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«A torre,
ferida pelo fogo, derribou a sua massa colossal sobre os infelizes lá em baixo,
com um ruído ensurdecedor. A multidão fugia. Uma nuvem de pó e cinza, qual
vento do deserto carregado de areia, avançava penetrando pelas ruas, cobrindo tudo
com uma capa esbranquiçada. Virei-me na cama. Meu Deus, que angústia! Voltava outra
vez a recordação daquela manhã aziaga em que as mais altas torres caíram... Já passou,
disse para mim própria, isso já foi há meses; estou na minha cama. Calma,
calma. Depois da minha festa de aniversário, Mike tinha ficado a dormir comigo
e eu sentia o seu agradável calor junto de mim; respirando pausadamente, satisfeito,
relaxado. Acariciei o seu dorso, largo, forte. E, abraçando-o, sosseguei. Os nossos
corpos descansavam nus sob os lençóis; apesar da intensidade da paixão, ele tivera
forças suficientes para me dizer que continuava a amar-me, depois de me amar; e
foi capaz de soltar os galanteios, antes de cair a dormir como uma pedra. E eu também,
rendida por um dia tão intenso, fiquei presa por um sonho doce, creio, até que
chegaram essas imagens de angústia. Olhei para o despertador. Eram quatro e meia
da madrugada de domingo; tinha muito tempo para dormir. Já tranquila, fechei os
olhos, mas deparei de novo com a trágica visão do desmoronamento, dos escombros,
do pânico das pessoas. O sonho tinha mudado. Já não se passava em Nova Iorque. Não
era o desmoronamento das Torres Gémeas. Era qualquer coisa diferente e as imagens
e sons chegavam até mim sem que eu pudesse evitá-lo. A multidão gritava. O derrube
das torres tinha aberto uma brecha e os homens, empunhando espadas, lanças e balestras,
protegidos com capacetes de ferro, cotas de malha e escudos, precipitavam-se, por
entre a poeira, para a estreita passagem da muralha, incitando-se uns aos outros.
Fundiram-se na bruma suja, no estrondo, e jamais regressaram. Ao fim de pouco
tempo, a neblina vomitou uma horda de guerreiros uivantes. Eram muçulmanos e brandiam
alfanjes ensanguentados. Ainda com a espada no cinturão, eu era incapaz de lutar;
reparava que a minhas forças se esvaíam juntamente com o sangue das minhas feridas
abertas. Não podia brandir armas, nem sequer levantar um braço, e apressei-me a
procurar protecção. Olhei para a minha mão e ali, no meu sonho, com o seu vermelho
profundo, estava o anel de rubi.
Mulheres,
crianças e velhos, acarretando fardos, alguns com cavalos, outros com cabras e ovelhas,
corriam em direcção ao mar. As crianças choravam aterrorizadas e as lágrimas deslizavam,
formando canais nos seus pequenos rostos sujos de pó. Os mais crescidos seguiam
as suas mães, e estas levavam pela mão, ou nos braços, os mais pequenos. Com a carga
dos assaltantes, esfaqueando os fugitivos, instalou-se o pânico. A multidão gritava,
abandonava os seus pertences, alguns deixavam os seus filhos, só queriam escapar.
Sem saber para onde. Era terrível, senti muita pena deles, mas não podia socorrê-los.
Que seria feito das crianças sem mãe? Talvez salvassem a vida como escravos.
Grandes portões de madeira, reforçados com metal, iam-se fechando. Atrás deles,
havia protecção, mas a tropa, de espada desembainhada, mantinha a multidão ao largo;
só franqueava a entrada a alguns. Os que se amontoavam do lado de fora
começaram a implorar em voz alta. Havia empurrões, prantos, súplicas, insultos.
Os guardas gritavam para que se separassem, que partissem, que saíssem para o porto.
E quando a multidão amontoada quis forçar a passagem, os da entrada começaram a
golpear os mais próximos. Pobres infelizes! Como gritavam a sua dor e o seu medo!
Abriu-se uma clareira e vi o acesso quase fechado. Sangrava muito e tive medo
de morrer ali, entre os gentios desesperados. Cambaleando, lancei-me para as
espadas dos soldados. Tinha de passar aquela porta! Levantei-me na cama de um salto.
Respirava ofegante e tinha os olhos cheios de lágrimas. Que angústia! Ainda maior
do que aquela que senti aquando do atentado às Torres Gémeas. O sonho era para mim
ainda mais real do que o sucedido no 11 de Setembro. Não espero que possam entender
isso; eu própria, ainda hoje, não o entendo totalmente. Mas uma imagem final ficou-me
gravada na mente. O homem que comandava os sicários da porta vestia de branco e
no seu peito brilhava a mesma cruz que estava pintada na parede da fortaleza. Aquela
cruz..., fazia-me lembrar qualquer coisa. Voltei-me para Mike à procura de
amparo. Estava agora de boca para cima e continuava a dormir feliz, com um rosto
angelical e meio sorriso na face. De certeza que os seus sonhos e os meus eram muito
diferentes. Eu não podia partilhar a sua paz; aquele anel, não o dele, mas o outro,
deixava-me inquieta. Disse antes que estava nua. Não totalmente. Na minha mão, cintilavam
os dois anéis. Não estava habituada a dormir com jóias, mas depois de me habituar,
não tirei o anel de diamante puro, símbolo do nosso amor, da minha promessa, da
minha nova vida. Ainda não sei por que motivo também estava deitada na cama com
o outro anel. Esse, o do meu pesadelo. Esse anel obcecava-me assim tanto a ponto
de me aparecer nesse sonho trágico?
Quis
vê-lo melhor e tirei-o, colocando-o sob o candeeiro da mesinha de cabeceira. Foi
então que aconteceu e fiquei boquiaberta de surpresa. A luz, ao incidir na
pedra, encastrada de tal forma que o metal só a sustentava pelos lados, projectava
uma cruz vermelha nos lençóis brancos. Era lindo, mas inquietante, era uma cruz
muito singular; tinha os quatro braços iguais, mas abriam-se nas suas extremidades
formando dois pequenos arcos, dilatando-se no final. Naquele momento, apercebi-me:
era a mesma cruz do sonho! A do uniforme dos soldados que carregavam contra a multidão,
a que estava pintada na parede da fortaleza. Fechei os olhos e respirei fundo.
Não podia ser. Estaria ainda a sonhar? Quis acalmar-me e, apagando a luz,
procurei refúgio junto de Mike, que, a dormir, tinha-se voltado de costas. Abracei-o.
Isso tranquilizou-me um pouco, mas os meus pensamentos continuavam a toda a velocidade.
Tudo o que dizia respeito àquele anel era misterioso: a forma como tinha
chegado até mim, a sua aparição no meu sonho, a visão dessa cruz antes de a descobrir
também no anel... Disse para mim que aquela jóia tinha uma história para contar,
não era uma prenda qualquer, escondia alguma coisa...» In Jorge Molist, O Anel, Ésquilo,
Lisboa, 2004, ISBN 972-860-543-9.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT