sábado, 25 de junho de 2016

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Virara-se para a varanda, para a rua e o rio, e, de súbito, o mundo desatara a tremer. As paredes da casa, os prédios em frente, era como se tudo estalasse. O chão moveu-se, a criada berrara e o tecto do quarto aterrara…»

jdact

«(…) O senhor deseja mais alguma coisa? Corada, a serigaita disponibilizava-se, como de costume. Muito dotada nas artes do sexo, Gold andava, porém, a estranhar o facto de, depois de um ano a fornicarem todas as semanas, ela ainda não ter engravidado. Segundo dizia, o responsável era um xarope, receitado por uma escrava negra, alquimia infalível que nunca deixara uma mulher ficar mal. Contudo, Hugh Gold sentia-se sombrio naquela manhã, e já se satisfizera na noite anterior com a senhora Locke. Recusou a dádiva da moça com um aceno da mão, evitando olhá-la. Mal ela saiu, levantou-se e abriu a janela, saindo para a varanda. Estava um dia bonito, fresco mas com sol, e uma neblina suave cobria a cidade de Lisboa. Lá em baixo, na rua, as pessoas circulavam. A maioria vai a caminho das igrejas, pensou Gold. Viu uma criança, de mão dada com o pai, e isso provocou-lhe um pequeno mal-estar. Porque nunca lhe dera a mulher um filho?, perguntou ele, na minha direcção, como se eu lhe pudesse responder. Há dez anos que estavam casados e agora começava a ser tarde de mais para ela. Concluiu que devia procurar uma moçoila mais nova, de boa saúde e ancas fortes, capaz de emprenhar. Em Lisboa, muitos comerciantes ingleses tinham filhas em idades casadoiras. A esposa já não lhe servia: nem para a diversão, nem para a procriação. Enchera o peito de ar, observara os brigues e as faluas no Tejo e tomara a resolução de pedir o divórcio. Não passaria daquele dia: mandaria a mulher recambiada para Inglaterra, ou, se ela quisesse ficar num convento em Portugal, que ficasse, mas não iria continuar algemado a ela. Na segunda-feira, começaria em busca de noiva, e certamente o embaixador iria ajudá-lo.
Porque não uma portuguesa?, perguntei-lhe. Exaltou-se: uma portuguesa é que não! Eram católicas, o que levantava um monte de problemas, perfeitamente dispensáveis. Era bem melhor namoriscá-las nas grades dos conventos, ou à porta das igrejas, do que casar com elas e depois ter de aturar uma hipocrisia beata, cheia de missais e terços, e no fim ser encornado na mesma. Reflecti no que ele dissera. Estava há muitos anos afastado de Lisboa, mas lembrava-me de que a cidade, à superfície casta, era na verdade profundamente devassa. Pode parecer estranho que eu, um pirata, fale em moral, mas a verdade é que as histórias que ouvira de Portugal eram surpreendentes. Naquele reino, a extrema religiosidade andava de braço dado com a mais reles depravação. O exemplo mais bizarro era o anterior rei, João V, que construíra centenas de igrejas e até o Convento de Mafra, e ao mesmo tempo mantinha como amantes a madre superiora e algumas das freiras do Convento de Odivelas!
Da sua varanda, Hugh Gold fixou os olhos na Casa da Moeda, um edifício compacto e grande, próximo de Remolares, onde se guardava o ouro do Brasil. Avaliou as suas posses. Tinha algum dinheiro de lado, guardado num cofre da casa comercial, e mesmo que gastasse um bom bocado com o divórcio não ficaria na penúria. Fosse como fosse, o jeito que não lhe daria meter as mãos num pedaço daquele ouro... Sorriu-me. Por vezes, pensara em dedicar-se à pirataria, roubar um barco, juntar-se aos corsários argelinos, viajar até Madagáscar, apoderar-se do ouro que vinha do Brasil antes de chegar ali, à Casa da Moeda. Contudo, faltava-lhe a coragem para viver fora da lei. Julgo que me tinha uma certa inveja, típica dos sedentários perante os nómadas, dos cumpridores perante os subversivos. Mas não me comovi com estes elogios indirectos. Havia já demasiado azedume entre nós para os elogios funcionarem como curativo. Notando-o, Hugh Gold regressou ao relato, naquela algaraviada original que usava, misturando o inglês e o português. A criada voltara ao quarto e dissera: a senhora pedia se fazia o favor de descer para falar com ela. Ó menina, what ela wants?, perguntara Gold. Diz que precisa de dinheiro, para comprar umas coisas para ela. Dinheiro? Allright, tá bem. How much? Isso não me disse. Damn woman! Tá bem, tell her que eu já go down. Primeiro eat, then descer. A rapariga colocara no rosto um ar sério: ela diz que está com pressa, quer ir à missa das nove e meia! Hugh Gold irritara-se: tá com pressa? Damn! Porquê? Why the hell? Ela não ser catholic! A criadita concordara: isso é verdade. Nem sabe rezar o terço... Ó menina, ela go missa e comeback! I give money depois missa! Cum raio, damn woman... Irritadíssimo, o capitão inglês virara-se de novo para o rio, sem sequer tocar nos ovos ou no bacon. A moça descera à sala e depois voltara a subir e entrara no quarto de novo, anunciando, a arfar: ela diz..., que então vai..., à missa primeiro... O capitão permanecera à varanda, silencioso. O senhor capitão não quer comer?, insistira a criadita. No fome, respondera ele, sem se virar.
Observara lá em baixo a porta de casa a abrir-se e vira a sua esposa a sair para a rua, com um xaile sobre os ombros e um chapéu na cabeça. Suspirara. Nem olhara para cima e afastara-se pela rua fora, misturando-se com os caminhantes. Fora a última vez que a vira com vida, contou Gold. Parecia carregado de um sentimento de culpa, pois confessou que nesse momento pensara quão bom seria ela não voltar, resolvendo o seu quebra-cabeças sem conflitos nem vergonhas. Quão leviano e solto é o pensamento humano. Se Gold soubesse a tragédia que se seguiria, não teria sido capaz de desejar a morte da esposa... Reentrou no quarto, e foi nesse preciso momento que um rumor profundo se começou a sentir. Virara-se para a varanda, para a rua e o rio, e, de súbito, o mundo desatara a tremer. As paredes da casa, os prédios em frente, era como se tudo estalasse. O chão moveu-se, a criada berrara e o tecto do quarto aterrara sobre as suas cabeças. Traves soltaram-se e uma nuvem de pó e de caliça explodiu à sua frente, enquanto as paredes se dobravam, como se alguém as empurrasse de fora para dentro. Aterrado, Gold pasmara com o que via: a cidade que existia entre ele e o rio abanava, em ondas, como uma manta a ser sacudida, e depois os prédios caíam, alguns inteiros, outros aos pedaços, desaparecendo à frente dos seus olhos como se fossem sugados». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, o Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras (Oficina do Livro), 2010, ISBN 978-972-46-1986-6.

Cortesia de Casa das Letras/JDACT