quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Em Demanda da Pintura Medieval Portuguesa (1100-1400). Luís Urbano Afonso. «Durante a Idade Média, de uma maneira geral, perdurou uma sobrevalorização das artes liberais sobre as artes mecânicas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Desde o tempo de Alexandre Herculano que a inexistência de pintura portuguesa medieval causa algum desconforto aos estudiosos da identidade nacional. Esta inquietude resulta da hipervalorização da pintura no contexto das artes plásticas e da ideia romântica de que um povo tem na arte a melhor manifestação da sua alma colectiva, um pensamento alimentado tanto por republicanos reaportuguesadores (Ramos, 1994) como por ideólogos do Estado Novo. Os mais pessimistas, de ontem e de hoje, encontraram aqui uma prova do crónico desinteresse dos portugueses pela arte e pela cultura, considerando que não se produziu pintura durante a Idade Média por bisonharia e desafecto pelas artes. É certo que a descoberta dos Painéis de S. Vicente, em 1883, eliminou parte dessas angústias e retirou ímpeto às sentenças lapidares acerca do enraizamento do culto da ignorância em terras portuguesas. Se os alemães tinham um Dürer ou um Cranach, os espanhóis um Velázquez ou um Goya, os italianos um Rafael ou um Ticiano, os portugueses lograram resgatar Nuno Gonçalves das brumas da memória e rapidamente o integraram no restrito leque de imortais da nação, colocando-o a par de Camões, consumando-se assim, patrioticamente, o aforismo horaciano ut pictura poesis.
Embora os painéis de Nuno Gonçalves deixassem os intelectuais portugueses menos constrangidos no cotejo com os pares de outras nações, subsistiam várias dúvidas acerca das origens deste pintor, da sua portugalidade, da sua herança e da existência de uma Escola Portuguesa de pintura. Estas e outras questões adensaram a lenda em torno deste pintor de Afonso V, dando origem às teorias mais extravagantes. Agarrando-se, com unhas e dentes, aos conceitos românticos de arte e de artista, alguns autores acentuaram a genialidade de Nuno Gonçalves, apresentando-o como um autodidacta iluminado ou como um pintor formado lá fora, incensando-o no altar universal dos grandes mestres. Outros autores adiantaram explicações exógenas assentes em fontes históricas, supostamente mais verosímeis. Por exemplo, o destaque dado por autores como Joaquim Vasconcelos (1929) à presença de Jan Van Eyck em Portugal, integrado na embaixada borgonhesa que permaneceu entre nós de Dezembro de 1428 a Outubro de 1429, tendo por missão pintar o retrato da infanta dona Isabel, futura mulher de Filipe, o Bom, da Borgonha, foi considerado argumento suficiente para se ver aqui a génese da pintura portuguesa primitiva.
Por outras palavras, há um século o despontar da pintura portuguesa primitiva era justificado pela imanência de um génio isolado ou pelo contacto, quase místico, com um nome sagrado da História da Arte. Eis, pois, a essência das duas principais teorias destinadas a explicar, simultaneamente, o aparecimento de um artista da craveira de Nuno Gonçalves e a insipiência de uma tradição pictórica anterior a ele. Embora continuem a subsistir vários partidários destas vetustas teorias, é certo que os argumentos invocados em seu apoio se revelam cada vez mais débeis. Neste texto pretendemos demonstrar que várias das questões levantadas a respeito da pintura medieval portuguesa foram mal colocadas, dando origem a teorias frágeis e inconsequentes. A nossa intenção consiste em destacar os múltiplos sinais da existência da prática pictórica entre nós, sobretudo a partir dos finais do século XIII, tentando pôr cobro à ideia de que a pintura em Portugal só começou com Nuno Gonçalves.
Por outro lado, pretendemos mostrar que a actual preeminência atribuída à pintura no contexto das artes plásticas resulta de um preconceito moderno, não aplicável à Idade Média, o que nos tem impedido de ver, e valorizar, outras formas de produção de imagens bidimensionais que nesse período eram consideradas bastante mais importantes.

Durante a Idade Média, de uma maneira geral, perdurou uma sobrevalorização das artes liberais sobre as artes mecânicas. Na classificação tradicional das ciências, herdada de Marciano Capela, as artes liberais eram as actividades intelectuais dependentes de sete disciplinas escolares básicas: a Gramática, a Retórica e a Dialéctica, que formavam o trivium, e a Geometria, a Aritmética, a Música e a Astrologia, que constituíam o quadrivium. Actividades que implicassem um trabalho manual eram integradas nas artes mecânicas, o que incluía todo o tipo de trabalho do mundo do campo, do mar e dos ofícios industriais. Dentro desta óptica os artistas desenvolviam actividades mecânicas, no sentido em que realizavam as suas obras manualmente, seguindo determinadas regras e conhecimentos. De um ponto de vista objectivo, os artistas eram considerados artesãos, tal como os alfaiates ou os tanoeiros. Mesmo a ênfase colocada por certas ordens monásticas na necessidade de o monge ocupar parte do dia com trabalho manual, como testemunha a célebre máxima beneditina ora et labora, resulta mais do combate à ociosidade do que de uma verdadeira valorização do trabalho manual, situando-o num patamar inferior ao das artes liberais e, sobretudo, muito abaixo do Opus Dei». In Luís Urbano Afonso, Em Demanda da Pintura Medieval Portuguesa (1100-1400), ANTT, Primitivos Portugueses (1450-1550), O século de Nuno Gonçalves, edição J. A. Carvalho, Lisboa, Athena, 2010.

Cortesia de Athena/JDACT