quarta-feira, 22 de junho de 2016

Grácia Nasi. Esther Mucznik. «O “apartheid”, escreve Maria Tavares, permanecia religioso e rácico: os cristãos-novos seriam a gente de nação e a religião seria transmitida pelo sangue»

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«(…) Casavam entre si, habitavam na antiga judiaria, alguns continuavam a falar e a possuir livros em hebraico. Iam à igreja e baptizavam os filhos, mas continuavam a manter de forma mais ou menos secreta as práticas de judaísmo e o sentimento da sua pertença à comunidade. Contrariamente ao judaísmo espanhol que foi perdendo gradualmente a sua energia ao longo de um século de perseguições (1391-1492), de conversões forçadas ou voluntárias e emigrações, o judaísmo português é apanhado pelo decreto de expulsão em 1496, com a sua vitalidade praticamente intacta. O aparecimento de um cripto-judaísmo ou marranismo tão forte e organizado, escreve Yerushalmi, deve-se à coincidência entre o desaparecimento do culto judaico público e o movimento de conversão geral. É como se agora a norma para os judeus, como grupo social, fosse a conversão. De certa maneira, o judaísmo agora definia-se assim. A dimensão comunitária da conversão dos judeus de Portugal dava-lhes o sentimento de partilharem um destino comum, um destino doloroso, mas comum. Diz Samuel Usque, na sua obra Consolação às Tribulações de Israel: ... nunca nas almas lhes tocou mácula, antes sempre tiveram imprimido o selo da antiga Lei.
As conversões em massa, longe de resolverem o problema judaico, revelaram claramente a inadequação desta solução. Aos olhos do povo a situação agora era muito mais perigosa: sob a capa cristã, a sua influência tornava-se mais insidiosa e a clivagem entre velhos e novos cristãos mais evidente do que nunca. Não só porque estes últimos continuavam a judaizar mas porque, paradoxalmente, as conversões e a proibição real de inquérito à fé antiga libertaram-nos de alguma forma das limitações económicas e sociais de que eram alvo enquanto judeus. Todo o ódio acumulado no passado contra os judeus transferiu-se assim para os novos cristãos.
Antes das conversões, actuavam dentro de limites bem definidos e claramente demarcados. Viviam sob um regime específico, limitados por leis restritivas, em bairros separados e pagavam impostos extraordinários. Era um inimigo, mas um inimigo visível, reconhecível. Abolidas as antigas restrições jurídicas, o inimigo tornava-se irreconhecível e portanto muito mais perigoso.
Do seu ponto de vista, o povo não deixava de ter razão. A politica assimiladora de Manuel I favoreceu de facto a inserção dos cristãos-novos que acederam assim a todas as estruturas económicas, científicas, institucionais, e até eclesiásticas, vindo a ocupar cargos de grande importância e poder. A nobreza, a Igreja, as magistraturas, os cargos municipais, o direito de vizinhança, as universidades, as ordens militares, tudo de repente passou a ser acessível aos cristãos-novos sem que o seu passado judeu fosse um obstáculo. O ódio aos cristãos-novos era, pois, cada vez maior, designavam-nos por perros, cam, arreneguado judeu, e à assimilação na sociedade cristã não seria conseguida, nem pela coerção, nem pelos privilégios. O “apartheid”, escreve Maria Tavares, permanecia religioso e rácico: os cristãos-novos seriam a gente de nação e a religião seria transmitida pelo sangue». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.

Cortesia de ELivros/JDACT