sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «Nos dias que se seguiram, o danado do relógio e eu viramos companheiros inseparáveis. Eu o levava comigo para todo o lado, colocando-o para dormir em baixo do meu travesseiro»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Seus grandes olhos cinzentos, tristes e sem fundo, dominavam a sala. Subitamente, o encantamento se rompeu. Uma silhueta se ergueu da poltrona e virou-se na minha direcção. Uma longa cabeleira branca e dois olhos acesos como brasas brilharam na escuridão. Só consegui ver duas imensas mãos brancas avançando para mim. Em pânico, saí correndo em direcção à porta, mas no caminho tropecei no gramofone e derrubei-o, caindo no chão. Ouvi a agulha arranhando o disco. A voz celestial se apagou num gemido infernal. Saltei para o jardim sentindo aquelas mãos roçarem a minha camisa e atravessei-o com asas nos pés e o medo ardendo em cada poro do meu corpo. Não parei um instante sequer. Corri cada vez mais, sem olhar para trás até que uma pontada de dor perfurou as minhas costelas e então percebi que mal conseguia respirar. Naquela altura, estava coberto de suor frio e as luzes do internato brilhavam 30 metros à minha frente.
Deslizei por uma porta ao lado das cozinhas, que ninguém nunca vigiava, e me arrastei para o meu quarto. Os outros internos já deviam estar no refeitório há muito tempo. Sequei o suor da testa e pouco a pouco o meu coração recuperou o seu ritmo habitual. Começava a me acalmar, quando alguém bateu na porta do quarto com os nós dos dedos. Óscar, hora de descer para jantar, entoou a voz de um dos professores, um jesuíta racionalista chamado Segui, que detestava fazer papel de polícia. Já estou indo, padre, respondi. Um segundo. Vesti apressadamente o paletó do uniforme e apaguei a luz do quarto. Através da janela, o espectro da lua erguia-se sobre Barcelona. Só então me dei conta de que ainda segurava o relógio na mão.

Nos dias que se seguiram, o danado do relógio e eu viramos companheiros inseparáveis. Eu o levava comigo para todo o lado, colocando-o para dormir em baixo do meu travesseiro, com medo de que alguém o encontrasse e perguntasse de onde ele tinha surgido. Não saberia o que responder. Tudo isso é porque não foi achado, foi roubado, sussurrava no meu ouvido uma voz acusadora. O termo técnico é furto com invasão de domicílio, acrescentava a voz que, por alguma estranha razão, usava um tom de suspeita semelhante ao do actor que dobrava Perry Mason. Toda a noite, esperava pacientemente que todos os meus colegas dormissem para examinar o meu tesouro particular. Com a chegada do silêncio, examinava o relógio à luz de uma lanterna. Nem toda a sensação de culpa do mundo conseguiria diminuir a fascinação que o produto da minha primeira aventura no mundo do crime desorganizado me causava. O relógio era pesado e parecia forjado em ouro maciço. A tampa de vidro quebrada sugeria uma pancada ou uma queda. Supus que o mesmo impacto teria sido responsável pelo fim da vida do seu mecanismo e pelo congelamento dos ponteiros às 6h23, numa condenação eterna. Na parte de trás lia-se uma inscrição:

Para Germán, em quem fala a luz.
K.A.
19-1-1964

De repente, a ideia de que aquele relógio devia valer uma fortuna cruzou a minha cabeça e o remorso não demorou a chegar. Aquelas palavras gravadas faziam com que me sentisse como um ladrão de recordações. Numa quinta-feira manchada de chuva, resolvi compartilhar o meu segredo. O meu melhor amigo no internato era um garoto de olhos penetrantes e temperamento nervoso, que respondia pelo nome de JF, embora essa sigla pouco ou nada tivesse a ver com o seu nome real. JF tinha alma de poeta libertário e respostas tão afiadas que muitas vezes cortava a língua com elas. Era de constituição delicada e bastava mencionar a palavra micróbio num raio de um quilómetro ao seu redor, para que acreditasse que tinha uma infecção. Certa vez, procurei o termo hipocondríaco no dicionário e fiz uma cópia para ele. Não sei se já sabia, mas a sua biografia está no Dicionário da Real Academia, anunciei». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT