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e wikipedia
«O
jovem apoiou-se na janela do Lake Hotel. Juncos e caniços encobriam uma parte
do lago. Secos e amarelos no Verão, ao entrechocar-se ao menor sopro de ar,
faziam um ligeiro ruído de ossos. O céu de um azul lavado, os bosques de
carvalho e o vento das charnecas irlandesas compunham o resto da paisagem. Ele
pensava, sonhava, se angustiava. Acabara de decidir que ia visitar o distante
Império do Brasil. Talvez se casasse por lá. Poria fim à dúvida que o roia por
dentro. Era o dia 27 de Julho de 1864. Seu nome, Gastão. Tinha 21 anos e estava
em visita com seu pai, o duque de Nemours, às barracas ou acampamentos
militares em Cork. Antes visitaram Limerick, em cujas casas nobres conhecera
moças muito belas e onde dançara danças de sociedade. A torre da igreja de São
João, a mais alta da Irlanda, erguia-se orgulhosa. E, nas águas do rio Shannon,
jovens se exercitavam no remo. Era a estação dos lacaios, champagne e festas
nos palacetes derramados sobre os parques incrivelmente verdes. Um
recém-inaugurado corredor de linhas férreas cruzava os campos cobertos por onde
passaram, por séculos, vikings e normandos. No porto, percorreram os edifícios
de calcário vermelho, em estilo georgiano. No cais, os emigrantes se
amontoavam, com seus fardos, ventres vazios e pés descalços, à espera do
próximo brigue de casco profundo: o veloz clipper cutty. Ele não deixou
de observar que a população do país sangrava: nos últimos vinte anos, fugindo
da fome e da pobreza, milhares de irlandeses haviam cruzado o Atlântico na direcção
dos Estados Unidos. A viagem à Irlanda não era só turismo, hábito inaugurado
havia poucas décadas. Tinha a ver com o modelo de educação que se exigia,
então, dos jovens membros da nobreza: o do militar viril. A valorização da
honra ao longo das guerras revolucionárias, as vitórias de Napoleão, tudo isso
fazia dos soldados os depositários de um sentimento que era a divisa da Legião de
Honra, a mais alta condecoração da França: Honra e Pátria. O respeito pelo
uniforme não era vão. Fazer parte da vida militar era incorporar a defesa dessa
virtude cardeal. Mais: era lutar contra uma sociedade burguesa, decadente e
efeminada. Os membros da família Orleans representavam como ninguém esse lema.
Sinónimo de superioridade, de força e energia, seu comportamento se traduzia
por meio de leis que lhes garantiriam liberdades na vida pública e poder na
vida doméstica. Conhecer as casernas de Cork fazia parte da agenda. Mas estava
na hora de mudar de pele. E, agora, Gastão precisava começar os preparativos para
a grande operação que não seria nada alegre, como se queixou à avó, Maria
Amélia, rainha dos franceses, exilada na Inglaterra. A notícia chegou enquanto
ele desfrutava de uma real licença do Exército espanhol para visitar a família.
Exilado em Claremont, desde a queda do avô Luís Filipe de Orleans, o clã passou
os últimos anos no castelo emprestado pela rainha Vitória. Ali, Gastão riu e
chorou: brincou nos parques e enterrou a mãe e o avô. Havia cerca de quatro
anos, porém, ele servia nas fileiras do Exército espanhol, em Segóvia. Tanto o
avô quanto o pai, tios e primos eram militares de carreira e, mais do que isso,
apaixonados pela vida da caserna. Botas, uniformes e espada à cinta eram
indumentárias usuais na corte de Luís Filipe. O pai de Gastão, Luís, duque de
Nemours, junto com os tios, Henrique, duque de Aumale, e Francisco, príncipe de
Joinville, fizeram uma campanha irreprochável na
Argélia, responsabilizando-se pela tomada de Constantina, cidade onde se
concentravam as forças de resistência nacionalista. Já o primogénito Fernando,
duque de Orleans, dito o Belo, foi o
responsável pela conquista de todo o interior daquele país. Dos Orleans dizia-se
que não tinham medo e traziam o diabo no corpo! Essa campanha terminou com a
anexação da Argélia à França e com a criação dos departamentos franceses de
além-mar. A popularidade dos filhos do rei dos
franceses era visível nos aplausos que recebiam por onde passavam. Heróis de
guerra, não venciam os convites para festas e comemorações. Os netos não teriam
outro destino. As festas acabaram com a queda de Luís Filipe em 1848. Mas,
mesmo fora do poder, os jovens teriam que fazer valer a tradição militar da
família.
Em
1858, durante a guerra entre a Áustria e o Piemonte, houve uma tentativa de
colocar Gastão nas fileiras do Exército da Sardenha, que tinha
à frente o rei Vítor Manuel II e em que o primo-irmão Roberto, duque de Chartres,
servia na cavalaria dos Dragões. Em vão. Napoleão III não aceitava tantos dos
seus piores inimigos, os Orleans, defendendo os interesses da França nas
revoluções que então varriam a Europa. Outro primo, o duque de Penthièvre,
entrou na escola naval de Anápolis, nos Estados Unidos, sendo rapidamente
promovido a tenente, enquanto servia na corveta John Adams. Nesse mesmo
ano de 1864, o conde de Paris escrevia à família comunicando que estava afeito
ao Estado-Maior do general McClelland, em plena guerra civil americana. Seu
irmão, Luís Filipe, encontrava-se com ele no que ambos chamavam, entusiasmados,
de a grande máquina militar. Sob chuva e frio, se incumbiam de missões cada vez
mais difíceis. Eram aristocratas lutando em favor
das ideias republicanas e adorados pelos generais americanos. Sobre eles,
choviam elogios. O tio, príncipe de Joinville, estava lá para acompanhar as
manobras e colher os aplausos. Leitor de Os príncipes militares da Casa de
França, Gastão, porém, ainda não encontrara uma oportunidade para figurar
na galeria de sucessos ao lado dos primos. Foi então que Nemours voltou-se para
o irmão, António, o duque de Montpensier, casado com Luísa de Espanha, irmã da
rainha Isabel II. A guerra entre a Espanha e o Marrocos, em Outubro de 1859,
dava a oportunidade ao jovem Gastão de entrar na carreira de armas. No final
do ano e na condição de alferes, ele foi alistado no Regimento de Hussardos da
Princesa e 19º de Cavalaria, com a paga de quinhentos reais por mês. Em fins
de Janeiro de 1860, atravessou o estreito de Gibraltar e desembarcou em Tetuan,
cidade de mirantes, terraços e torre mourisca, na qual tremulava a bandeira
vermelha e amarela da Espanha». In Mary del Priore, O Castelo de Papel,
Editora Rocco, Wikipedia, 2013, ISBN 978-853-252-824-7.
Cortesia
de ERocco/JDACT