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A
Letra Pitagórica
«(…)
Vales, furnas, grutas, os ecos do vento e do mar, planícies escorridas, os
caminhos da alma e da vida!... Lanço atrás um olhar, à estrada, como a querer
com os olhos retroceder e recordar todas as vias percorridas nestas últimas
semanas. E quantas foram!... Tínhamos descido, em nosso vagar, por Ferreira,
Odemira, Algezur e, deixando a orla marítima e atravessando a serra do
Espinhaço, atingíramos a vila de Lagos, cujo casario muito branco, a brilhar ao
sol, já extravasava das velhas muralhas torreadas, de pedra tisnada, de tal maneira
que o seu alcaide, Diogo Silva, andava empenhado no levantamento de uma segunda
cerca que envolvesse toda a povoação e a protegesse. Depois de passarmos pela
Ermida da Senhora dos Aflitos e, mais perto das primeiras casas, pela de São
João Baptista, metemos pelo emaranhado das ruelas estreitas, seguimos pela
gafaria, com o seu hospital e a Ermida de São Lázaro, chegamos à Ribeira dos
Touros, junto às muralhas, onde se haviam edificado as casas da Misericórdia,
os Paços do Concelho, a Vedoria, a Portagem e se erguia o pelourinho, e pela
Porta da Vila entramos a cerca, atingimos a Igreja de Santa Maria, onde por
algum tempo se encontrou o túmulo do infante Henrique, antes de ser trasladado
para Santa Maria da Vitória, caminhamos colados à frontaria do Convento de São
João de Deus, de irmãos hospitalares, ao pé da Ermidinha de Nossa Senhora da
Graça e da de São Pedro, onde os mareantes têm a sua irmandade do Corpo Santo,
e chegamos finalmente ao Convento de São Francisco, dos nossos irmãos capuchos,
fundado em 1518 pelo bispo Fernando Coutinho. Aí, apresentadas as nossas
obediências por irmão Diogo, fomos acolhidos com grande alegria e mostras de
cristão acatamento e repousamos essa noite. Na manhã seguinte, depois de
rezarmos as matinas, saímos a visitar a vila mais de espaço. Chegados ao
Palácio dos Governantes, saímos pela Porta do Mar e fomos dar à Ribeira das
Naus. Formosa coisa de ver a baía toda engalanada de embarcações, algumas das
quais de Milão, de Génova, de Veneza, e a grande azáfama que, mais adiante,
fervia com o afadigado trabalho dos pescadores que chegavam do mar, os barcos
carregados de pescaria. Ao correr da ribeira, a seguir à lota, estendia-se o
mercado com as suas tendas das mais variadas mercadorias, os pregões dos
vendedores, na sua maioria judeus. Meti conversa com alguns que nos disseram do
seu receio das perseguições, de que a todo o passo eram vítimas. Mal pudessem
sairiam do reino em busca de terras mais seguras para as suas vidas e haveres,
judeus como estes e também queixosos e receosos, sobretudo depois da notícia
que tiveram da matança dos seus irmãos em Lisboa, em tempo de el-rei Manuel I,
e de outros sinais de ódio e perseguição aos cristãos-novos, encontramos nós
muitos noutras terras que visitamos. Além das igrejas, ermidas e casas que
havíamos avistado de raspão na tarde anterior quando chegáramos à vila e que
agora percorríamos com demora, admiramos ainda a vetusta Ermida de Santo Amaro,
a de Santa Bárbara e a da Senhora da Conceição, e o edifício do Convento dos
Carmelitas. Os mareantes genoveses e milaneses haviam mandado construir três
ermidas da sua devoção: a de São Brás, a de São Roque e a de Porto Salvo, mostrando
bem com isso quanto ficavam gratos à divina Providência sempre que chegavam
àquele porto seguro.
No
dia seguinte, muito cedo, pela fresca, metemo-nos a caminho em direcção a Silves,
que eram bem seis léguas andadas de Lagos. A lonjura da jornada não amedronta
franciscanos e a mim muito menos, que qualquer trecho de paisagem, recorte de
árvore, canto de ave, colorido de flor ou rescendência de arbusto é quanto
baste para cair em êxtase quase místico. Por vezes era a branda encosta escorrendo
até ao vale a neve das amendoeiras. Outras vezes caminhávamos por um chão de
tojo, de sargaço e rosmaninho, de serpão, arruda, morrião e tomilho, entre
espinheiros agrestes e estevas ostentando nas flores a sépia das cinco chagas.
Seguíamos pela sombra das alfarrobeiras e das figueiras, cortávamos caminho por
sob um laranjal onde cantavam melros». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT