jdact
Expansão
Portuguesa. Oriente
«(…)
Por outro lado, não seria decerto fácil encontrar um equivalente da Filosofia
em todos os povos que a primeira globalização trouxe ao contacto com o
cristianismo. De modo que as categorias de pré-compreensão a que,
espontaneamente, o missionário fará apelo para enquadrar o anúncio cristão, na
falta (e mesmo não só na falta) de um contexto filosófico, serão precisamente
as da religião, que acaba assim por funcionar como o culturema universal mais
conatural à maturidade do cristianismo. Se lhe viesse a faltar esse caminho
mais curto para o Evangelho, o missionário ficaria mesmo eventualmente desconcertado.
Assim se sentia frei João Santos na sua missão à Etiópia Oriental (Évora, 1609): não adoram a Deus nem
têm ídolos a que adorem, nem imagens, nem templos, nem usam sacrifícios. E
assim, dificultosamente se convertem nem aceitam a lei de Cristo que muitas
vezes lhes pregamos. Grande parte do dinamismo missionário que perpassa esta
documentação radica precisamente na possibilidade de enxertar os sacramentos
cristãos em tantos significantes religiosos arquetípicos (templos, ritos,
sacerdócio, sacrifício) com base numa analogia que lhes permitia ter parte,
desde sempre, no significado salvífico cristão.
Ora
esta consideração parece paradoxal, quando confrontada com uma sombra que
atravessa toda a nossa documentação relativa à China. O Documento nº 497, por exemplo,
é uma carta do Último Jesuíta
Português na Corte Chinesa, missionário em Pequim havia vinte e nove
anos, a recorrer de uma pena de suspensão a divinis a que se expusera juntamente com outros
três ex-jesuítas, por conivência com uma cerimónia chinesa (Ko teu) que seria por sua intrínseca
natureza, supersticiosa… Referimo-nos à memória da condenação dos ritos
chineses. A questão nunca deixou de preocupar todas as sucessivas levas de
missionários e neófitos ou clérigos indígenas. Em 1806, ano seguinte ao do
falecimento do jesuíta, o padre Georges d’Alary, destinatário da carta
constante do Documento nº 774, compunha durante a sua estada em Macau umas
apreciadas instruções para lidar com as susperstições chinesas. Com toda a
probabilidade, são essas instruções que constituirão o grosso do manual da
matéria, intitulado Documentos da recta razão (…) coligidos para uso dos alunos
chineses e vietnamitas, bem como dos catequistas em geral, editados por
monsenhor Jean-Louis Taberd, bispo de Isaurópolis. O que estava em causa era, além
da adopção de termos religiosos (a começar pelo próprio nome de Deus) extraídos
dos clássicos chineses, o dever de renunciar à idolatria. À sensibilidade nossa
contemporânea, em que o político e o religioso se distinguem à saciedade, o
argumento dos jesuítas, isto é, da relevância cívica, e não propriamente
religiosa, de ritos gregários ligados ao culto dos antepassados e do imperador,
pode colher bastante bem. Mas o mesmo não aconteceria com os fiéis chineses, a
quem eles quereriam poupar desnecessárias rupturas culturais. Por outro lado,
do ponto de vista político, seria inevitável, mais cedo ou mais tarde, a
ruptura entre eles e um Império idólatra, um poder absoluto caucionado por uma
idolatria ou, quanto mais não fosse, por um equívoco que consistia em expressar
culturalmente a pertença ao mundo. Os gestos da religião, numa mente cristã,
adquirem um alcance radical e são reservados para exprimir a pertença do homem
ao seu horizonte último, o Céu, e não ao mundo. Sede religiosos, sim, mas para
com Deus…, apelava um apologeta do século III aos seus concidadãos. E este
apelo é tanto mais significativo quanto o contexto em que nos aparece, a modo
de premissa irrenunciável, é o de uma tentativa de provar a lealdade cívica dos
cristãos, pois acrescenta: … se quereis que Ele seja propício ao Imperador». In
José Eduardo Franco (Coordenação Geral) Arquivo Secreto do Vaticano,Archivio
della Nunziatura in Lisbona, Centro de Estudos Damião de Góis, Projecto
financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2010, POCI 2010, Esfera
do Caos Editores, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-680-032-1.
Cortesia
de EsferadoCaos/JDACT