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Moçambique:
essa imensa varanda sobre o Índico... In Eduardo Lourenço, 1995
«Sou
o morto. Se eu tivesse cruz ou mármore neles estaria escrito: Ermelindo Mucanga.
Mas eu faleci junto com meu nome faz quase duas décadas. Durante anos fui um
vivo de patente, gente de autorizada raça. Se vivi com direiteza,
desglorifiquei-me foi no falecimento. Me faltou cerimónia e tradição quando me
enterraram. Não tive sequer quem me dobrasse os joelhos. A pessoa deve sair do
mundo tal igual como nasceu, enrolada em poupança de tamanho. Os mortos devem
ter a discrição de ocupar pouca terra. Mas eu não ganhei acesso a cova pequena.
Minha campa estendeu-se por minha inteira dimensão, do extremo à extremidade.
Ninguém me abriu as mãos quando meu corpo ainda esfriava. Transitei-me com os
punhos fechados, chamando maldição sobre os viventes. E ainda mais: não me viraram
o rosto a encarar os montes Nkuluvumba. Nós, os Mucangas, temos obrigações para
com os antigamentes. Nossos mortos olham o lugar onde a primeira mulher saltou
a lua, arredondada de ventre e alma. Não foi só o devido funeral que me faltou.
Os desleixos foram mais longe: como eu não tivesse outros bens me sepultaram
com minha serra e o martelo. Não o deviam ter feito. Nunca se deixa entrar em
tumba nenhuns metais. Os ferros demoram mais a apodrecer que os ossos do
falecido. E ainda pior: coisa que brilha é chamatriz da maldição. Com tais
inutensílios, me arrisco a ser um desses defuntos estragadores do mundo. Todas
estas atropelias sucederam porque morri fora do meu lugar. Trabalhava longe da
minha vila natal. Carpinteirava em obras de restauro na fortaleza dos
portugueses, em São Nicolau. Deixei o mundo quando era a véspera da libertação
da minha terra. Fazia a piada: meu país nascia, em roupas de bandeira, e eu
descia ao chão, exilado da luz. Quem sabe foi bom, assim evitado de assistir a
guerras e desgraças.
Como
não me apropriaram funeral fiquei em estado de xipoco, essas almas que vagueiam
de paradeiro em desparadeiro. Sem ter sido cerimoniado acabei um morto
desencontrado da sua morte. Não ascenderei nunca ao estado de xicuembo, que são
os defuntos definitivos, com direito a serem chamados e amados pelos vivos. Sou
desses mortos a quem não cortaram o cordão desumbilical. Faço parte daqueles
que não são lembrados. Mas não ando por aí, pandemoniando os vivos. Aceitei a
prisão da cova, me guardei no sossego que compete aos falecidos. Me ajudou o
ter ficado junto a uma árvore. Na minha terra escolhem um canhoeiro. Ou uma
mafurreira. Mas aqui, nos arredores deste forte, não há senão uma magrita
frangipaneira. Enterraram-me junto a essa árvore. Sobre mim tombam as
perfumosas flores do frangipani. Tanto e tantas que eu já cheiro a pétala. Vale
a pena me adoçar assim? Porque agora só o vento me cheira. No resto, ninguém me
cuida. Disso eu já me resignei. Mesmo esses que rondam, pontuais, os cemitérios,
que sabem eles dos mortos? Medos, sombras e escuros. Até eu, falecido veterano,
conto sabedoria pelos dedos. Os mortos não sonham, isso vos digo. Os defuntos
só sonham em noites de chuva. No resto, eles são sonhados. Eu que nunca tive
quem me deitasse lembrança, eu sou sonhado por quem? Pela árvore. Só o
frangipani me dedica nocturnos pensamentos.
A
árvore do frangipani ocupa uma varanda de uma fortaleza colonial. Aquela
varanda já assistiu a muita história. Por aquele terraço escoaram escravos,
marfins e panos. Naquela pedra deflagraram canhões lusitanos sobre navios
holandeses. Nos fins do tempo colonial, se entendeu construir uma prisão para
encerrar os revolucionários que combatiam contra os portugueses. Depois da
Independência ali se improvisou um asilo para velhos. Com os terceiro-idosos, o
lugar definhou. Veio a guerra, abrindo pastos para mortes. Mas os tiros ficaram
longe do forte. Terminada a guerra, o asilo restava como herança de ninguém.
Ali se descoloriam os tempos, tudo engomado a silêncios e ausências. Nesse
destempero, como sombra de serpente, eu me ajeitava a impossível antepassado. Até
que, um dia, fui acordado por golpes e estremecimentos. Estavam a mexer na
minha tumba. Ainda pensei na minha vizinha, a toupeira, essa que ficou cega
para poder olhar as trevas. Mas não era o bicho escavadeiro. Pás e enxadas
desrespeitavam o sagrado. O que esgravatava aquela gente, avivando assim a
minha morte? Espreitei entre as vozes e entendi: os governantes me queriam
transformar num herói nacional. Me embrulhavam em glória. Já tinham posto a
correr que eu morrera em combate contra o ocupante colonial. Agora queriam os
meus restos mortais. Ou melhor, os meus restos imortais. Precisavam de um herói
mas não um qualquer. Careciam de um da minha raça, tribo e região. Para
contentar discórdias, equilibrar as descontentações. Queriam pôr em montra a
etnia, queriam raspar a casca para exibir o fruto. A nação carecia de
encenação. Ou seria o vice-versa? De necessitado eu passava a necessário. Por
isso me covavam o cemitério, bem fundo no quintal da fortaleza. Quando percebi,
até fiquei atrapalhaço. Nunca fui homem de ideias mas também não sou morto de
enrolar língua. Eu tinha que desfazer aquele engano. Caso senão eu nunca mais
teria sossego. Se faleci foi para ficar sombra sozinha. Não era para festas, arrombas
e tambores. Além disso, um herói é como o santo. Ninguém lhe ama de verdade. Se
lembram dele em urgências pessoais e aflições nacionais. Não fui amado enquanto
vivo. Dispensava, agora, essa intrujice». In Mia Couto, A Varanda do Frangipani, 1996,
Editorial Caminho, colecção Outras Margens, 2000, ISBN 978-972-211-050-1.
Cortesia
de ECaminho/JDACT