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Exílios
(Cavalo verde)
Seis
meses antes havia escorregado em um piso encerado de hotel, em outra cidade,
batendo violentamente com a cabeça no chão. Como consequência dessa queda, teve
descolamento da retina e agora tinha sido operado. Por indicação médica, devia
permanecer quinze dias deitado, com os olhos vendados, ou seja, durante esse
lapso de tempo dependeria totalmente da mulher. A cada setenta e duas horas
aparecia o cirurgião, destapava o olho operado, comprovava que tudo ia bem e
voltava a tapá-lo. Era aconselhável que, pelo menos durante a primeira semana,
não recebesse visitas, a fim de garantir a quietude completa. Mas podia ouvir
rádio e gravador cassete. E, claro, atender o telefone. As notícias do rádio
não somente não eram tediosas, como nos bons tempos, mas às vezes chegavam a
ser arrepiantes, já que em Janeiro de 1975 costumavam aparecer dez ou doze
cadáveres diários nas lixeiras portenhas. Entre noticiários e noticiários,
entretinha-se ouvindo fitas de Chico Buarque, de Viglietti, de Nacha Guevara,
de Silvio Rodríguez, e também A Truta de Schubert e algum quarteto de
Beethoven. Outra diversão era propor imagens a si mesmo, o que passou a ser a
mais fascinante de suas actividades passivas, já que sem dúvida incluía um
elemento criador, mais original, a bem da verdade, do que o simples e textual
registo por meio da visão das imagens que a realidade ia proporcionando. Agora
não. Agora era ele quem inventava e recrutava essa realidade, e ela aparecia com
todos os seus traços e cores na parede interior de seus olhos fechados. O jogo
era estimulante. Pensar, por exemplo: agora vou criar um cavalo verde sob a
chuva e fazê-lo aparecer no reverso das pálpebras imóveis. Não se atrevia a
ordenar que o cavalo trotasse ou galopasse, porque a instrução do médico era de
que as pupilas não se movimentassem, e não tinha muita certeza, em sua recente
descoberta, se a pupila enclausurada sentiria ou não a tentação de seguir o
galope do cavalo verde. Mas em troca tomava todas as liberdades ao conceber
quadros imóveis. Digamos: três meninos (dois louros e um pretinho, como na
publicidade dos grandes monopólios norte-americanos), o primeiro com skate, o segundo com um gato e o
terceiro jogando com um bilboquê. Ou
ainda, por que não?, uma moça nua, cujas medidas pode escolher cuidadosamente antes
de concretizar a imagem. Ou uma ampla panorâmica de uma praia montevideana, com
uma área de barracas de cores muito vivas e outra, em compensação, quase
deserta, com um velho, barbudo, de short,
acompanhado de um cão que contempla o dono em estado de rígida lealdade. Então
o telefone tocou e foi muito fácil esticar a mão. Era uma boa amiga que, é
claro, sabia da operação, mas que não perguntou como estava nem se tudo tinha
corrido bem. Também sabia que o apartamento de Las Heras e Pueyrredón não dava
para a rua, excepto por uma janelinha do banheiro de onde se viam três ou
quatro metros da praça. No entanto, disse: estou ligando só para se debruçar na
varanda e ver que lindo desfile militar, bem em frente à sua casa. E desligou.
Então ele disse à mulher que olhasse pela janelinha do banheiro. O previsível:
uma blitz.
Temos
que queimar algumas coisas, disse ele, e imaginou o olhar preocupado de sua
mulher. Apesar da urgência, tratou de tranquilizá-la um pouco: não tem nada de
clandestino, mas se entram aqui e encontram coisas que podem ser compradas em
qualquer quiosque, como os relatos de Che ou a Segunda Declaração de Havana
(não digo Fanon ou Gramsci ou Lukács, pois não sabem quem são), ou alguns
números da revista Militância ou do jornal Notícias, isso basta para nos trazer
problemas. Ela foi queimando livros e jornais, dando olhadas esporádicas ao
pedacinho de praça. Teve que abrir outras janelas (as que davam para o jardim
dos fundos, que separava os dois blocos) para que saíssem a fumaça e o cheiro
de queimado. E assim foi durante vinte minutos. Ele tratava de orientá-la: na
segunda estante, o quarto e o quinto livros à esquerda, é Estética e marxismo,
em dois tomos. Viu? Óptimo, na estante de baixo estão Relatos da guerra
revolucionária e O Estado e a Revolução. Ela perguntou se devia queimar também
O cinema socialista e Marx e Picasso. Ele disse que queimasse primeiro os
outros. Esses eram mais fáceis de explicar. Não jogue as cinzas na lixeira. Use
a descarga. A fumaça o fez tossir um pouco. Será que não vai fazer mal a seus
olhos? Pode ser, mas temos que escolher o mal menor. Além do mais, creio que
não. Estão bem tapados. O telefone voltou a tocar. A amiga de novo: e então?
Gostou do desfile? Pena que terminou tão rápido, não é? Sim, disse ele
respirando fundo, foi magnífico. Que disciplina, que cor, que elegância. Os
desfiles de soldadinhos me fascinavam desde quando era um moleque. Obrigado por
avisar. Bom, não precisa queimar mais. Ao menos por hoje. Já se foram. Ela
também respirou, recolheu com a pá as últimas cinzas, jogou na privada, deu a
descarga, verificou se tinham sido levadas pela água, lavou as mãos e veio
sentar-se, já relaxada, ao lado da cama. Ele conseguiu pegar sua mão. Amanhã
queimamos o resto, disse ela, mas com calma. Tenho pena. São textos dos quais preciso,
às vezes. Tratou então de pensar no cavalo verde sob a chuva. Mas sem saber bem
por que, o cavalo agora era preto retinto e montado por um robusto cavaleiro
que usava quepe mas não tinha rosto.
Pelo menos ele não conseguia distingui-lo na parede interior de suas pálpebras».
In
Mario Benedetti, Primavera num Espelho Partido, 1982, Alfaguara, (Editora
Objectiva), 2011, ISBN 978-857 962-104-8.
Cortesia
de Alfaguara/JDACT