sexta-feira, 9 de agosto de 2019

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «Há alguns anos, poderia dar-se ao luxo de acender um charuto e deliciar-se com ele até a consumição total, lendo o jornal e lançando longas baforadas para o ar»

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Conclave
26 de Agosto de 1978
«(…) A diferença é a indiferença com que agora olha para certas provocações que Ele nunca hesita em lhe enviar. Seja um pequeno sinal, ou uma grande revelação, esse velho que aqui se senta sozinho na companhia do jornal entende-os bem. Ao contrário do comum dos mortais, ele não teme a Deus. Muitas almas pereceram às mãos ou às ordens desse velhinho de bengala, que tenta fazer parecer que a bengala está presente apenas por uma questão de imagem, quando a verdade é que já não consegue dar um passo sem ela. O tempo é implacável para todos, e não deixa ninguém de fora. Seu assistente não se encontra nas redondezas, o que permite especular sobre o seu paradeiro. Decerto, está resolvendo assuntos do interesse do idoso, em algum ponto dentro ou fora do país, quaisquer que sejam a localização das matérias em questão, dos assuntos em cima da mesa. Apesar de denominarmos o homem ausente de assistente, ele é aquilo a que vulgarmente se chama secretário pessoal. Todos os poderosos os têm, incluindo o papa; e bem podemos dizer que esse homem sentado na cadeira de ferro da esplanada da villa tem tanto poder quanto o papa, ou até mais.
Há alguns anos, poderia dar-se ao luxo de acender um charuto e deliciar-se com ele até a consumição total, lendo o jornal e lançando longas baforadas para o ar. Hoje, contenta-se apenas com a leitura do diário, já que os pulmões não mais permitem veleidades tabagistas. Deus, aos poucos, vai-lhe tirando todos os prazeres terrenos. Uma tosse roufenha e súbita invade a calma da noite quente e abafa o desejo tentador. Pode muito bem resistir a essas tentações da carne e da mente. Outras coisas o preocupam, e não é homem de se preocupar com miudezas; no entanto, um lema o acompanha desde sempre: tudo tem solução. Perdido num turbilhão de pensamentos, não dá pela presença sorrateira de uma serviçal, que traz um telefone na mão. Senhor?
Ela repete o chamamento à falta de resposta. Sim, Francesca. Diga. Parece acordar de um sonho. Telefone para o senhor. A empregada retira-se assim que entrega o aparelho ao patrão, deixando-o à vontade para cuidar das suas questões, fossem elas quais fossem, pois não ousava meter-se na vida dele. Pronto, anuncia o velho com voz forte, denominador comum do controle: não há dúvidas quando se ouve o seu timbre duro; é ele quem manda.
Reconhece do outro lado a voz serena do assistente, que transmite os dados relativos à missão. Ao contrário do patrão, a voz dele é monotonamente monocórdica, relatando a ladainha com precisão e competência, valores herdados do velho que escuta. Sabe como ele gosta de tudo bem explicado e com sucinta celeridade; não há necessidade de usar dez palavras quando três bastam, como fazem certos escritores. Muito bem. Pode voltar. Vamos monitorar tudo daqui. Mais alguns segundos de silêncio entrecortados pelos zunidos reproduzidos pelo fone. Ele fará um bom trabalho. Não será difícil localizar Marius Ferris, conquanto haja exactamente como ordenei: na rectaguarda... Fico à sua espera.
Um clique no botão e a chamada internacional é desligada, cortando a união virtual entre dois países distintos, uma linha invisível que permite a passagem das vozes e dos dados. Põe o aparelho em cimo da mesa, para logo voltar a pegar nele. Agora também tem esses repentes: esquece, momentaneamente, o que devia fazer a seguir. Uma espécie de branco que passa pela cabeça, toldando o raciocínio lógico e frio a que está apegado. Por enquanto não se revelou prejudicial, manifestando-se apenas no cómodo lar, poucas vezes por mês. Mas sabe que é uma questão de tempo, até que o manto branco se demore, se instale e se apodere. Quando? Não saberá dizer. Meses, anos..., é uma incógnita. É a vingança da vida sobre nós. Guarda sempre o conhecimento para si; não o reparte nunca com ninguém.
Faz nova ligação, rapidamente completada. Sabe quem é o interlocutor que atende, pois só ele está autorizado a fazê-lo. Geoffrey Barnes. Pode efectivar a neutralização do alvo. Aguardo confirmação. E desliga sem mais palavras. Agora, sim, põe o aparelho em cima da mesa e volta ao jornal que o aguarda. Sarah Monteiro, chegou a sua hora». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT