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A
Grande Sombra
A
Fernando Pessoa. Dezembro de 1905
«O Misterio... Oh!,
desde a infancia esta obsessão me perturba, o seu encanto me esvai... No grande
quarto onde eu dormia receava longas horas antes de adormecer, no ondular da luz
indecisa da lamparina de azeite que deixavam sobre o toucador. Temia que as
sombras de subito transviassem, animando-se, e monstros, monstros de bruma,
corressem sobre mim aos esgares, arrepanhando-me... Horas longes, porém, de
medo infantil, só vos posso recordar em saudade. É que então, se sofria, a
minha febre era já a cores, voluptuosidade arraiada também. E assim, quantas
horas até, durante o dia, lasso dos brinquedos sempre iguais, eu ansiava a
noite, sinuosamente, para latejar a ela os meus receios prateados... As grandes
casas ás escuras onde nunca entrara e que, no entanto, bem conhecia de as
percorrer iluminadas, eu, do meu leito, imaginava-as, criava-as agora no
silencio e na treva, fantasticas: terrificantes e maravilhosas.
Pensava: Oh!, a gloria de passear nelas por esta solidão, de
tactear o que haverá dentro delas!... E vinham-me ideias de, sorrateiramente,
descalço, para as criadas não sentirem, erguer-me da minha pequena cama branca
de taipais e partir a visita-las... Mas era mais forte do que a ansia o meu
pavor... Escondia a cabeça debaixo dos lençois, mesmo de verão, até que
adormecia esquecido, fundamente... As grandes casas ás escuras... Ainda hoje
não sei entrar nelas tranquilo... E evito sempre percorre-las... De mais a
minha inteligencia sabe coisa alguma de espectral existir aí, magicas
vibrações, indicios nenhuns de sortilegio ondular ao redór... Mas receio
sempre... E lembram-me fantasmas... triangulos frios... espadas nuas... listas
de fôgo doutras cores... Tremo e vacilo. Retrocedo...
A sumptuosidade inegualavel do misterio!... Sim! Desde criança
adivinhei que a unica forma de volver rutilante uma vida, e bela,
verdadeiramente bela em ameias a marfim e ouro, seria lograr referi-la ao
misterio, inclui-la nêle... Mas como, meu Deus, como?... Procurando, descendo
bem as trevas, acumulando imperialmente enigma sobre enigma. Oh... debalde,
debalde, até hoje, tenho buscado segredos para ungir com êles a minha existência,
imortalisa-la de Sombra... À minha volta é tudo bem certo, mais do que certo,
real sem remedio... Só a minha imaginação vence ainda tremular mistérios,
misterios porém de fumo; quebrantos a vago, lendarios... E a luz sempre sobre
mim, a luz, certeza tosca, material... Tambem já na infancia, de resto, era
assim em verdade. Só em fantasia me amedrontava, só com ela ia achar um enlevo
delicioso e inquieto nos alçapões, nos subterraneos (se me falavam dalgum
palacio antigo) e nas pontes, nos zimborios, nos grandes arcos, bem como já me
passavam ás vezes, em calafrios, vagas reminiscencias de aquedutos negros, que
eu nunca vira, decerto. Mas havia sobretudo no predio da nossa quinta um sótão
inexplicavel que durante os anos da minha infancia foi para mim o centro de
todo um mundo misterioso.
Esse
sótão, ao que uma só vez vagamente entrevira, não tinha sobrado. Era, concluo
hoje, apenas um desvão entre o telhado e o forro da casa, sendo um corpo do
edificio mais alto do que o outro. De longe a longe os criados vinham limpa-lo,
creio. Deixar-me-hiam entrar, talvez, mas não o tentei nunca, com medo: e
percebo agora que o meu receio era apenas de o ficar conhecendo realmente, e
assim perder aos meus olhos todo o seu encanto. Ah! mas as vezes que eu subia até á sua porta,
a escutar... Pelas frestas o vento entrava redemoinhando; de espaço a espaço o
vigamento rangia, e tudo isso se transtornava na minha imaginação em bater de
asas negras, arrastar de correntes... crepitar de ossos, quem sabe... Certo dia
a minha coragem foi até entreabrir a porta... Lá dentro, penumbra densa,
emtanto, um raio de sol da tarde, coando-se por uma fresta, iluminava em
magicas palpitações um halo de poeira multicolor... Assombrado, cego da
maravilha, fechei a porta no mesmo instante, fugi...» In Mário Sá-Carneiro, Céu em Fogo,
1914, Portal da Literatura, Bibliotrónica Portuguesa, Lisboa, 2015.
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