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António,
o seu Rei
«(…)
Pêro Valdez fitou a mulher. Não estava certo de que ela continuasse a gritar ou
se era apenas ele mesmo que a ouvia ainda na sua cabeça: estamos por dom António!
O capitão olhou uma última vez aquele cenário de desolação, o que restava de 1000
homens bem preparados e armados fugindo como podiam para os barcos, carregando mortos
e feridos, implorando clemência a um adversário que não conhecia convenções de guerra.
Valdez desceu por fim do morro de onde contemplara o massacre e apressou-se também
ele. Lançou-se ao mar e nadou furiosamente para o bote que o levaria de regresso
ao galeão. Já a bordo, rosnou que se levantasse o ferro. Os que faltavam nadaram
de modo ainda mais aflito. Agora, na calmaria absurda das águas, olhou a baía em
panorâmica. Fixou um ponto negro que talvez fosse Brianda Pereira e amaldiçoou o
nome que ela gritava e repetia, António. António.
António
nasceu em 1531, em Lisboa. Era filho do infante Luís e, portanto, neto do rei Manuel
I. Pelo lado masculino da família, não havia, pois, dúvidas acerca da realeza do
sangue que lhe corria nas veias; a polémica que no futuro se levantaria em torno
da sua pretensa legitimidade enquanto possível candidato ao trono prendia-se com
a identidade da mãe. Violante Gomes tinha por alcunha a Pelicana e, se uns diziam que se tratava de uma mulher de famílias
da pequena nobreza por quem o infante Luís se teria apaixonado e com a qual casara
em segredo, outros defendiam que descendia, na verdade, de famílias judias e que
era, portanto, uma cristã-nova. Era uma acusação grave, tendo em conta que ainda
não tinham passado assim tantos anos desde que Manuel I expulsara do país os judeus
e entregara as suas crianças ao cuidado de famílias cristãs. Essa dúvida e o preconceito
que acarretava, somados ao facto de Luís ter sido prior da Ordem dos Hospitalários
em Portugal, estando por isso impossibilitado de casar sem especial dispensa do
papa, fizeram com que, durante muito tempo, António não fosse olhado como mais
do que um mero bastardo. Com a família real bem distribuída por muitos filhos e
filhas oficiais, nada levava a crer que, um dia, viesse a entrar nas cogitações
para o lugar de rei.
António
cresceu rodeado de figuras religiosas, desde logo o tio, cardeal Henrique, mas também
frei Bartolomeu dos Mártires, seu mentor durante a formação em Coimbra, e os padres
jesuítas que o instruíram depois em teologia, na cidade de Évora. Não
estranhou, pois, que fosse ordenado diácono, professasse na Ordem de Malta e
recebesse, tal como o pai, o priorado do Crato. Inesperado foi o que se passou depois:
António recusa as ordens de presbítero e decide viver no século, ser mundano ou,
como outros dirão, devasso. O comportamento poderá explicar, porventura, uma obra
de 1592, intitulada Psalmi Confessionales,
verdadeiro acto de contrição cuja autoria é atribuída a António. Por agora, o
facto era este: tinha comprado uma guerra pela qual pagaria até ao fim dos seus
dias: em 1565, é expulso do priorado pelo papa Pio IV e ganha a inimizade
eterna do tio Henrique e de dona Catarina, a regente.
Com a
reputação desfeita dentro de portas, encontra-se uma saída airosa para o neto
de Manuel I: é nomeado governador de Tânger e, em breve, estava de partida para
África, a fim de assumir as novas funções. E é justamente em África que se encontrará
com o momento determinante da sua vida e da História do país... A 4 de Agosto de
1578, António de Portugal é um dos 16 000 soldados que sobrevivem ao horror de Alcácer
Quibir. Um dos 16 000 que vêem morrer 9000 companheiros e desaparecer o rei Sebastião.
Um dos 16 000 que caem em mãos inimigas e são lançados nos calabouços do sultão.
A ascendência real e os cargos que tinha ocupado faziam dele um dos
prisioneiros mais preciosos de todo o lote, mas, com astúcia e muita fortuna, António
conseguiria convencer os captores precisamente do contrário. De que se tratava de
um dos mais pobres e anónimos soldados portugueses, acabando por ser um dos primeiros
a obter a libertação e a troco de um resgate bem mais pequeno do que pagariam os
familiares de muitos companheiros. Como sabemos, o rei Sebastião tinha desaparecido
sem deixar descendência. Aliás, tinha desaparecido levando consigo a dinastia de
Avis, pois o pai havia já morrido, bem como o avô e todos os tios. Para encontrar
o novo rei de Portugal era, pois, necessário que se saltasse para fora da ortodoxia
e rezar para que tudo corresse bem. António, acabado de regressar ao país,
apresenta logo uma primeira candidatura ao trono, mas a pretensão é-lhe
prontamente negada pelo regente: o seu
tio e inimigo de estimação, cardeal Henrique. O passado de António volta à liça:
o seu comportamento errante, mas, sobretudo, a origem duvidosa, putativo filho de
uma cristã-nova. O próprio cardeal assume o trono numa inacreditável fuga para a
frente. O problema da sucessão continuava todo lá; tinha apenas sido adiado por
alguns momentos». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das
Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
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de CdasLetras/JDACT