sábado, 31 de agosto de 2019

Mãos de Catulo no 31. As Mulheres de Lesbos. Zilma G. Nunes. «Os sóis podem morrer e retornar mas, quanto a nós, quando a breve luz se vai, só nos resta dormir uma noite sem fim. Dá-me mil beijos, e depois mais cem…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Vieste, e fizeste bem. Eu esperava,
queimando de amor; tu me trazes a paz».
Safo

«(…) A partir dos poemas de Safo, está claro que ela reunia ao seu redor um grupo de garotas com finalidade educativa. A música e a poesia eram consideradas importantes elementos utilizados pedagogicamente na Grécia primitiva.

Ao cantarem juntas, as garotas aprendiam disciplina e, ao mesmo tempo, um certo sentido de beleza. O canto era normalmente acompanhado pela dança. Por meio dessas danças, as garotas podiam mostrar que sabiam como se mover com elegância. Fiação e tecelagem, duas habilidades ainda mais importantes para as mulheres, eram aprendidas em casa. Não pertenciam às actividades praticadas por Safo e suas virgens.

O que se há-de considerar, finaliza o autor, é que existia um certo relacionamento entre Safo e jovens prestes a se casarem e que viveu numa era diferente com diferentes noções e tipos de sexualidade. De qualquer forma, cria-se um conceito pautado no mito de Safo e das mulheres de Lesbos. O adjetivo pátrio-lésbia passa a nome próprio e os poetas, desde Catulo o utilizam como sinónimo de musa inspiradora. A moralidade e a hipocrisia têm, contudo, condenado Safo e no século XI teve a sua maior pena:

toda a sua obra, contida em nove volumes foi queimada pela Igreja. No entanto, em fins do século XIX dois arqueólogos ingleses descobriram em Oxorinco, sarcófagos envoltos em tiras de pergaminho, numa das quais eram legíveis uns 600 versos de Safo. Foi o que restou, sobrevivendo à fúria do fogo da Igreja e da moralidade hipócrita dos séculos.

Sofrendo com a mesma moral que pretendeu esquecer Safo, Catulo é poeta desconhecido na Idade Média, sendo redescoberto somente no Renascimento. A sua obra compõe-se de 116 carmina. Diz Zélia Cardoso Almeida que embora não haja divisão regular na colectânea, os poemas compõem três grupos distintos. O primeiro compreende os 62 primeiros poemas. São textos curtos, compostos em métricas variados (hendecassílabos, coliambos, estrofes sáficas) escritos numa linguagem viva e espontânea, podendo ser considerados na sua maioria, pelos temas que exploram, como poemas de amor ou de circunstância.

Interessante notar que se no aspecto formal já há uma referência à influência dos versos de Safo, o conteúdo poderá reafirmar essa tendência.

Em muitos poemas, Catulo se dirige a uma espécie de musa inspiradora à qual ele dá o nome de Lésbia. Embora os biógrafos do poeta tenham sempre procurado identificar tal figura com a bela Clódia, irmã de famoso político romano, a crítica moderna procura ver em Lésbia, assim como em outras mulheres mencionadas na poesia latina, uma figura literária, criada provavelmente por influência alexandrina. Em alguns dos textos dirigidos a Lésbia o tom é alegre, despreocupado, brincalhão:

Vivamos, minha Lésbia, e amemos
E atribuamos o valor de um níquel
Às murmurações dos velhos mais severos.
Os sóis podem morrer e retornar
Mas, quanto a nós, quando a breve luz se vai,
Só nos resta dormir uma noite sem fim.
Dá-me mil beijos, e depois mais cem,
Depois mais outros mil, depois mais cem,
Depois mais mil ainda, e ainda cem».

In Zilma G. Nunes, As Mulheres de Lesbos nas Mãos de Catulo, Prelúdio de uma voz oculta, 2002, UFSC, Wikipedia.

Cortesia de UFSC/JDACT

No 31. Poesia. Matilde Campilho. «Isto é um poema não fala de comoções na missa das sete nem fala da percentagem de mulheres que se espantam com a imagem do marido aparando a barba no ocaso»


Cortesia de wikipedia e jdact

Jóquei
Príncipe no Roseiral
«Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na berma do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima.
Não fala do lago drenado
na floresta americana.
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou.
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da percentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso.
Não fala de tractores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários.
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos.
Nem de manadas de cervos.
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé.
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registadora
do supermercado.
Não vai melhorar.
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar a casa
ou a algum lugar
próximo de casa».

In Matilde Campilho, Jóquei, Coordenador da colecção Pedro Mexia, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2014, ISBN 978-989-671-213-6.

Cortesia de ETintadaChina/JDACT

Marina no 31. Carlos Ruiz Zafón. «Naquela mesma tarde, quando as aulas terminaram, JF e eu escapulimos pela porta da cozinha e pegamos a misteriosa rua que levava ao palacete. O pavimento de pedras estava cheio de poças e montes de folhas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Deu uma olhada na fotocópia e lançou-me um olhar enviesado. Procure na letra i de idiota e vai ver que não sou o único famoso por aqui, replicou JF. Naquele dia, ao meio-dia, na hora do pátio, JF e eu penetrámos sorrateiramente no tenebroso auditório. Os nossos passos no corredor central despertavam o eco de cem sombras caminhando nas pontas dos pés. Dois raios de luz prateada caíam sobre o palco empoeirado. Fomos nos sentar naquele clarão de luz, diante das fileiras de cadeiras vazias que se fundiam na penumbra. O sussurro da chuva arranhava as vidraças do primeiro andar. Bem, atacou JF, para que todo esse mistério? Sem dizer uma palavra, tirei o relógio e o estendi para ele. JF arqueou as sobrancelhas e avaliou o objecto. Examinou-o detidamente por alguns segundos, antes de devolvê-lo com olhar intrigado. O que acha?, perguntei. Bem, parece ser um relógio, replicou JF. Quem é esse tal de Germán? Não tenho a mínima ideia. Comecei a contar detalhadamente a aventura de dias antes no casarão arruinado. JF ouviu atentamente o relato dos acontecimentos com a paciência e a atenção quase científica que o caracterizavam. Ao final da narrativa, pareceu avaliar o assunto antes de dar as suas primeiras impressões.
Em poucas palavras, você roubou o relógio, concluiu. Não é essa a questão, repliquei. Teríamos que ver qual é a opinião do tal Germán a esse respeito, acrescentou JF. É muito provável que o tal Germán esteja morto há muitos e muitos anos, sugeri, não muito convencido.

JF esfregou o queixo. Também me pergunto o que dirá o Código Penal acerca do furto premeditado de objectos pessoais e relógios com dedicatórias..., observou o meu amigo. Não houve premeditação nem vítimas fatais, protestei. Tudo aconteceu de repente, nem tive tempo de pensar. Quando percebi que estava com o relógio, já era tarde demais. No meu lugar, você teria feito a mesma coisa. Em seu lugar, eu teria sofrido uma paragem cardíaca, esclareceu JF, que era antes um homem de palavras do que um homem de acção. Supondo que fosse louco o suficiente para invadir um casarão atrás de um gato diabólico. Quem pode saber os tipos de germes que se pode pegar de um bicho desses... Ficamos em silêncio por alguns segundos, ouvindo o eco distante da chuva. Bem, concluiu JF, o que está feito, está feito. Não está pensando em voltar lá, está? Sorri. Sozinho, não. Os olhos do meu amigo se arregalaram, grandes como pratos. Ah, não! Nem pensar.
Naquela mesma tarde, quando as aulas terminaram, JF e eu escapulimos pela porta da cozinha e pegamos a misteriosa rua que levava ao palacete. O pavimento de pedras estava cheio de poças e montes de folhas. Um céu ameaçador cobria a cidade. JF, que não parecia muito convencido, estava mais pálido do que nunca. A visão daquele lugar preso no passado deixava o seu estômago do tamanho de uma bolinha de gude. O silêncio era ensurdecedor. Acho que a melhor coisa é dar meia-volta e ir embora daqui,  murmurou, retrocedendo alguns passos. Você parece uma galinha assustada.
As pessoas não sabem apreciar o valor de uma galinha. Sem ela não teríamos ovos nem... De repente, o tilintar de um guizo se espalhou no vento. JF emudeceu. Os olhos amarelos do gato nos observavam. De repente, o animal deu um chiado de serpente e mostrou as garras. Os pelos do lombo se eriçaram e a sua mandíbula exibiu os mesmos dentes que tinham ceifado a vida de um pardal dias atrás. Um relâmpago distante acendeu uma caldeira de luz na cúpula do céu. JF e eu trocamos um olhar. Quinze minutos depois estávamos sentados num banco junto ao tanque do claustro do internato. O relógio continuava no bolso do meu casaco. Mais pesado do que nunca. Ficou ali pelo resto da semana, até à madrugada de sábado». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT

No 31. Chaves e as suas Fortificações. Paulo Dordio. «Um primeiro diagnóstico da evolução histórica da rede urbana portuguesa foi realizado por autores como Vitorino Magalhães Godinho e José Gentil Silva…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Evolução urbana e arquitectónica
Cidade Portuguesa no Tempo
«(…) Entre os séculos XVI e o XVIII, as elites urbanas desenvolvem um discurso crítico em relação à matriz tardo-medieval que as suas cidades exibiam. Monumento e Monumentalidade serão as palavras de ordem por detrás de numerosas e variadas intervenções no espaço urbano cuja expressão mais completa estará na Praça regularizada e monumentalizada com equipamentos (chafarizes, pelourinhos, etc) e edifícios (Casas da Câmara, Igrejas, Igrejas da Misericórdia, Hospitais, Capelas, Palácios, etc). Para o final daquele período, tocado já pelas exigências do Iluminismo, o discurso propunha mesmo corrigir traçados a fim de adequar o desenho urbano a uma ordem e um racionalismo que seria expressão do poder do Estado. A 2ª metade do século XIX trará consigo a expansão urbana moderna com o rápido crescimento da população urbana. As cidades e as vilas preparam-se para receber esse afluxo de novas gentes elaborando Planos de Melhoramentos em cuja preocupação estará em primeiro lugar o grau zero do urbanismo, as infra-estruturas. Será a época das grandes obras municipais viárias, de iluminação pública, abastecimento de água, drenagens e saneamentos, etc.
As décadas de 1930 e de 1940, coincidindo com nova fase de expansão e crescimento urbanos, mostram a emergência da Obra Pública e do Plano Geral de Urbanização como os novos instrumentos adequados às novas exigências de planificação urbana de um Estado que se queria fazer reconhecer como forte. As duas décadas seguintes continuarão a mostrar a concretização daqueles instrumentos do urbanismo a mais das vezes falha de inovação e enredada numa inércia burocrática. As rupturas introduzidas nas décadas de 1970 e 1980 prepararam o momento actual e o futuro, numa terceira fase de expansão e crescimento, mais exigente, introduzindo novas preocupações, como as Patrimoniais, e fazendo uso de novos e mais eficazes instrumentos de planificação e controle (PDM’s, Planos de Pormenor, Inventários do Património, Planos de Salvaguarda, Planos de Reabilitação, etc).

Rede Urbana e Sociedade em Portugal
Um primeiro diagnóstico da evolução histórica da rede urbana portuguesa foi realizado por autores como Vitorino Magalhães Godinho e José Gentil Silva os quais apontaram a estagnação do respectivo desenvolvimento entre o século XVI e os inícios do XIX como um dos principais traços realçando que uma boa armadura de pequenos centros urbanos contrasta com a inexistência das cidades médias ao mesmo tempo que a capital é das primeiras cidades do mundo de então. Nos dois séculos seguintes (XIX e XX), quando por toda a Europa desenvolvida, se observa uma descolagem sem precedentes da população urbana, Portugal irá manter de uma forma generalizada níveis de urbanização diminutos, casos à parte de Lisboa e do Porto, para apenas ver acelerar o crescimento a partir da década de 1950. A incapacidade dos centros provinciais da rede urbana em atrair o êxodo rural que se verifica e que opta antes pela emigração, que é antiga e persistente, é apontada como o outro traço estrutural conexo de um mesmo esquema de bloqueamento do desenvolvimento e da Modernização da sociedade portuguesa. Uma nova geração de historiadores realizou a partir da década de 1980 uma crítica e desconstrução de paradigmas prevalecentes até aí aportando a emergência do local e um novo equacionamento do papel do centro e da periferia (José Mattoso e António Manuel Hespanha).
O trabalho crítico incidiu principalmente sobre a ideia de Estado e de Nação legada pelos historiadores do século XIX, que a historiografia do Estado Novo havia cristalizado: a omnipresença da coroa, a ideia da centralização precoce (ou o paradigma da centralização contínua e interminável (…)), a utilização dos conceitos de Estado e de Nação num sentido quase contemporâneo para falar da história portuguesa desde os finais da Idade Média, e a imagem da atrofia de todos os poderes que não os da monarquia constituíam património comum dos historiadores portugueses, quase sem excepção». In Paulo Dordio, Chaves e as suas Fortificações, Evolução urbana e arquitectónica, ARQUEOHOJE, Chaves. Levantamento Arquivístico e Bibliográfico. 2006, Chaves, Arquivo Municipal de Chaves, 2015, Wikipedia.

Cortesia doAMChaves/ARQUEOHOJE/JDACT

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Destruição de Cartago. David Gibbins. «Os romanos datavam os anos ab urbe condita, a partir da fundação da cidade em 753 a.C., porém usavam mais comumente o ano consular, que recebia o nome dos dois cônsules…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…)
Distâncias
A unidade básica de medida linear romana era o (pes), dividido em 12 polegadas (unciae), aproximadamente igual às unidades utilizadas hoje. Para distâncias maiores, usavam a milha (milliarum), uma distância de cinco mil pes, pouco mais de nove décimos de uma milha moderna ou cerca de um quilmetro e meio. Uma unidade intermediária de´origem grega era o stadium (plural stadiae, derivado do grego stadion, uma pista de corrida), cerca de 600 pes, portanto pouco mais de um oitavo de milha ou um quinto de quilómetro.

Datas
Os romanos datavam os anos ab urbe condita, a partir da fundação da cidade em 753 a.C., porém usavam mais comumente o ano consular, que recebia o nome dos dois cônsules no posto em dada época. Como os cônsules mudavam anualmente e, em tese, dois homens não podiam ocupar o cargo duas vezes, a data consular representava um único ano. Em geral era necessário explicitar os nomes completos devido ao predomínio, no período da República, de homens de uma quantidade limitada de gentes como os Cipiões, assim podia não bastar dizer no consulado de Cipião e Metelo, devendo-se mencionar os nomes completos.

Gens
A gens (plural gentes) era a família de um patrício romano. Uma pessoa podia ser de um ramo estabelecido de uma gens, assim, por exemplo, Cipião Africano era do ramo Cipião da gens dos Cornélios, e Sexto Júlio César, do ramo dos Césares da gens dos Júlios. As gentes podem ser comparadas às famílias aristocratas da Europa dos últimos séculos, embora para os romanos o comportamento da gens romana fosse ainda mais formalizado e restritivo, regendo, por exemplo, o casamento bem como os direitos e privilégios. A maioria dos protagonistas da República romana vinha de um número limitado de gentes; assim, nomes como Júlio César e Brutus, que têm enorme ressonância histórica no período da Guerra Civil, brotavam frequentemente em gerações anteriores, muitas vezes com distinção e fama idênticas.

Nomes
Os romanos podiam ser conhecidos entre os amigos por seu praenomen (prenome), exactamente como fazemos hoje, embora também pudessem ser tratados pelos seus outros nomes, no caso de Cipião, o seu cognomen (terceiro sobrenome), um uso comum entre aristocratas. O cognomen era o ramo da família (gens), revelado no segundo sobrenome; assim, o Cipião deste romance, Públio Cornélio Cipião, era do ramo dos Cipiões da gens dos Cornélios. Os Cipiões Cornélios não eram a gens na qual haviam nascido, uma vez que ele tinha sido adoptado quando criança pelo filho do famoso Cipião, o Velho, Públio Cornélio Cipião Africano; porém, segundo o costume, o Cipião mais jovem também mantinha o nome da gens de seu pai verdadeiro, Lúcio Emílio Paulo Macedónico. Assim como Emílio Paulo havia sido agraciado com o agnomen Macedónico por seu triunfo sobre os macedónios em Pidna em 168 a.C., o nome completo de Cipião, o Jovem em 146 a.C., Públio Cornélio Cipião Emiliano Africano, incluía o agnomen Africano, herdado do avô adoptivo depois de este ter sido recompensado na Batalha de Zama em 202 a.C. O fardo da expectativa desse nome sobre os ombros de Cipião na sua juventude e os seus esforços para conquistá-lo por mérito próprio formam um tema subjacente neste romance». In David Gibbins, Destruição de Cartago, Editora Record, 2013, ISBN 978-850-110-121-1.

Cortesia de ERecord/JDACT

Maya. Jostein Gaarder. «… répteis de idade avançada vivem em tocas subterrâneas, muitas vezes compartilhadas com algum petrel. Podem medir até setenta centímetros de comprimento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vê melhor, quem vê por último
«(…) Hoje em dia, tem-se mais fé em venenos, vírus e formas distintas de esterilização; noutras palavras, na guerra química e biológica. Mas não se compõe uma nova cadeia trófica num abrir e fechar de olhos, e até se pode perguntar se isso é factível. Por outro lado, é triste verificar como é fácil acabar com o equilíbrio ecológico construído pela natureza durante muitos milhões de anos. Mas a insensatez do mundo não tem mais limites nem fronteiras. Penso nessa arrogante insensatez dos sabichões, uma espécie de miopia do engenho, tão maravilhosamente subdesenvolvida entre aborígines, maoris e melanésios, antes de eles se transformarem em apêndices do homem branco. Penso na insensatez da cobiça e do lucro. Hoje em dia se empregam eufemismos como globalização e acordos comerciais. Isso implica que a comida já não se define como alimento, e sim como mercadoria. Onde outrora as pessoas podiam comer o que colhiam nos seus campos, hoje se cultivam cada vez mais produtos inúteis, a que somente os países mais ricos do mundo podem ter acesso. Não vivemos mais da natureza. Foi-se o tempo dos paraísos.
De resto, V conhece de sobra o meu velho interesse pelos répteis. Foi um fascínio pueril pela vida neste planeta há cem ou duzentos milhões de anos que me tornou biólogo, e isso muito antes da moda dos dinossauros, que surgiu por volta de dez ou quinze anos atrás. Eu queria compreender por que todos esses répteis altamente especializados se extinguiram de repente. Além disso, obcecava-me uma pergunta que desde então nunca me saiu da cabeça: o que teria acontecido se os dinossauros não se tivessem extinguido? O que teria acontecido nesse caso com todos esses mamíferos parecidos com os musaranhos, dos quais V e eu descendemos? Mas sobretudo: o que teria acontecido com os dinossauros? Na Oceânia, tive a oportunidade de estudar várias espécies antigas de répteis. Muito especial foi o arcaico tuatara, encontrado nalgumas ilhas isoladas da Nova Zelândia. Embora arriscando-me a ofendê-la um pouco, atrevo-me a confessar que experimentei um sentimento quase religioso ao contemplar um dos vertebrados vivos mais antigos se desenvolver nos restos dos velhos bosques do antigo continente da Gonduana. Esses répteis de idade avançada vivem em tocas subterrâneas, muitas vezes compartilhadas com algum petrel. Podem medir até setenta centímetros de comprimento, têm uma temperatura corporal singularmente baixa, nove graus, e podem viver mais de cem anos. Quando V o vê de noite, é como se retrocedesse ao Jurássico, na época em que a Laurásia se separou da Gonduana, e os grandes dinossauros mal haviam começado a se desenvolver. Era então que os rincocéfalos se distinguiam das outras famílias de sáurios como uma família de répteis pouco numerosa, mas sumamente resistente. O seu único representante vivo, o tuatara, conservou-se espectacularmente inalterado por cerca de duzentos milhões de anos.
Preciso tomar fôlego, Vera. O tuatara não é um facto menos notável do que se, de repente, alguém encontrasse um arqueópterix vivo numa dessas ilhas isoladas. É certo que algo parecido ocorreu no Leste da África do Sul, no dia 22 de Dezembro de 1938, quando um barco pesqueiro pegou nas suas redes um crossopterígio, o chamado latimeriídeo. O grupo de peixes com aletas em forma de ramalhete, tão importante para a evolução, simplesmente porque deles descendemos, V e eu, e todos os outros vertebrados terrestres, só estava documentado por achados fósseis até ao Natal de 1938, e se acreditava que havia se extinguido fazia quase cem milhões de anos. Tanto o peixe azul como o tuatara merecem a denominação de fósseis vivos, e eu talvez deva acrescentar um por enquanto. Não faz muitos anos, o tuatara se espalhava por amplas zonas da Nova Zelândia». In Jostein Gaarder, Maya, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2001, ISBN 978-972-232-737-4

