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António,
o seu Rei
«Os primeiros
soldados espanhóis haviam desembarcado, há cerca de uma hora, na pequena baía da
Salga, próxima de Porto Judeu. Começavam a subir a encosta, penetrando já nos pastos
desertos, onde deviam aguardar a concentração de um total de 1000 militares,
divididos em 10 batalhões. Foi quando vislumbraram a figura de uma mulher, uma mulher
que acenava com os braços, em cima de um muro feito de pedra sobre pedra. Era uma
silhueta roliça, onde começavam agora a distinguir umas feições avermelhadas, ancas
largas, que gritava estoicamente todos os impropérios que conhecia,
dedicando-os a todo o povo espanhol. Incansável, incessante, rematava depois e repetia,
com firmeza: estamos por dom António! Estamos por dom António. Os
militares acabados de desembarcar entreolharam-se e, depois, julgando-a louca, romperam
numa gargalhada colectiva. Comentaram entre eles: a julgar por aquela amostra de
sentinela local, a tomada da ilha seria ainda mais fácil do que tinham imaginado.
O que
os espanhóis não viam era que, por detrás de Brianda Pereira, rente ao solo e encostados
ao muro, fora do campo de visão dos soldados, estavam 32 terceirenses que preparavam
a largada de uma manada de gado bravo sobre o invasor. Ao mesmo tempo, não longe
dali, um pequeno exército formado por locais que nunca antes tinham pegado numa
arma, marchava na direcção de Porto Judeu. Tratava-se de cumprir o juramento feito
perante a cruz de Cristo, com a intercessão do padre Afonso Capela, pouco tempo
antes, numa pequena igreja de Angra do Heroísmo. Prometeram, na ocasião, defender
até à morte, dos espanhóis, a ilha Terceira. Como Brianda, gritaram que estavam
por António, prior do Crato, e ao lado do gado bravo que os companheiros soltariam
ao longo da baía da Salga.
Pouco
tempo passado, do alto da elevação rochosa, já o capitão espanhol Pêro Valdez observava,
atónito, pela primeira vez em muitos anos de intensos combates por mar e por terra,
a investida do gado sobre os seus homens, apavorados. Uma mancha negra e ruidosa,
levantando pó e medo por aquele descampado que terminava na rebentação das
ondas. Por entre gritos de pânico e confusas tentativas de fuga, viu muitos dos
seus soldados tombarem, desaparecerem entre dorsos e patas, demasiado assustados
para ensaiarem qualquer ataque contra aquele exército de animais em fúria, que se
lançavam contra eles sem hesitação, de corpo inteiro. Varrido o campo de batalha,
os 32 homens escondidos atrás do muro saltavam agora e reuniam o gado. Aos olhos
do invasor, à medida que o pó se abatia e o contorno de Brianda Pereira voltava
a ser visível, como estátua negra no exacto lugar onde a haviam percebido a primeira
vez, tornava-se agora evidente o erro de análise. Aquela mulher já não parecia louca,
mas o general de uma tropa mitológica, um comandante com ligações especiais à natureza,
líder de uma táctica de guerra baseada no mais eterno instinto de sobrevivência.
Ali,
de cima do muro, o corpo de Brianda balançava agora, como que imitando o embalo
dos animais. Àquele insólito teatro de guerra chegava agora o improvável exército
de populares que partira de uma igreja de Angra, julgando-se abençoado pela graça
divina e disposto a cumprir até ao fim a missão de que ele mesmo se havia incumbido,
em honra do seu rei. Vinha dar o golpe de misericórdia. Ocupar-se daquelas
sombras de soldados que o gado deixara por terra». In Alexandre Borges, Histórias
Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
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