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Casavam entre si, habitavam na antiga judiaria, alguns continuavam a falar e a
possuir livros em hebraico. Iam à igreja e baptizavam os filhos, mas
continuavam a manter de forma mais ou menos secreta as práticas de judaísmo e o
sentimento da sua pertença à comunidade. Contrariamente ao judaísmo espanhol que
foi perdendo gradualmente a sua energia ao longo de um século de perseguições
(1391-1492), de conversões forçadas ou voluntárias e emigrações, o judaísmo
português é apanhado pelo decreto de expulsão em 1496, com a sua vitalidade
praticamente intacta. O aparecimento de um cripto-judaísmo ou marranismo
tão forte e organizado, escreve Yerushalmi, deve-se à coincidência entre o
desaparecimento do culto judaico público e o movimento de conversão geral. É
como se agora a norma para os judeus, como grupo social, fosse a conversão. De
certa maneira, o judaísmo agora definia-se assim. A dimensão comunitária da
conversão dos judeus de Portugal dava-lhes o sentimento de partilharem um
destino comum, um destino doloroso, mas comum. Diz Samuel Usque, na sua obra Consolação às Tribulações de Israel: ...
nunca nas almas lhes tocou mácula, antes sempre tiveram imprimido o selo da antiga
Lei.
As
conversões em massa, longe de resolverem o problema judaico, revelaram
claramente a inadequação desta solução. Aos olhos do povo a situação agora era
muito mais perigosa: sob a capa cristã, a sua influência tornava-se mais
insidiosa e a clivagem entre velhos e novos cristãos mais
evidente do que nunca. Não só porque estes últimos continuavam a judaizar mas
porque, paradoxalmente, as conversões e a proibição real de inquérito à fé
antiga libertaram-nos de alguma forma das limitações económicas e sociais de
que eram alvo enquanto judeus. Todo o ódio acumulado no passado contra os
judeus transferiu-se assim para os novos cristãos.
Antes
das conversões, actuavam dentro de limites bem definidos e claramente
demarcados. Viviam sob um regime específico, limitados por leis restritivas, em
bairros separados e pagavam impostos extraordinários. Era um inimigo, mas um
inimigo visível, reconhecível. Abolidas as antigas restrições jurídicas, o inimigo
tornava-se irreconhecível e portanto muito mais perigoso.
Do
seu ponto de vista, o povo não deixava de ter razão. A politica assimiladora de
Manuel I favoreceu de facto a inserção dos cristãos-novos que acederam assim a
todas as estruturas económicas, científicas, institucionais, e até
eclesiásticas, vindo a ocupar cargos de grande importância e poder. A nobreza,
a Igreja, as magistraturas, os cargos municipais, o direito de vizinhança, as
universidades, as ordens militares, tudo de repente passou a ser acessível aos
cristãos-novos sem que o seu passado judeu fosse um obstáculo. O ódio aos
cristãos-novos era, pois, cada vez maior, designavam-nos por perros, cam,
arreneguado judeu, e à assimilação na sociedade cristã não seria
conseguida, nem pela coerção, nem pelos privilégios. O “apartheid”, escreve
Maria Tavares, permanecia religioso e rácico: os cristãos-novos seriam a gente
de nação e a religião seria transmitida pelo sangue». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A
judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.
Cortesia
de ELivros/JDACT