sábado, 25 de junho de 2016

Primavera num Espelho Partido. Mario Benedetti. «Viu? Óptimo, na estante de baixo estão Relatos da guerra revolucionária e O Estado e a Revolução. Ela perguntou se devia queimar também O cinema socialista e Marx e Picasso»

jdact e wikipedia

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Exílios (Cavalo verde)
Seis meses antes havia escorregado em um piso encerado de hotel, em outra cidade, batendo violentamente com a cabeça no chão. Como consequência dessa queda, teve descolamento da retina e agora tinha sido operado. Por indicação médica, devia permanecer quinze dias deitado, com os olhos vendados, ou seja, durante esse lapso de tempo dependeria totalmente da mulher. A cada setenta e duas horas aparecia o cirurgião, destapava o olho operado, comprovava que tudo ia bem e voltava a tapá-lo. Era aconselhável que, pelo menos durante a primeira semana, não recebesse visitas, a fim de garantir a quietude completa. Mas podia ouvir rádio e gravador cassete. E, claro, atender o telefone. As notícias do rádio não somente não eram tediosas, como nos bons tempos, mas às vezes chegavam a ser arrepiantes, já que em Janeiro de 1975 costumavam aparecer dez ou doze cadáveres diários nas lixeiras portenhas. Entre noticiários e noticiários, entretinha-se ouvindo fitas de Chico Buarque, de Viglietti, de Nacha Guevara, de Silvio Rodríguez, e também A Truta de Schubert e algum quarteto de Beethoven. Outra diversão era propor imagens a si mesmo, o que passou a ser a mais fascinante de suas actividades passivas, já que sem dúvida incluía um elemento criador, mais original, a bem da verdade, do que o simples e textual registo por meio da visão das imagens que a realidade ia proporcionando. Agora não. Agora era ele quem inventava e recrutava essa realidade, e ela aparecia com todos os seus traços e cores na parede interior de seus olhos fechados. O jogo era estimulante. Pensar, por exemplo: agora vou criar um cavalo verde sob a chuva e fazê-lo aparecer no reverso das pálpebras imóveis. Não se atrevia a ordenar que o cavalo trotasse ou galopasse, porque a instrução do médico era de que as pupilas não se movimentassem, e não tinha muita certeza, em sua recente descoberta, se a pupila enclausurada sentiria ou não a tentação de seguir o galope do cavalo verde. Mas em troca tomava todas as liberdades ao conceber quadros imóveis. Digamos: três meninos (dois louros e um pretinho, como na publicidade dos grandes monopólios norte-americanos), o primeiro com skate, o segundo com um gato e o terceiro jogando com um bilboquê. Ou ainda, por que não?, uma moça nua, cujas medidas pode escolher cuidadosamente antes de concretizar a imagem. Ou uma ampla panorâmica de uma praia montevideana, com uma área de barracas de cores muito vivas e outra, em compensação, quase deserta, com um velho, barbudo, de short, acompanhado de um cão que contempla o dono em estado de rígida lealdade. Então o telefone tocou e foi muito fácil esticar a mão. Era uma boa amiga que, é claro, sabia da operação, mas que não perguntou como estava nem se tudo tinha corrido bem. Também sabia que o apartamento de Las Heras e Pueyrredón não dava para a rua, excepto por uma janelinha do banheiro de onde se viam três ou quatro metros da praça. No entanto, disse: estou ligando só para se debruçar na varanda e ver que lindo desfile militar, bem em frente à sua casa. E desligou. Então ele disse à mulher que olhasse pela janelinha do banheiro. O previsível: uma blitz.
Temos que queimar algumas coisas, disse ele, e imaginou o olhar preocupado de sua mulher. Apesar da urgência, tratou de tranquilizá-la um pouco: não tem nada de clandestino, mas se entram aqui e encontram coisas que podem ser compradas em qualquer quiosque, como os relatos de Che ou a Segunda Declaração de Havana (não digo Fanon ou Gramsci ou Lukács, pois não sabem quem são), ou alguns números da revista Militância ou do jornal Notícias, isso basta para nos trazer problemas. Ela foi queimando livros e jornais, dando olhadas esporádicas ao pedacinho de praça. Teve que abrir outras janelas (as que davam para o jardim dos fundos, que separava os dois blocos) para que saíssem a fumaça e o cheiro de queimado. E assim foi durante vinte minutos. Ele tratava de orientá-la: na segunda estante, o quarto e o quinto livros à esquerda, é Estética e marxismo, em dois tomos. Viu? Óptimo, na estante de baixo estão Relatos da guerra revolucionária e O Estado e a Revolução. Ela perguntou se devia queimar também O cinema socialista e Marx e Picasso. Ele disse que queimasse primeiro os outros. Esses eram mais fáceis de explicar. Não jogue as cinzas na lixeira. Use a descarga. A fumaça o fez tossir um pouco. Será que não vai fazer mal a seus olhos? Pode ser, mas temos que escolher o mal menor. Além do mais, creio que não. Estão bem tapados. O telefone voltou a tocar. A amiga de novo: e então? Gostou do desfile? Pena que terminou tão rápido, não é? Sim, disse ele respirando fundo, foi magnífico. Que disciplina, que cor, que elegância. Os desfiles de soldadinhos me fascinavam desde quando era um moleque. Obrigado por avisar. Bom, não precisa queimar mais. Ao menos por hoje. Já se foram. Ela também respirou, recolheu com a pá as últimas cinzas, jogou na privada, deu a descarga, verificou se tinham sido levadas pela água, lavou as mãos e veio sentar-se, já relaxada, ao lado da cama. Ele conseguiu pegar sua mão. Amanhã queimamos o resto, disse ela, mas com calma. Tenho pena. São textos dos quais preciso, às vezes. Tratou então de pensar no cavalo verde sob a chuva. Mas sem saber bem por que, o cavalo agora era preto retinto e montado por um robusto cavaleiro que usava quepe mas não tinha rosto. Pelo menos ele não conseguia distingui-lo na parede interior de suas pálpebras». In Mario Benedetti, Primavera num Espelho Partido, 1982, Alfaguara, (Editora Objectiva), 2011, ISBN 978-857 962-104-8.

Cortesia de Alfaguara/JDACT