segunda-feira, 26 de agosto de 2019

A Rainha Descalça. Ildefonso Falcones. «Virou o rosto para Milagros e viu-a andar erguida, arrogante, atenta a tudo e a todos. Como corresponde a uma cigana de raça, reconheceu então, sem poder evitar um esgar de satisfação. Como não iam reparar na sua menina?»

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Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748
«(…) Em Triana todos sabem que sou sua neta. Riu. Os dentes brancos contrastaram com a tez escura, igual à de sua mãe, igual à de seu avô. Quem se atreveria? A luxúria é cega e ousada, menina. São muitos os que arriscariam a vida para ter-te. Eu só poderia vingar-te, e não haveria sangue suficiente com que remediar essa dor. Lembra-o sempre, acrescentou dirigindo-se à mãe. Sim, pai, respondeu esta. Ambas esperaram uma palavra de despedida, um gesto, um sinal, mas o cigano, hierático na sua esquina, não acrescentou nada mais. Ao final, Ana tomou a filha pelo braço e deixaram a casa. Era uma manhã fria. O céu estava fechado e ameaçava chuva, o que não parecia ser impedimento para que as pessoas de Triana se dirigissem à igreja de São Jacinto para celebrar a bênção das candeias. Também eram muitos os sevilhanos que queriam juntar-se à cerimónia e, com os seus círios às costas, cruzavam a ponte ou venciam o Guadalquivir a bordo de algum dos mais de vinte barcos dedicados a levar gente de uma margem à outra. A multidão prometia um dia proveitoso, pensou Ana antes de recordar os temores de seu pai. Virou o rosto para Milagros e viu-a andar erguida, arrogante, atenta a tudo e a todos. Como corresponde a uma cigana de raça, reconheceu então, sem poder evitar um esgar de satisfação. Como não iam reparar na sua menina? Seu abundante cabelo castanho caía-lhe pelas costas até misturar-se com as longas franjas verdes do lenço que levava sobre os ombros. Aqui e ali, entre o cabelo, uma fita colorida ou uma pérola; grandes brincos de prata pendiam das suas orelhas, e colares de contas ou de prata saltavam sobre os seus peitos jovens, presos no amplo e atrevido decote da camisa branca. A saia azul cingia-se à sua delicada cintura e chegava quase até ao chão, sobre o qual apareciam e desapareciam seus pés descalços. Um homem a olhou de soslaio. Milagros percebeu-o no mesmo instante, felina, e virou o rosto para ele; as cinzeladas feições da moça se suavizaram, e as suas bastas sobrancelhas pareceram arquear-se num sorriso. Começamos o dia, disse a mãe.
Leio-te a sorte, rapagão? O homem, forte, fez menção de seguir o seu caminho, mas Milagros lhe sorriu abertamente e se aproximou dele, tanto que os seus peitos quase o roçaram. Vejo uma mulher que te deseja, acrescentou a cigana, olhando-o fixamente nos olhos. Ana chegou à altura de sua filha a tempo de ouvir suas últimas palavras. Uma mulher… Que mais podia desejar um indivíduo como aquele, grande e sadio, mas evidentemente só, que levava nas mãos uma pequena vela? O homem hesitou alguns segundos antes de fixar-se na outra cigana que se havia aproximado dele: mais velha, mas tão atraente e altiva como a moça. Não queres saber mais? Milagros recuperou a atenção do homem ao mesmo tempo que se aprofundava nuns olhos em que já havia percebido interesse. Tentou pegar sua mão. Tu também desejas essa mulher, não é verdade?
A cigana notou que sua presa começava a ceder. Mãe e filha, em silêncio, coincidiram: trabalho fácil, concluíram ambas. Um carácter acanhado, tímido, o homem havia tentado esconder o seu olhar, enfiado num corpanzil. Certamente havia alguma mulher, sempre havia. Só tinham de animá-lo, insistir em que vencesse essa vergonha que o reprimia. Milagros esteve brilhante, convincente: percorreu com o dedo as linhas da palma da mão do homem como se efectivamente lhe anunciassem o futuro daquele ingénuo. A sua mãe contemplava-a entre sentir-se orgulhosa e divertir-se. Obtiveram um par de quartos de cobre pelos seus conselhos. Depois Ana tentou vender-lhe algum charuto de contrabando. Pela metade do preço das tabacarias de Sevilha, ofereceu-lhe. Se não queres charutos, também tenho pó de tabaco, da melhor qualidade, limpo, sem terra. Tentou convencê-lo abrindo a mantilha com que se cobria para mostrar-lhe a mercadoria que levava escondida, mas o homem limitou-se a esboçar um sorriso bobo, como se mentalmente já estivesse cortejando aquela a que nunca se havia atrevido a dirigir a palavra.
Durante todo o dia, mãe e filha moveram-se entre a multidão que se deslocava do Altozano, pelos arredores do castelo da Inquisição (maldita) e da igreja de São Jacinto, ainda em construção sobre a antiga ermida da Candelária, lendo a sorte e vendendo tabaco, sempre atentas aos oficiais de justiça e às ciganas que furtavam os desprevenidos, muitas delas pertencentes à sua própria família. Ela e a sua filha não necessitavam correr esses riscos e não desejavam ver-se envolvidas em alguma das muitas altercações que se produziam quando flagravam alguma: o tabaco já lhes proporcionava ganhos suficientes». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia BertrandE/JDACT