jdact
«(…) Embora muitas paredes ainda estivessem de pé, a maior
parte dos prédios caíra. Montanhas de detritos haviam nascido no lugar da rua.
O ar estava quase irrespirável, carregado de nuvens escuras de poeira que
subiam aos céus. O capitão Hugh Gold reparou então que estava de camisa de
noite e de chinelos nos pés. Sentiu um ligeiro embaraço, mas, ao ver quem
passava à sua frente, aceitou melhor a sua sorte. A maioria das pessoas estava
nua. Homens e mulheres e crianças sem nada em cima da pele, só poeira e sangue
e terra. Andavam sem falar, só a gemer, em pânico. Os olhos eram o mais
impressionante: esgazeados, a fitarem o vazio, sem verem os outros, sem verem
nada a não ser o horror das imagens que tinham visto momentos antes. Ninguém se
importava com a sorte de ninguém. Era como se cada um daqueles seres humanos
estivesse a sós no mundo, a sós com o seu sofrimento e a sua angústia e o seu
desespero, e nada mais existisse do que a vontade individual de escapar dali.
Os maridos esqueciam as mulheres, os pais e as mães esqueciam os filhos. O
egoísmo individual, contou-me Gold, era um imperativo totalitário. Nos
primeiros momentos depois do grande terramoto, os humanos transformaram-se em
seres que só pensavam na sua própria sobrevivência. Morrer era ficar para trás,
como ficaram o carcereiro, a mãe do rapaz, a criada de Gold; e ficar para trás,
mesmo que vivo, era morrer para os outros. Viver era só fugir, sair de onde se
estava, e foi o que fizemos, os que sobreviveram.
Além disso, havia aquela comoção brusca
e inesperada que provocava a visão dos cadáveres. As pessoas também fugiam disso.
O capitão inglês relatou-me que, no espaço de apenas vinte metros, viu uma
mulher sem cabeça, uma criança com o tronco e os braços esmigalhados, e também
uma perna solitária, erguida para o céu, emergindo de um monte de caliça. Não
admira que as pessoas também fugissem destes insuportáveis monumentos macabros.
Quando se libertou desse estado de perturbação, Gold lembrou-se da esposa.
Decidiu subir a rua, na direcção em que ela fora para a missa. Escalou os
montes de entulho, cruzando-se com mais pessoas nuas. Caminhavam todas para o
rio, descendo para o largo da Igreja de São Paulo. Ele foi no sentido
contrário, à procura da mulher. Encontrou-a ao fim de cinquenta metros, a touca
ainda na cabeça, tingida de sangue. Encostada a uma parede, estava ligeiramente
tombada para a direita, também morta. Hugh Gold reconheceu-me a culpa que
sentiu nesse momento por, minutos antes, ter desejado que ela desaparecesse da
sua vida. Sentou-se no chão, ao lado do cadáver da mulher, e pensou que, se
tivesse vindo ao andar de baixo falar-lhe, dar-lhe o dinheiro que ela queria,
talvez ela agora estivesse viva. Contudo, não lhe adiantava pensar desta forma.
Poderia levá-la dali? Examinou as hipóteses, mas, com o braço naquele estado,
não a conseguia carregar. Para mais, para onde a levaria, se a sua casa ruíra?
À sua frente, prosseguia a peregrinação de seres sujos,
como que saídos de um banho de lama, mas notou que agora alguns já falavam. À
medida que os abalos se afastavam no tempo, a voz das pessoas ia regressando,
bem como uma certa estabilidade dos seus olhares. Hugh Gold decidiu que era
melhor descer também na direcção do rio. Deixou a mulher no local onde a
encontrara e recomeçou a caminhar, fazendo o percurso inverso. Ao passar perto
de uma parede que se mantivera de pé, ouviu uma voz a chamar. Uma mulher tinha
uma criança ao colo, mas estava incapaz de se libertar das pedras que a
cobriam. O inglês ajudou-a, e ela levantou-se, sempre com o bebé ao colo, muda.
Olhava para ele, e depois para a rua, e depois para o filho que trazia nos
braços. O capitão perguntou: the criança is viva? A mulher parecia alucinada,
sem reacção. O capitão tocou na criança, que abriu os olhos, e então ela recuou
e gritou: não!!!!
O capitão acalmou-a, mas ela segurou o bebé com mais força
junto ao peito, como que para protegê-lo. Gemeu e soluçou. O capitão subiu um
monte de entulho e, no topo, fez um gesto para a mulher o seguir. Foram subindo
e descendo os escombros, escutando os gemidos dos moribundos, a mulher
carregando a criança, uns metros atrás do capitão. De súbito, um terceiro tremor
abalou a terra, tão violento como os anteriores, mas de mais curta duração.
Hugh Gold deitou-se numa cama irregular de pedregulhos, tentando proteger-se.
Algumas estruturas que haviam resistido aos primeiros abalos tombavam agora, e
quando tudo acabou, entre as nuvens de poeira, o capitão verificou que, na sua
rua, já não restava nenhum prédio de pé. Ficou longos minutos deitado à espera
de que fosse possível caminhar de novo e, quando se levantou, pasmou-se.
Daquele local, antes uma rua lateral de Santa Catarina, com prédios dos dois
lados e sem vistas, podia agora ver o rio lá em baixo e a outra margem. A
cidade desaparecera, não passava de um cobertor de entulho, de onde se elevava
um capacete escuro de poeira.
Regressaram os gritos, os gemidos e os
seres que, como répteis, saíam debaixo das pedras, para prosseguir a sua
caminhada. O capitão Hugh Gold limpou o pó da cara e depois lembrou-se da
mulher que ajudara há pouco. Viu-a, soterrada, só a cabeça acima do nível da terra. Na sua boca aberta,
um grito parecia ter ficado paralisado por uma golfada de caliça. A um metro da
mãe, a criança sufocara igualmente. O capitão inglês deu meia volta, com o
coração pesado, e desceu a colina. Quando chegou ao largo da Igreja de São
Paulo encontrou muita gente como ele, almas perdidas que não sabiam o que fazer
ou onde se dirigir. Todos estavam espantados com tanta desagregação, e havia já
quem dissesse que Deus os castigava, até tinha destruído as igrejas, e assim
era, pois a de São Paulo estava também ela em ruínas, e ninguém, nenhum dos
milhares de padres ou frades ou freiras de Lisboa, aparecera para os confortar».
In
Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos
vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro,
2010, ISBN 978-972-461-986-6.
Cortesia de CdasLetras/JDACT