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«Escuta
lá, de quem é que tu és filho? Sou o filho do Peixoto da serração e da Alzira
Pulguinhas»
Janeiro de 1984
«(…) Está claro que não era. As palavras
saíam-lhe da boca e ele sabia que não era. Lançou esse palpite sobretudo como expressão
do espanto extraterrestre que ali se sentia. Poucas pessoas arriscavam
sugestões. O doutor Matta Figueira, de fato, colete e gravata, acompanhado pelo
Edmundo, em traje de tratar do jardim, botas de borracha, partilhava dessa
cautela silenciosa. A coisa sem nome tinha caído no Cortiço. Os mais velhos lembravam-se
dessa herdade já ter dado toda a espécie de cultivo. Naquela hora, estava
coberta por um pasto verde, viçoso, próprio para ser apreciado. O caminho não
custa: quem vá da vila ao monte da Torre, passa pelo campo da bola e encontra o
Cortiço à esquerda, depois de passar pela Assomada e antes de chegar à Torre.
Do outro lado da estrada, está a courela do Caeiro.
Era na courela que os perdais se refugiavam.
Levantavam-se às vezes, aqui e mais além, num restolhar de penas. Como se
quisessem desembaraçar-se de si próprios, aguentavam-se por dois ou três
segundos errantes e voltavam logo a cair, vencidos pelo medo. Eram pardais que
nunca tinham visto um ajuntamento daqueles. Os galveenses iam chegando em
levas. Acercavam-se da cratera, avaliavam a forma da coisa sem nome,
sentiam-lhe o calor e o cheiro, mas ignoravam-lhe o mistério. Muitos atravessavam
os campos, iam de algum lado a algum lado. Outros juntavam-se em assembleia
debaixo dos sobreiros. Às vezes, em ocasiões que passaram despercebidas, havia
alguém a querer obrigar um cão a aproximar-se, a empurrá-lo ou a puxá-lo. Nunca
conseguiam e acabavam por desistir. Os cães guardavam sempre mais força de
vontade. Teriam sido capazes de virar-se contra os donos, não chegou a ser
preciso. Ao longo do dia, entre a vila e a herdade do Cortiço, houve viúvas de
todas as idades em ritmo de procissão e houve rapazes sem travões a acelerarem
a fundo nas motas; houve carroças de mulas, onde os cachopos apanhavam boleias
clandestinas, e houve burros arreados a levarem velhotes de pernas fracas e de
ancas a dançar.
Nesse serão, os galveenses jantaram sopa de
feijão com couve. A seguir, limparam a boca com uma peça de fruta e ficaram
pensativos. Isto, claro, com a excepção daqueles que jantaram outra coisa,
daqueles que não tinham fruta em casa e daqueles que estavam demasiado
compenetrados em alguma tarefa para se distraírem com pensamentos. Uns
deitaram-se mais cedo, outros deitaram-se mais tarde. A noite passou. Chegou a
madrugada e, logo depois, chegou a manhã. Para muitos, despertar foi um alívio.
Esse não foi o caso do ti Ramiro Chapa, que faleceu no posto de socorros ao
toque da aurora.
A coisa sem nome permaneceu sozinha na
herdade do Cortiço, no centro da cratera. Ao longo desse dia, sexta-feira, não
recebeu vistorias. O toque de finados, repetido durante a tarde, tirou essa
ideia àqueles que, por insensibilidade momentânea, colocaram a hipótese. Mas
esteve também nas conversas na capela de São Pedro. Os homens do lado de fora,
a aguentarem um frio que atravessava samarras; as mulheres lá dentro, em redor
da presença deitada do defunto, embrulhadas em mantas que não as aqueciam, intoxicadas
pelo cheiro a enxofre que, ali, se condensava com uma força que dava tonturas. Era
como se o próprio homem, coitado, internado havia tanto tempo no posto de
socorros, se tivesse transformado numa barra de enxofre. Foi só na manhã
seguinte, depois do enterro, que chegaram novas visitas. Sem saberem como lidar
com a coisa sem nome, sem compreendê-la, os mais desocupados e menos sensíveis
de nariz regalaram-se a olhá-la. Então, exploradores, perceberam que podiam
aproximar-se. O cheiro a enxofre lançava-se pelas narinas como pregos, mas o
quente temperava a frieza daquela hora. Era uma dezena de homens com as palmas
das mãos assentes sobre uma pedra. Nesse momento preciso, caiu a primeira gota.
Logo a seguir, uma chuva mundial. Era o céu inteiro que chovia. Sem descanso, sem
uma interrupção, noite e dia, exactamente com a mesma avidez, à bruta, choveu
durante uma semana, sete dias seguidos. E todos se esqueceram da coisa sem
nome, menos os cães». In José Luís Peixoto, Galveias, Quetzal
Editores, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-722-179-8.
Cortesia de Quetzal/JDACT