Cortesia de EPresença/JDACT

Maya. Jostein Gaarder. «A última etapa da expedição de dois meses pelo Pacífico era Taveuni, uma das ilhas Fiji. A minha missão consistia em estudar como as espécies vegetais e animais…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Querida Vera
«(…) Preocupa-me um pouco o facto de que talvez V só entre na internet mais tarde, e fico tentado a ir enviando este relatório por partes. Mas V vai receber tudo de uma vez só: ou tudo ou nada. Ocorreu-me que eu poderia lhe mandar um e-mail dizendo que amanhã pela manhã V. receberia uma mensagem. Mas não sei se V deseja continuar tendo notícias minhas. Além do mais, terei de me esforçar bastante para que acredite nesta história e, como sabe, ainda não a escrevi. Fui envolvido nesta teia de aranha em Fiji e não me lembro mais do que contei, pois só nos vimos alguns dias, e creio que nos pareceu, tanto a mim como a V, mais adequado manter certa distância, por razões de decoro. Lembro que, quando julguei ter avistado aquele estranho casal em Fiji, tudo começou a se mover como uma avalanche, mas sou incapaz de me lembrar do que contei ou deixei de contar, porque me interrompia o tempo todo com as suas gargalhadas, já que pensava que tudo era uma invenção minha, que eu estava improvisando, como numa espécie de espectáculo nocturno, com o único fim de retê-la a meu lado junto do rio.
Vai perguntar o que Ana e José têm a ver comigo, ou connosco, se preferir. E eu vou lembrar-lhe um postal que certa vez me mandou de Barcelona. Será que eu e V podemos fazer alguma coisa para aceitar que a vida seja tão breve?, escreveu. Agora sou eu que faço a pergunta, mas para respondê-la tenho de falar primeiro de Ana e José. Para compreender o alcance da minha tarefa, V terá inclusive de retroceder comigo um pouco mais no tempo, talvez até ao Devoniano, período em que entraram em cena os primeiros anfíbios. Na minha opinião, é aí que começa esta história. Independentemente do que venha a acontecer connosco, vou pedir-lhe um favor. Instale-se bem confortavelmente e leia, leia!

Vê melhor, quem vê por último
A última etapa da expedição de dois meses pelo Pacífico era Taveuni, uma das ilhas Fiji. A minha missão consistia em estudar como as espécies vegetais e animais importadas intervieram no equilíbrio ecológico. Trata-se de passageiros clandestinos como ratos e camundongos, insectos e lagartixas, assim como de uma importação mais ou menos planeada de espécies como o opossum e o mangusto, feita para pôr em xeque outras espécies, em particular os bichos relacionados a novas formas de agricultura. Um terceiro grupo é constituído de animais domésticos extraviados, como gatos, cabras, porcos, não esquecendo as descuidadas fontes de carne, ou presas de fácil acesso, representadas por animais herbívoros como coelhos e corços. No que se refere às plantas, tanto decorativas como alimentícias, a lista das espécies importadas é tão longa e, além disso, varia tanto de ilha para ilha, que não vale a pena citar nomes.
A parte sul do Pacífico é um paraíso para a realização desse tipo de estudo, pois essas ilhas isoladas mantinham cada uma, até bem pouco tempo atrás, o seu antiquíssimo equilíbrio ecológico com uma rica variedade de espécies vegetais e animais endémicas. Hoje em dia, proporcionalmente à sua superfície e a seu número de habitantes, a Oceânia tem a maior percentagem de espécies animais em perigo de extinção. Esse facto não se deve unicamente à importação de novas espécies, mas também ao desflorestamento e à exploração imprudente de plantações, que causaram uma erosão fatal da terra, o que em última instância arruinou os habitats tradicionais. Várias das ilhas que visitei não haviam praticamente estado em contacto com a cultura europeia até há pouco mais de cem anos. Estamos diante da última grande vaga de colonização ocidental. É óbvio que cada ilha, cada novo assentamento e cada pequeno porto têm a sua própria história. Apesar disso, as consequências ecológicas tiveram o mesmo e triste denominador comum: os clandestinos dos navios, ratos, camundongos e insectos, foram como uma praga ecológica que chegou com as primeiras embarcações. Para sanear os efeitos daninhos dessas espécies importadas, procedia-se à importação de uma nova espécie, por exemplo, sapos, que manteriam sob controle certos insectos, sobretudo nas plantações de cana, ou se importavam felinos a fim de combater os ratos. Essas espécies se transformariam mais tarde numa peste pior ainda do que tinham sido os ratos e os insectos, levando à importação de uma nova espécie de animais predadores, com a função de manter sob controle sapos, cobras e ratos. Esses animais logo se tornavam uma catástrofe ecológica para muitas espécies de aves, entre outras, mas também para muitos dos répteis autóctones, o que trazia consigo a necessidade de uma espécie de predador ainda maior, e assim por diante, Vera». In Jostein Gaarder, Maya, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2001, ISBN 978-972-232-737-4

Cortesia de EPresença/JDACT

Poesia. Matilde Campilho. «Você falava que os dólares vinham sempre com uma forma diferente eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Jóquei
FUR, com cara de Whitman

«foi assim que você pensou que eu viria ao mundo
foi assim que você me viu na floresta
foi assim que você me viu pendurado no poste eléctrico
sempre pendurado num ramo qualquer
sempre usando o Verão.
Você se lembra daquele Verão no Brooklyn
em que ficámos perseguindo os bombeiros
durante todo o dia apenas para ver
uma vez e depois outra vez
o leque aquático que se abria sobre o fogo?
Você citava poetas húngaros mas nesse tempo
eu só queria saber de inventar uma língua
que não existisse.
Você se lembra do concierge que nos recebia
na pensão do Brooklyn como se nunca nos houvesse visto antes?
E não havia semana que passasse
em que nós não dormíssemos
pelo menos uma madrugada
na pensão do Brooklyn.
Me lembro dos dólares amassados
que eu semanalmente tirava do bolso
para pagar a Doug
eu sabia o nome de Doug
o Doug nos tratava disfarçadamente
por menina e menino.
Você falava que os dólares vinham
sempre com uma forma diferente
eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso
eu adoro como você consegue tirar uma lâmpada do bolso
eu adoro como você consegue tirar a Beretta 92fs do bolso
foi assim que você pensou que eu ficaria
no mundo
com corpo de besta vestida
usando um lápis pousado na orelha

foi assim que você me viu
pedindo três ovos para Miss Elsie
a senhora da mercearia na Court Street
ela me deu oito ovos
porque ela sempre dava alguma coisa
ela me achava uma graça e ela não acreditava
em números ímpares. Eu também não.
Me lembro de você na mercearia
do Brooklyn você costumava ficar lá atrás
brincando na secção das ferramentas.
Se eu tivesse mais do que um coelho,
uma lâmpada ou uma pistola
eu teria te comprado um Black & Decker
eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha
com um Black & Decker enfiado no cinto.

Foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,
usando flores em meu cabelo negro,
sempre escondidas no emaranhado dos cachos
sempre escondidas no emaranhado do caos
de minha cabeça negra.

Só você sabia quantas flores eu usava
porque agora eu já sei
que você dedicava as noites
à contagem. Deus não dorme
e você também não».

In Matilde Campilho, Jóquei, Coordenador da colecção Pedro Mexia, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2014, ISBN 978-989-671-213-6.

Cortesia de ETintadaChina/JDACT

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «Nos dias que se seguiram, o danado do relógio e eu viramos companheiros inseparáveis. Eu o levava comigo para todo o lado, colocando-o para dormir em baixo do meu travesseiro»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Seus grandes olhos cinzentos, tristes e sem fundo, dominavam a sala. Subitamente, o encantamento se rompeu. Uma silhueta se ergueu da poltrona e virou-se na minha direcção. Uma longa cabeleira branca e dois olhos acesos como brasas brilharam na escuridão. Só consegui ver duas imensas mãos brancas avançando para mim. Em pânico, saí correndo em direcção à porta, mas no caminho tropecei no gramofone e derrubei-o, caindo no chão. Ouvi a agulha arranhando o disco. A voz celestial se apagou num gemido infernal. Saltei para o jardim sentindo aquelas mãos roçarem a minha camisa e atravessei-o com asas nos pés e o medo ardendo em cada poro do meu corpo. Não parei um instante sequer. Corri cada vez mais, sem olhar para trás até que uma pontada de dor perfurou as minhas costelas e então percebi que mal conseguia respirar. Naquela altura, estava coberto de suor frio e as luzes do internato brilhavam 30 metros à minha frente.
Deslizei por uma porta ao lado das cozinhas, que ninguém nunca vigiava, e me arrastei para o meu quarto. Os outros internos já deviam estar no refeitório há muito tempo. Sequei o suor da testa e pouco a pouco o meu coração recuperou o seu ritmo habitual. Começava a me acalmar, quando alguém bateu na porta do quarto com os nós dos dedos. Óscar, hora de descer para jantar, entoou a voz de um dos professores, um jesuíta racionalista chamado Segui, que detestava fazer papel de polícia. Já estou indo, padre, respondi. Um segundo. Vesti apressadamente o paletó do uniforme e apaguei a luz do quarto. Através da janela, o espectro da lua erguia-se sobre Barcelona. Só então me dei conta de que ainda segurava o relógio na mão.

Nos dias que se seguiram, o danado do relógio e eu viramos companheiros inseparáveis. Eu o levava comigo para todo o lado, colocando-o para dormir em baixo do meu travesseiro, com medo de que alguém o encontrasse e perguntasse de onde ele tinha surgido. Não saberia o que responder. Tudo isso é porque não foi achado, foi roubado, sussurrava no meu ouvido uma voz acusadora. O termo técnico é furto com invasão de domicílio, acrescentava a voz que, por alguma estranha razão, usava um tom de suspeita semelhante ao do actor que dobrava Perry Mason. Toda a noite, esperava pacientemente que todos os meus colegas dormissem para examinar o meu tesouro particular. Com a chegada do silêncio, examinava o relógio à luz de uma lanterna. Nem toda a sensação de culpa do mundo conseguiria diminuir a fascinação que o produto da minha primeira aventura no mundo do crime desorganizado me causava. O relógio era pesado e parecia forjado em ouro maciço. A tampa de vidro quebrada sugeria uma pancada ou uma queda. Supus que o mesmo impacto teria sido responsável pelo fim da vida do seu mecanismo e pelo congelamento dos ponteiros às 6h23, numa condenação eterna. Na parte de trás lia-se uma inscrição:

