento da obra de pensador do Poeta de Gatão, mas também,
por acréscimo, para a história da filosofia em Portugal e mesmo, no caso com
particular incidência, para aquilo que, no panorama da nossa cultura, se vai
desenhando como história da filosofia portuguesa. Como escreveu um dos seus
admiradores, José Marinho, a exegese e hermenêutica da obra de Pascoaes, que,
em boa medida, se mantém ainda secreta [...] afiguram-se decisivas [...] para o
destino da nossa filosofia radicada e universal». In Jorge Coutinho, O Pensamento
de Teixeira de Pascoaes, Estudo hermenêutico e crítico, Dissertação de
Doutoramento em Filosofia, Braga, UC Portuguesa, 1994.
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