quarta-feira, 1 de junho de 2016

Histórias íntimas Mary del Priore. «E que conta a história do peso da cultura sobre o mundo das sensações imediatas. Cultura que nos levou da vida em grupo ou em família para o individualismo que é a marca do nosso tempo»

jdact e wikipedia

O corpo. A igreja. O pecado
«(…) A noção de intimidade no mundo dos homens entre os séculos XVI e XVIII se diferencia profundamente daquela que é a nossa no início do século XXI. A vida quotidiana naquela época era regulada por leis imperativas. Fazer sexo, andar nu ou ter reacções eróticas eram práticas que correspondiam a ritos estabelecidos pelo grupo no qual se estava inserido. Regras, portanto, regulavam condutas. Leis eram interiorizadas. E o sentimento de colectividade sobrepunha-se ao de individualidade. Mas falar nesse assunto quando a América ainda era portuguesa implica compreender o que se entendia por privacidade há quase trezentos anos. Apenas em 1718 o conceito fará a sua aparição. E foi o dicionarista jesuíta Raphael Bluteau quem, pioneiramente, esclareceu: privado, uma pessoa que trata só de sua pessoa, da sua família e de seus interesses domésticos. Mais tarde, em 1798, no seu Elucidário de palavras e termos, frei Joaquim Santa Rosa Viterbo definia que o verbete privido, palavra mais tarde substituída por privado, designava o que pertencia a uma particular pessoa. Quase cem anos foram necessários para que privado deixasse de significar o que fosse familiar e colectivo para se centrar no pessoal. Mas como fazer tal passagem em terras de escravidão e de pobreza material, onde, contrariamente à Europa ocidental, não havia muita separação entre privado e público? Como, num lugar onde todos sabiam de tudo e de todos? Era diferente. Aqui, muitas pessoas andavam seminuas: sobretudo índios e escravos. As regras e os ritos vindos da Europa não se tinham consolidado entre índios e africanos. Palavras como vergonha e pudor, recém-dicionarizadas no século XVI, continuavam ausentes dos vocabulários, nome que então se dava aos glossários, até entre portugueses. Para os etimologistas, a palavra nasceu à época da chegada dos lusitanos às nossas costas. Antes, pudenda designava os órgãos sexuais, vergonhosos. Inicialmente associados à pudicícia, pudor e castidade eram sinónimos. Os primeiros dicionários deram o sentido actual ao termo, ligando-o à modéstia, decência e civilidade. Considerado natural nas mulheres, o pudor permitia afirmar que uma mulher nua podia ser mais púdica do que uma vestida. Isso, pois acreditava-se que, ao despir-se, ela se cobria com as vestes da vergonha.
O pudor que se definia nos dicionários não era um conceito espalhado na sociedade. Enquanto Isabel de Castela, em 1504, morria de uma ferida que não quis mostrar aos médicos, recebendo a extrema-unção sob os cobertores para não exibir nem os pés, muitos moradores da América portuguesa vestiam-se apenas com um minúsculo pedaço de tecido. Descobria-se, então, que existiam povos obedientes a diferentes noções de pudor. Ora, tais noções foram pioneiras em esboçar a história do polimento das condutas, do crescimento do espaço privado e dos auto-constrangimentos que a modernidade foi trazendo. Daquilo que Michel Foucault chamou de cuidado de si; uma esfera cada vez mais definida entre o público e o privado. Esfera capaz de afastar, de forma progressiva e profunda, um do outro. E que conta a história do peso da cultura sobre o mundo das sensações imediatas. Cultura que nos levou da vida em grupo ou em família para o individualismo que é a marca do nosso tempo.
1500. Pleno desabrochar do Renascimento na Europa e chegada dos alfacinhas ao Brasil. Em 1566, é dicionarizada na França, pela primeira vez, a palavra erótico. Designava, então, o que tiver relação com o amor ou proceder dele. Na pintura, o humanismo colocava o homem no centro do mundo, e não mais Deus, descobrindo-se os corpos e o nu. Nu que, hoje, associamos ao erotismo. Mas era ele, então, sinónimo de erotismo? Não. Isso significa que as palavras, os conceitos e seus conteúdos mudam, no tempo e no espaço; o que hoje é erótico, não o era para os nossos avós. Comecemos por um exemplo bastante conhecido. Ao desembarcar na então chamada Terra de Santa Cruz, os recém-chegados portugueses impressionaram-se com a beleza das nossas índias: pardas, bem dispostas, as suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha alguma. A Pero Vaz Caminha não passaram despercebidas as moças bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas. Os corpos, segundo ele, limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais ser. Os cânones da beleza europeia se transferiam para cá, no olhar guloso dos primeiros colonizadores. Durante o Renascimento, graças à teoria neoplatónica, amor e beleza caminhavam juntos. Vários autores, como Petrarca, trataram desse tema para discutir a correspondência entre belo e bom, entre o visível e o invisível. Não à toa, nossas indígenas eram consideradas, pelos cronistas seiscentistas, criaturas inocentes. A sua nudez e despudor eram lidos numa chave de desconhecimento do mal, ligando, portanto, a formosura à ideia de pureza. Até as suas vergonhas depiladas remetiam a uma imagem sem sensualidade. As estátuas e pinturas que revelavam mulheres nuas, o faziam sem pêlos púbicos. A penugem cabeluda era o símbolo máximo do erotismo feminino. A questão da sensualidade não estava posta aí». In Mary del Priore, Histórias íntimas, Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT