jdact
«(…) A
cabina estava, com efeito, seca. Antero sentiu inveja. Parecia que o comandante
tinha celebrado um pacto com a tempestade, como se ele fosse misteriosamente
mantido a salvo, enquanto as forças da natureza tentavam acabar com a vida do
resto da tripulação do navio. Talvez, porém, se desse apenas o caso de a cabina
do comandante ter a melhor localização possível naquela embarcação. Antero
pousou o lampião sobre a mesa e curvou-se sobre o pesado baú colocado por baixo
das janelas da popa. Inseriu cuidadosamente a chave na fechadura. Rodou-a uma
vez e depois uma outra. A fechadura abriu-se. Ergueu a tampa do baú. Era ali
que estavam os pacotes dos membros da tripulação. A qualquer marinheiro era
permitido fazer um pouco de tráfico por sua própria conta desde que as
quantidades envolvidas se mantivessem pequenas. Para que não chegasse a haver
contrabando, cabia aos comandantes guardar a mercadoria. Antero pôs de lado
alguns desses pacotes. Retirou do baú o seu embrulho e colocou-o em cima da
mesa. Uma após a outra, foi enovelando as tiras de cabedal que serviam de
invólucro. As folhas de tabaco crepitavam. Um suave aroma ascendeu às suas
narinas, provocando um leve prurido no nariz. Antero levantou as folhas de
cima, pondo a descoberto as de baixo, e apalpou-as. Eram grandes. Estavam
secas, tanto que delas até se esmigalhavam pequenos pedaços. Iriam indispor os
funcionários da Coroa. O rei português reclamava para si o monopólio do
comércio do tabaco. Se os guardas portuários revistassem a bagagem dos membros
da tripulação e a dele, o passageiro, deparar-se-lhes-ia aquela descoberta,
enfurecer-se-iam e isso desviar-lhes-ia a atenção. Deste modo, a grande carga
de tabaco no porão não seria posta a descoberto.
Sob as
folhas de tabaco havia ele arrumado os seus livros, os dois volumes da nova
obra de Carl Nilsson Lineu, chamada Species Plantarum. Inseridas no meio
desses livros havia folhas com os desenhos que ele mesmo, Antero, fizera.
Destacavam-se das folhas impressas do livro e acrescentara-as sempre que
acreditava ter encontrado uma planta que não figurava entre as espécies
descritas por Lineu. Dava-lhe gozo descobri-las. Em tempos havia tido esse
prazer mais amiúde, nessa altura tinha de se contentar com uma publicação
chamada Hortus Cliffortianus, na qual apenas surgiam descritas duas mil
e quinhentas espécies. Actualmente era já mais difícil conseguir encontrar uma
omissão no minucioso trabalho de investigação realizado pelos botânicos. Um dia
haveria de enviar os seus resultados a Lineu, para a Suécia, e talvez este
viesse a usá-los para completar a sua obra. A par dos livros e das folhas de
tabaco estava o pacote com os seus pertences. Abriu-o e retirou de lá o seu
relógio de bolso de prata. O mostrador indicava seis horas e trinta e nove
minutos. Era uma sensação estranha ter noção da hora certa ali no meio do mar.
O comandante precisava de saber as horas com exactidão para poder determinar a
longitude, quatro minutos equivaliam a um grau, por isso olhava regularmente
para o relógio do navio. Para além disso, porém, qual era afinal o significado
de um minuto no mar?
O
relógio fora a única recordação que mantivera. A única coisa que ainda o ligava
àquele perverso passado. A voz do comandante, com o seu tom mal-humorado,
fez-se ouvir nas suas costas. Lá em baixo a água atingiu duas caixas, nessas a
mercadoria ficou molhada. O resto permanece intacto. A minha parte mantém-se
inalterada. Isso vemos depois. Antero nem sequer se virou. Ia passando os dedos
sobre a superfície arredondada do vidro do mostrador do relógio e através das
janelas da popa olhava para o mar. O comandante Wrightson chegou-se.
Aproximou-se tanto que Antero pôde sentir o calor da respiração dele na nuca. Escute
lá, a si poderá dar gozo não cumprir a lei. Para mim não é bem assim! Se vierem
passar revista ao meu navio e encontrarem as caixas, nunca mais poderei voltar
a navegar. Vão é mandar-me executar! Antero virou-se então. As pontas dos
narizes de ambos quase se tocaram. Acha então que nesse caso eu serei poupado?
Durante esta viagem, as nossas vidas dependem uma da outra. E bem que gostaria
de saber se a minha continua em mãos em que eu possa confiar. E que tem a
perder? Há anos que está habituado a apostar tudo numa única carta. Eu
esfalfei-me a trabalhar até chegar a este posto, fiz sacrifícios, fi-los a
minha vida inteira. Nem sequer entendo bem por que razão arrisco tudo isso pelo
seu dinheiro. Os pêlos esbranquiçados das suíças do comandante tremiam e a pele
da sua face, coberta de poros grossos, enrubescera. Antero voltou a virar-se
para a mesa e embrulhou os seus pertences.
O melhor
é recompor-se rapidamente. Quando chegarmos ao porto será demasiado tarde,
voltou a colocar o embrulho no baú. E, no que diz respeito à minha vida, não
pense que me comecei a dedicar ao contrabando por vontade. Eu quis seguir os
estudos. Quis ler e aprofundar os conhecimentos sobre o modo como o mundo, esta
gigantesca máquina, funciona, mas impediram-me de fazê-lo. Acha, porventura,
prosseguiu ele, virado para o baú, que não tenho sonhos? Tenho-os, tal como
você. Há-de chegar o dia em que me deixo destas viagens, e nessa altura
começará para mim a vida que sempre quis, aquela que me negaram o direito a
ter.
Os
marinheiros iam baixando baldes presos a cordas, os quais dançavam sobre as
ondas, e não era fácil recolher água quando a embarcação navegava velozmente.
Repetidas vezes desceram os homens baldes presos a cordas até estes acertarem
nas vagas no ângulo correcto e nelas mergulharem. Içavam-nos de seguida, já
cheios, e lançavam a água sobre as tábuas do convés. Com a ajuda de vassouras
varriam-na de novo para fora, fazendo-a passar pela abertura abaixo da amurada.
A sujidade ia fluindo para o exterior. Dali a pouco o convés brilhava como um
espelho. Os cabos foram reunidos e arrumados. Marinheiros treparam às velas
quadradas e verificaram se tudo estava em conformidade. O comandante Wrightson
preparou o Fortune para entrar no porto de Lisboa. Aparentemente
pretendia disfarçar a culpa que sentia. Queria, por meio do seu navio,
projectar para o exterior uma imagem de pureza, para que a terrível mácula no
porão passasse despercebida. Que cobarde! Se alguma coisa conseguisse alcançar
com aquilo seria apenas que o navio desse ainda mais nas vistas. Que sorte
tinham aqueles que contrabandeavam à grande, dirigindo os seus próprios navios!
Para esses não havia comandantes medrosos que lhes estragassem os planos». In Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa,
2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.
Cortesia
Cletras/JDACT