Para Germán, em quem fala a luz.
K.A.
19-1-1964

De repente, a ideia de que aquele relógio devia valer uma fortuna cruzou a minha cabeça e o remorso não demorou a chegar. Aquelas palavras gravadas faziam com que me sentisse como um ladrão de recordações. Numa quinta-feira manchada de chuva, resolvi compartilhar o meu segredo. O meu melhor amigo no internato era um garoto de olhos penetrantes e temperamento nervoso, que respondia pelo nome de JF, embora essa sigla pouco ou nada tivesse a ver com o seu nome real. JF tinha alma de poeta libertário e respostas tão afiadas que muitas vezes cortava a língua com elas. Era de constituição delicada e bastava mencionar a palavra micróbio num raio de um quilómetro ao seu redor, para que acreditasse que tinha uma infecção. Certa vez, procurei o termo hipocondríaco no dicionário e fiz uma cópia para ele. Não sei se já sabia, mas a sua biografia está no Dicionário da Real Academia, anunciei». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «Mais uma vez, alguém decidiu por mim. Um som celestial invadiu as sombras do jardim como um perfume. Ouvi os contornos daquele sussurro desenharem uma ária acompanhada ao piano»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A sua fachada sombria erguia-se por trás de uma fonte com esculturas que o tempo tinha vestido de musgo. Começava a escurecer e o local me pareceu um pouco sinistro: rodeado por um silêncio mortal, só a brisa se atrevia a sussurrar uma advertência sem palavras. Compreendi que tinha penetrado numa das zonas mortas do bairro e pensei que o melhor a fazer era voltar atrás e retornar ao internato. Estava debatendo-me entre o bom senso e a fascinação mórbida por aquele lugar esquecido, quando descobri dois brilhantes olhos amarelos acesos no meio da escuridão, cravados em mim como punhais. Engoli em seco. A pelagem cinzenta e aveludada de um gato se recortava imóvel diante das grades do portão da mansão. Um pequeno pardal agonizava entre seus dentes pontiagudos. Um guizo prateado pendia do pescoço do felino. Seu olhar estudou-me por alguns segundos. Pouco depois, deu meia-volta e deslizou por entre as barras de ferro. Fiquei olhando enquanto ele se perdia na imensidão daquele éden maldito, levando o pardal na sua última viagem.
A visão daquela pequena fera altiva e desafiadora cativou-me. A julgar por seu pelo lustroso e pelo guizo no pescoço, deduzi que tinha dono. Talvez aquela casa hospedasse algo mais que os fantasmas de uma Barcelona desaparecida. Cheguei mais perto e apoiei as mãos nas grades da entrada. O metal estava frio. As últimas luzes do crepúsculo iluminavam o rasto que as gotas do sangue do pardal tinham deixado através daquela selva.
Pérolas escarlates desenhavam a trilha do labirinto. Engoli de novo, ou melhor, tentei engolir. A minha boca estava seca. Como se soubesse de alguma coisa que eu ignorava, o sangue latejava nas minhas têmporas. Foi nesse instante que senti a porta ceder sob meu peso, e compreendi que estava aberta. Quando dei o primeiro passo para o interior, a lua iluminava o rosto pálido dos anjos de pedra da fonte. Eles me observavam. Meus pés pareciam pregados no chão. Temia que a qualquer momento aqueles seres pulassem dos seus pedestais e se transformassem em demónios armados de garras de lobo e línguas de serpente. Mas nada disso ocorreu. Respirei profundamente, considerando a possibilidade de desligar a minha imaginação ou, melhor ainda, abandonar a minha tímida exploração daquela propriedade.
Mais uma vez, alguém decidiu por mim. Um som celestial invadiu as sombras do jardim como um perfume. Ouvi os contornos daquele sussurro desenharem uma ária acompanhada ao piano. Era a voz mais bonita que eu já tinha ouvido na vida. A melodia me parecia familiar, mas não consegui identificá-la. A música vinha da casa. Segui o seu rasto hipnótico. Lâminas de luz vaporosa se filtravam pela porta entreaberta de uma galeria envidraçada. Reconheci os olhos do gato, fixados em mim do parapeito de um janelão do primeiro andar. Fui-me aproximando da galeria iluminada de onde saía aquele som indescritível. Era a voz de uma mulher. O brilho ténue de cem velas bruxuleava no interior. A luz revelava a cometa dourada de um velho gramofone, no qual girava um disco. Sem pensar no que estava fazendo, fui invadindo a galeria, fascinado por aquela sereia aprisionada no gramofone. Na mesa onde a engenhoca repousava entrevi um objecto brilhante e esférico. Era um relógio de bolso. Peguei-o e fui examiná-lo à luz das velas. Os ponteiros estavam parados e a tampa, rachada. Parecia de ouro e tão velho quanto a casa em que se encontrava. Um pouco mais adiante havia uma grande poltrona de costas para mim, diante de uma lareira sobre a qual pude apreciar o retrato a óleo de uma mulher vestida de branco». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Na encosta do Castelo de São Jorge e mesmo em Alfama, o rapaz também só via desolação, e perguntou a si próprio o que teriam feito para merecer tal castigo»

