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Como nunca estivera. As pedras não eram exactamente assim, não; não tínhamos
conseguido as pedras vermelhas de Frígia e tínhamos precisado de as substituir
por umas mais escuras de Lesbos. Contudo, lá estavam as vermelhas, unidas com
argamassa e no seu sítio. Por um instante senti-me deslumbrada com isto e
fiquei a olhar boquiaberta. Não, não era assim a não ser na nossa imaginação,
murmurei eu como se as pedras fossem brilhar e rearranjar-se ao som das minhas
palavras. Mas permaneceram teimosamente como estavam. Encolhi os ombros. Não
importava. Entrei no palácio, atravessei o amplo megarón e subi as escadas até ao mais privativo dos nossos
aposentos, os aposentos para onde Páris e eu nos retirávamos quando terminavam
finalmente as tarefas do dia e podíamos ficar a sós. As minhas passadas
ecoavam. Porque estaria tão vazio? Era como se tivesse sido enfeitiçado. Não
havia qualquer movimento, não se ouvia qualquer voz. Parei à porta do quarto. Páris
devia estar ali. Estava à minha espera. Regressara dos campos, da doma dos cavalos
mais selvagens, como tanto adorava fazer e devia estar naquela altura a beber
um copo de vinho e a massajar uma ou duas contusões resultantes do trabalho
daquele dia. Levantaria os olhos e diria: Helena, o cavalo branco de que te falei...
Abri resolutamente as portas. O quarto estava assustadoramente silencioso. Também
estava escuro. Entrei, e o sussurro do meu vestido em redor dos pés era o único
barulho. Páris?, disse eu... , a primeira palavra que proferia. Nas histórias,
as pessoas são transformadas em pedra. Mas aqui tinham desaparecido. Girei e
tornei a girar, procurando alguém nos aposentos, mas não havia nada. A concha
de Tróia permanecia, os seus palácios, paredes e ruas, mas tinha sido despojada
daquilo que a tornava verdadeiramente grandiosa, a sua gente. E Páris..., onde
estás, Páris? Se não estás aqui, na nossa casa, onde estás?
Vi a
luz do Sol e dei graças por alguém ter aberto as portadas. Agora Tróia podia
recomeçar a viver; agora o brilho do Sol iria inundá-la. As ruas encher-se-iam
de novo com pessoas e ressuscitariam. Tróia não tinha desaparecido, tinha
apenas adormecido. Agora podia acordar. Minha senhora, está na hora. Alguém
tocava no meu ombro. Dormiste demasiado tempo. Mas eu continuava agarrada a Tróia,
no quarto do meu palácio. Páris já devia ter chegado. Claro que sim! Ele ia
chegar! Sei que é difícil, mas tens de acordar. Era a voz da criada de quarto. Menelau
só pode ser enterrado uma vez. E hoje é o dia. As minhas condolências, minha
senhora. Sê forte. Menelau! Abri os olhos e olhei esgazeadamente em volta.
Aquele quarto, não era o meu quarto em Tróia. Oh, deuses! Eu estava em Esparta
e Menelau estava morto. Menelau, o meu marido espartano, estava morto. O
troiano Páris não estava ali. Já lá não estava havia trinta anos. Tróia já não
existia. Eu já nem lhe podia chamar uma ruína fumegante pois o seu fumo há
muito fora engolido pelo céu. Tróia estava tão morta que até as suas cinzas tinham
sido dispersadas.
A
minha visita a Tróia não passara de um sonho. E até aquilo que tinha permanecido
nesse sonho agradável, as muralhas, as torres, as ruas e os edifícios, tinha desaparecido.
Não restara nada. Chorei. Uma mão suave no meu ombro. Sei que sofres por ele, disse
ela. Mas mesmo assim, tens... Pus os pés fora da cama. Eu sei. Tenho de ir ao funeral.
Não, mais do que isso, tenho de o presidir. Levantei-me, ligeiramente zonza. Sei
qual é o meu dever. Minha senhora, eu não queria... Claro que não. Por favor,
escolhe as minhas roupas. Pronto, isso ia livrar-me dela. Pressionei as têmporas
com as pontas dos dedos. Menelau morto. Sim. Era verdade. A sua confissão, a sua
súplica, tudo a mesma coisa. Eu perdoava-o. Tinha sido há tanto tempo. E Páris:
as gerações vindouras comporão canções sobre nós, dissera-lhe eu. Que jovem tola
eu fora. Ele tinha desaparecido. Não se encontrava no meu sonho, e eu sabia agora
que se tinha tratado de um sonho. Páris e eu já não estávamos juntos. Não
importava. O sonho tinha-me mostrado o caminho. Eu ia regressar a Tróia após o funeral,
depois de estar tudo orientado em Esparta. Tinha de voltar a vê-la, por mais
vazia e arruinada que pudesse estar. Era onde eu tinha vivido mais plenamente,
onde Helena se tinha transformado verdadeiramente em Helena e se tornara Helena
de Tróia». In Margaret George, Helena de Tróia, 2006, tradução de Isabel Penteado,
(Chádascinco, livros com sexto sentido), Saída de Emergência, 2010, ISBN
978-989-803-276-8.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT