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O senhor deseja mais alguma coisa? Corada, a serigaita disponibilizava-se, como
de costume. Muito dotada nas artes do sexo, Gold andava, porém, a estranhar o
facto de, depois de um ano a fornicarem todas as semanas, ela ainda não ter
engravidado. Segundo dizia, o responsável era um xarope, receitado por uma escrava
negra, alquimia infalível que nunca deixara uma mulher ficar mal. Contudo, Hugh
Gold sentia-se sombrio naquela manhã, e já se satisfizera na noite anterior com
a senhora Locke. Recusou a dádiva da moça com um aceno da mão, evitando
olhá-la. Mal ela saiu, levantou-se e abriu a janela, saindo para a varanda.
Estava um dia bonito, fresco mas com sol, e uma neblina suave cobria a cidade
de Lisboa. Lá em baixo, na rua, as pessoas circulavam. A maioria vai a caminho
das igrejas, pensou Gold. Viu uma criança, de mão dada com o pai, e isso provocou-lhe
um pequeno mal-estar. Porque nunca lhe dera a mulher um filho?, perguntou ele,
na minha direcção, como se eu lhe pudesse responder. Há dez anos que estavam casados
e agora começava a ser tarde de mais para ela. Concluiu que devia procurar uma moçoila
mais nova, de boa saúde e ancas fortes, capaz de emprenhar. Em Lisboa, muitos comerciantes
ingleses tinham filhas em idades casadoiras. A esposa já não lhe servia: nem
para a diversão, nem para a procriação. Enchera o peito de ar, observara os
brigues e as faluas no Tejo e tomara a resolução de pedir o divórcio. Não
passaria daquele dia: mandaria a mulher recambiada para Inglaterra, ou, se ela quisesse
ficar num convento em Portugal, que ficasse, mas não iria continuar algemado a
ela. Na segunda-feira, começaria em busca de noiva, e certamente o embaixador
iria ajudá-lo.
Porque
não uma portuguesa?, perguntei-lhe. Exaltou-se: uma portuguesa é que não! Eram
católicas, o que levantava um monte de problemas, perfeitamente dispensáveis.
Era bem melhor namoriscá-las nas grades dos conventos, ou à porta das igrejas,
do que casar com elas e depois ter de aturar uma hipocrisia beata, cheia de
missais e terços, e no fim ser encornado na mesma. Reflecti no que ele dissera.
Estava há muitos anos afastado de Lisboa, mas lembrava-me de que a cidade, à
superfície casta, era na verdade profundamente devassa. Pode parecer estranho que
eu, um pirata, fale em moral, mas a verdade é que as histórias que ouvira de
Portugal eram surpreendentes. Naquele reino, a extrema religiosidade andava de
braço dado com a mais reles depravação. O exemplo mais bizarro era o anterior
rei, João V, que construíra centenas de igrejas e até o Convento de Mafra, e ao
mesmo tempo mantinha como amantes a madre superiora e algumas das freiras do
Convento de Odivelas!
Da
sua varanda, Hugh Gold fixou os olhos na Casa da Moeda, um edifício compacto e
grande, próximo de Remolares, onde se guardava o ouro do Brasil. Avaliou as
suas posses. Tinha algum dinheiro de lado, guardado num cofre da casa
comercial, e mesmo que gastasse um bom bocado com o divórcio não ficaria na
penúria. Fosse como fosse, o jeito que não lhe daria meter as mãos num pedaço
daquele ouro... Sorriu-me. Por vezes, pensara em dedicar-se à pirataria, roubar
um barco, juntar-se aos corsários argelinos, viajar até Madagáscar, apoderar-se
do ouro que vinha do Brasil antes de chegar ali, à Casa da Moeda. Contudo,
faltava-lhe a coragem para viver fora da lei. Julgo que me tinha uma certa
inveja, típica dos sedentários perante os nómadas, dos cumpridores perante os
subversivos. Mas não me comovi com estes elogios indirectos. Havia já demasiado
azedume entre nós para os elogios funcionarem como curativo. Notando-o, Hugh Gold
regressou ao relato, naquela algaraviada original que usava, misturando o
inglês e o português. A criada voltara ao quarto e dissera: a senhora pedia se fazia
o favor de descer para falar com ela. Ó menina, what ela wants?, perguntara
Gold. Diz que precisa de dinheiro, para comprar umas coisas para ela. Dinheiro?
Allright, tá bem. How much? Isso não me disse. Damn woman! Tá bem, tell her que
eu já go down. Primeiro eat, then descer. A rapariga colocara no rosto um ar
sério: ela diz que está com pressa, quer ir à missa das nove e meia! Hugh Gold
irritara-se: tá com pressa? Damn! Porquê? Why the hell? Ela não ser catholic! A
criadita concordara: isso é verdade. Nem sabe rezar o terço... Ó menina, ela go
missa e comeback! I give money depois missa! Cum raio, damn woman... Irritadíssimo,
o capitão inglês virara-se de novo para o rio, sem sequer tocar nos ovos ou no bacon.
A moça descera à sala e depois voltara a subir e entrara no quarto de novo,
anunciando, a arfar: ela diz..., que então vai..., à missa primeiro... O
capitão permanecera à varanda, silencioso. O senhor capitão não quer comer?,
insistira a criadita. No fome, respondera ele, sem se virar.
Observara
lá em baixo a porta de casa a abrir-se e vira a sua esposa a sair para a rua,
com um xaile sobre os ombros e um chapéu na cabeça. Suspirara. Nem olhara para
cima e afastara-se pela rua fora, misturando-se com os caminhantes. Fora a
última vez que a vira com vida, contou Gold. Parecia carregado de um sentimento
de culpa, pois confessou que nesse momento pensara quão bom seria ela não
voltar, resolvendo o seu quebra-cabeças sem conflitos nem vergonhas. Quão
leviano e solto é o pensamento humano. Se Gold soubesse a tragédia que se
seguiria, não teria sido capaz de desejar a morte da esposa... Reentrou no
quarto, e foi nesse preciso momento que um rumor profundo se começou a sentir. Virara-se
para a varanda, para a rua e o rio, e, de súbito, o mundo desatara a tremer. As
paredes da casa, os prédios em frente, era como se tudo estalasse. O chão
moveu-se, a criada berrara e o tecto do quarto aterrara sobre as suas cabeças.
Traves soltaram-se e uma nuvem de pó e de caliça explodiu à sua frente,
enquanto as paredes se dobravam, como se alguém as empurrasse de fora para
dentro. Aterrado, Gold pasmara com o que via: a cidade que existia entre ele e
o rio abanava, em ondas, como uma manta a ser sacudida, e depois os prédios caíam,
alguns inteiros, outros aos pedaços, desaparecendo à frente dos seus olhos como
se fossem sugados». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, o Dia de Todos
os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras (Oficina
do Livro), 2010, ISBN 978-972-46-1986-6.
Cortesia
de Casa das Letras/JDACT