Cortesia
de wikipedia e jdact
«No final da década
de 1970, Barcelona era uma miragem de avenidas e becos, onde, só de cruzar a
soleira de uma portaria ou de um café, uma pessoa poderia viajar para trinta ou
quarenta anos antes. O tempo e a memória, a história e a ficção se fundiam como
aquarelas na chuva naquela cidade feiticeira. Foi ali, sob o eco de ruas que já
não existem, que catedrais e edifícios fugidos de alguma fábula tramaram o cenário
desta história.
Na época, eu era um menino de 15
anos que mofava entre as paredes de um internato com nome de santo, nas margens
da estrada de Vallvidrera. Naquele tempo, o bairro de Sarriá ainda conservava o
aspecto de um pequeno povoado encalhado à margem de uma metrópole modernista.
Meu colégio se erguia no alto de uma rua que subia do Paseo de La Bonanova. Sua
fachada monumental sugeria mais um castelo do que uma escola. E sua silhueta
angulosa de cor barrenta era um quebra cabeça de torres, arcos e alas em trevas.
O colégio era cercado por uma cidadela de jardins, fontes, tanques lodosos, pátios
e pinheirais encantados. Ao seu redor, edifícios sombrios hospedavam piscinas
cobertas por um véu fantasmagórico de vapor, ginásios enfeitiçados de silêncio
e capelas tenebrosas onde as imagens dos santos sorriam sob o reflexo dos círios.
O edifício tinha quatro andares, sem
contar os dois porões e o sótão com o claustro, onde viviam os poucos
sacerdotes que ainda trabalhavam como professores. Os quartos dos internos se
enfileiravam ao longo dos corredores cavernosos do quarto andar. Essas intermináveis
galerias jaziam em perpétua penumbra, envoltas por um eco espectral. Eu passava
meus dias sonhando acordado nas salas de aula daquele imenso castelo, esperando
pelo milagre que se produzia todo dia às cinco e vinte da tarde. Nessa hora mágica,
o sol vestia os altos janelões de ouro líquido. A campainha tocava anunciando o
fim das aulas e nós, os internos, dispúnhamos de quase três horas livres antes
do jantar no refeitório. A ideia era de que esse tempo deveria ser dedicado aos
estudos e à reflexão espiritual. Não me lembro de ter destinado um único dia
dos muitos que passei ali a nenhuma dessas nobres tarefas. Aquele era o meu
momento favorito. Driblando o controle da portaria, partia para explorar a cidade.
Costumava voltar para o internato, ainda a tempo de jantar, caminhando entre
velhas ruas e avenidas enquanto anoitecia ao meu redor. Naqueles longos passeios,
experimentava uma sensação de liberdade embriagante. A minha imaginação voava
por cima dos edifícios e se erguia até ao céu. Por algumas horas, as ruas de
Barcelona, o internato e o meu triste dormitório no quarto andar sumiam. Por algumas
horas, só com um par de moedas no bolso, eu era o sujeito mais sortudo do
universo.
Muitas vezes, o meu caminho me levava
para aquela área que na época era chamada de deserto de Sarriá e que não era
nada mais que um arremedo de bosque perdido numa terra de ninguém. A maioria
das antigas mansões senhoriais, que nos bons tempos povoavam o norte do Paseo
de la Bonanova, ainda estava de pé, embora em ruínas. As ruas que cercavam o
internato traçavam uma cidade fantasma. Muros cobertos de hera vedavam a entrada
em jardins selvagens nos quais se erguiam residências monumentais, palácios
invadidos pelo mato e pelo abandono, nos quais a memória parecia flutuar como
uma névoa que demora a se dissipar. Muitos desses casarões só esperavam a
demolição e outros tinham sido saqueados por anos a fio. Alguns, no entanto, ainda
estavam habitados. Os seus ocupantes eram membros esquecidos de famílias arruinadas.
Uma gente cujo nome se escrevia em quatro colunas no La Vanguardia, na época em que os bondes ainda
despertavam o temor reservado a invenções modernas. Reféns de um passado moribundo,
negavam-se a abandonar o barco à deriva. Temiam que os seus corpos se desfizessem
em cinzas ao vento se ousassem pôr os pés fora das suas mansões devastadas.
Prisioneiros, definhavam à luz dos
candelabros. Muitas vezes, quando passava apressado diante das grades
enferrujadas de um daqueles portões, eu tinha a impressão de que olhares assustados
me acompanhavam por detrás das janelas descascadas. Uma tarde, no fim de Setembro
de 1979, resolvi aventurar-me ao acaso por uma daquelas avenidas semeadas de
palacetes modernistas que não tinha reparado antes. A rua descrevia uma curva
que terminava num portão de ferro igual a tantos outros. Do outro lado da
grade, estendiam-se os restos de um velho jardim marcado por décadas de
abandono. Entre a vegetação, entrevia-se a silhueta de um casarão de dois
andares». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1
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