jdact

«(…) E Gold, o protestante, comentou comigo: Deus curioso, your God! Todo dia, everyday, padres everywhere! Today, terramoto, sofrimento, not one priest! Nem um, damn! Where are eles, quando we need? Sorri perante o seu habitual sarcasmo. Mas não era verdade. Naqueles dias, a vaguear pela cidade destruída, encontrámos muitos homens e mulheres de Deus, e percebemos que estavam tão perdidos como nós.
Dos vários personagens que conheci naqueles estranhos dias, o rapaz foi curiosamente o primeiro que vi. Cruzámos os nossos destinos logo na primeira manhã, e quando falei com ele já sabia o que tinha feito, a coragem que revelara. Hoje, tenho pena de não o ter elogiado. Talvez as coisas tivessem sido diferentes, talvez tivesse olhado para mim com outros olhos. Mas não foi assim e não há nada que possa fazer para mudar a história. O rapaz estava ainda próximo da arruinada Igreja de São Vicente de Fora quando se deu o terceiro abalo. Embora determinado a procurar a irmã, não lhe fora fácil atravessar aquele descalabro. Não existiam ruas, nem casas, nem prédios onde antes tinham existido. Quando a nuvem de poeira levantou, viu no meio daquela irrespirável bruma o Castelo de São Jorge e mais em baixo a Sé, e foi assim que se orientou em direcção à sua casa, próxima da Igreja da Madalena. Naquelas circunstâncias, andar era difícil: havia fendas inesperadas e fundos precipícios no terreno; as ruas apresentavam-se impedidas, atulhadas de pedras. Demorou a aproximar-se do Castelo e das suas muralhas. Os mortos atapetavam o chão, em posições complexas, semelhantes a estátuas esculpidas por desvairados. As pessoas corriam, atarantadas, como as crianças perdidas, aos berros. O rapaz prosseguiu, determinado. Próximo da Graça, uma pequena multidão observava o Rossio, em baixo, e a colina oposta, do Bairro Alto. Nada era como tinha sido. A cidade abatera, como que deitando-se no chão, e nem os seus edifícios mais simbólicos haviam escapado. Na praça, o Hospital de Todos-os-Santos era o único que parecia intacto, mas ao seu lado tanto o Convento de São Domingos, como o Palácio da Inquisição (maldito), haviam sido fortemente atingidos.
Na encosta do Castelo de São Jorge e mesmo em Alfama, o rapaz também só via desolação, e perguntou a si próprio o que teriam feito para merecer tal castigo, mas não encontrou razão. Por isso, cessou de procurar motivos e continuou a descer para a Sé, e com ele desciam muitas pessoas que tinham subido para as festas em São Vicente de Fora e agora regressavam às suas casas. Eram já pessoas diferentes, mudadas para sempre, partidas por dentro, cheias de mágoa e desespero e medo do futuro. Tinham ido encontrar-se com Deus naquele feriado e haviam sido massacradas de uma forma inimaginável. Ao passar perto da Sé ouviu tiros. Deviam ter fugido prisioneiros do Limoeiro e os soldados tentavam abatê-los, foi a sua conclusão, e decidiu ter precaução, receando ser apanhado no fogo cruzado dos confrontos. Algumas casas tinham ficado intactas, bem como a Sé, que, orgulhosa, apenas mostrava os flancos danificados. Foi então que, mesmo à sua frente, viu três homens a saírem de uma casa. Arrastavam um desgraçado, provavelmente o proprietário. Atiraram-no ao chão e deram-lhe um tiro, abatendo-o. O rapaz escondeu-se atrás de um monte de pedras e ficou a observar. Um dos homens, mais alto do que os outros dois, parecia ser o chefe. O seu cabelo e as suas barbas eram negros e dos seus olhos e dos seus gestos emanava uma energia maligna. Vasculhou os bolsos do proprietário e retirou um relógio. Depois, os três bandidos reentraram dentro da casa e ouviram-se mais gritos, seguidos de um silêncio mais assustador do que o barulho.
O rapaz aproveitou o momento e recomeçou a andar, mas foi surpreendido pelo regresso abrupto do homem mais alto, que se dirigiu ao morto. O rapaz sentiu medo. O grandalhão observou-o, enquanto vasculhava as roupas do defunto. Sorriu quando encontrou uma chave e depois perguntou ao rapaz: qué passa? O rapaz não respondeu, mas percebeu que o ladrão era espanhol. Um dos seus companheiros saiu também de casa, trazendo uma mulher pelos cabelos, que implorava: não, não, por favor, não! O homem enorme olhou para o rapaz e riu-se, e depois perguntou: hay visto una mujer morrer? O rapaz respondeu: sim. A minha mãe. O energúmeno soltou uma gargalhada e perguntou-lhe: como hay morrido tu pobre madre? O rapaz contou-lhe: morreu lá em cima, em São Vicente de Fora, na igreja. Executando uma mímica maldosa, o bisonte benzeu-se e murmurou: paz à su alma... Pero, esta vai gozar mucho más que tu madre... Aproximou-se da mulher, agarrou-a pela nuca e depois ordenou ao seu subordinado: leva-la!!! O outro riu e acatou a ordem, mas antes aconselhou-o, apontando na direcção do rapaz: matá-lo. Muertos no hablam con soldados... O homem mais alto deu nova gargalhada, aproximou-se do rapaz e perguntou: chico, quieres morrer? O rapaz disse que não. O matodonte agarrou-o pelo cachaço, levou a mão ao cinto e empunhou uma faca, que depois lhe encostou à garganta. A mi me gustan los chicos... Apesar do medo, o rapaz disse: eu só queria água... O bandido, ao ouvir falar em água, pensou uns segundos». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT