Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Aprenda bem isso, diz minha avó, brandindo uma vara na minha direcção. Os nomes
lhe darão força. São a sua linhagem. Se os honrar, eles a manterão viva. Se os
desonrar, você vai ser prescrita. Não será ninguém. Há-de levar uma vida
desgraçada e há-de morrer sozinha. Repita. As crianças somalis precisam decorar
sua genealogia: é mais importante do que quase tudo. Sempre que depara com um desconhecido,
um somali pergunta: quem és? E os dois começam a retroceder em suas linhagens
distintas até encontrarem um ancestral em comum. Se tiver o mesmo antepassado
que um somali, mesmo que seja na oitava geração, os dois estão ligados como
primos. São membros da grande família que forma o clã. Um oferece comida e
hospitalidade ao outro. Embora o filho pertença ao clã do pai, é sempre útil
recordar os detalhes da estirpe da mãe, caso viaje e precise da ajuda de um estranho.
Por
isso, embora o suor escorresse por nossas costas naquelas longas tardes, o meu
irmão mais velho, Mahad, e eu aprendíamos a recitar em uníssono os nomes das
duas genealogias. Posteriormente, minha avó começou a ensinar Haweya, minha
irmã caçula, a fazer o mesmo, mas não conseguiu. Haweya era viva e inteligente,
porém muito mais irrequieta do que nós. A verdade é que esse conhecimento
ancestral parecia inútil para nós, crianças modernas, criadas em casas de
concreto, com telhados sólidos, por trás de paredes firmes e cercadas.
Geralmente fugíamos, esquivando-nos das fortes pancadas que minha avó procurava
dar nas nossas pernas com as varas arrancadas da árvore. Tratávamos era de trepar
na árvore e ficar brincando nos galhos. Acima de tudo, adorávamos escutar as
histórias da minha avó quando a mãe estava cozinhando no fogareiro a carvão e
nós nos deitávamos em uma esteira debaixo da nossa árvore. Essas histórias nunca
eram narradas quando a gente queria. Chegavam de surpresa. A avó podia estar
entrançando uma esteira, resmungando consigo e, de repente, a gente percebia
que o murmúrio tinha se transformado em um conto de fadas.
Era
uma vez um rapaz nómada casado com uma bela mulher, e eles tinham um filho, ela
começava. Os três sabíamos que devíamos nos calar instantaneamente e fingir que
estávamos ocupados com alguma coisa; a menor interrupção bastava para irritá-la,
e a avó então ralhava connosco e voltava a entrelaçar as finas hastes de palha
seca que passava dia e noite costurando para fazer grandes e caprichados tapetes.
As chuvas não vieram, e o nómada empreendeu a travessia do deserto em busca de
pastagens em que pudesse se fixar com a família. Pouco depois de iniciar a
caminhada, chegou a um trecho de relva verde e fresca. Lá havia uma cabana
feita de galhos fortes, coberta de esteiras recém-tecidas e toda varrida. A
cabana estava vazia. Ele voltou para junto da mulher e contou que, com apenas
uma jornada, tinha encontrado o lugar perfeito. Mas, dois dias depois, ao
voltar à pastagem com a esposa e o bebé, deu com um estranho postado à entrada
da cabana. Não era alto, era um homem atarracado, de dentes muito brancos e
pele lisa. Haweya estremecia de prazer. E de medo. O estranho disse: tem mulher
e filho. Fique com a casa, seja bem-vindo, e sorriu. O jovem nómada achou
aquele sujeito admiravelmente simpático e agradeceu; convidou-o a visitá-lo
quando quisesse. Mas a esposa sentiu um mal-estar com o desconhecido. E o bebé
começou a chorar assim que o viu. Naquela noite, um animal entrou
sorrateiramente na cabana e arrebatou a criança do berço. O nómada tinha comido
bem e dormia um sono profundo, não ouviu nada. Que desgraça. O desconhecido foi
visitar o casal para dar os pêsames. Mas, quando ele falou, a mulher reparou
nos pedacinhos de carne vermelha entre seus dentes e viu que um daqueles dentes
fortes e brancos estava quebrado.
O
estranho passou um ano na casa com o casal. Durante todo esse ano, a relva
continuou verdejando e as chuvas voltaram, de modo que não havia razão para
seguir viagem. A esposa teve outro filho na cabana, outro lindo bebé. Porém,
uma vez mais, quando a criança completou apenas uma estação de idade, um bicho
apareceu de madrugada e a levou entre os dentes. Dessa vez, o pai chegou a persegui-lo,
mas era muito lerdo para alcançá-lo. Na terceira vez, o nómada se engalfinhou
com o animal, lutou o quanto pôde, mas acabou vencido. E o monstro lhe devorou
mais um filho! Por fim, ao perder o terceiro bebé, a mulher disse ao marido que
ia deixá-lo. E assim aquele nómada idiota acabou perdendo tudo! Muito bem, o
que acabam de aprender?, gritava a minha avó. Sabíamos a resposta. Que o nómada
era um bom vagabundo. Ficou na primeira pastagem que encontrou, mesmo sabendo
que havia algo errado com ela. Foi tolo: não soube interpretar os sinais,
sinais que o bebê e a mulher perceberam instintivamente. Na verdade, o estranho
era aquele que se coça com uma vara, o ser monstruoso que se transformava em
hiena e comia a criança. Tínhamos entendido. O nómada fora ingénuo, vagaroso,
fraco e covarde. Merecia mesmo perder tudo». In Ayaan Hirsi Ali, Infiel, 2006,
tradução de Luís Araújo, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2007, ISBN
978-853-591-109-1.
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