jdact
Porto
de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748
«(…)
O bairro sevilhano de Triana ficava do outro lado do rio Guadalquivir, fora das
muralhas da cidade. Comunicava-se com a cidade através de uma velha ponte muçulmana
construída sobre dez barcaças ancoradas no leito do rio e unidas a duas grossas
correntes de ferro e vários cabos estendidos de margem a margem. Aquele
arrabalde, que havia sido baptizado como guarda de Sevilha pela função
defensiva que sempre havia tido, alcançou a sua época de esplendor quando
Sevilha monopolizava o comércio com as Índias; os problemas de navegação pelo
rio aconselharam, em inícios do século, trasladar a Casa de Contratação a Cádiz
e implicaram uma considerável diminuição da sua população e o abandono de
numerosos edifícios. Os seus dez mil habitantes concentravam-se numa limitada
superfície de forma alongada na margem direita do rio, que se atravessava no
seu outro limite pela Cava, o antigo fosso que em épocas de guerra constituía a
primeira defesa da cidade e que se inundava com as águas do Guadalquivir para
converter o arrabalde numa ilha. Para além da Cava viam-se alguns esporádicos
conventos, ermidas, casas e a extensa e fértil veiga trianeira.
Um desses conventos, na Cava
Nueva, era o de Nossa Senhora de la Salud, de monjas mínimas, uma humilde
congregação de religiosas dedicada à contemplação e à oração através do silêncio
e da vida quaresmal. Atrás das Mínimas, para a rua de San Jacinto, no pequeno
beco sem saída de San Miguel, apinhavam-se treze cortiços em que por sua vez se
amontoavam cerca de vinte e cinco famílias. Vinte e uma delas eram ciganas,
compostas por avós, filhos, tias, primos, sobrinhas, netos e um que era
bisneto; as vinte e uma se dedicavam à forja. Existiam outras ferrarias no
arrabalde de Triana, a maioria em mãos ciganas, as mesmas mãos que já na Índia ou
nas montanhas da Arménia, séculos antes de emigrar para a Europa, haviam
convertido o seu ofício em arte. No entanto, San Miguel era o centro nevrálgico
da ferraria e da caldeiraria trianeiras. No beco se abriam os antigos cortiços
construídos durante a época de esplendor do arrabalde no século XVI: alguns não
eram mais que simples ruelas sem saída de míseras casinhas alinhadas e
defrontadas de um ou dois andares; outros eram edifícios, amiúde intrincados,
de dois e três andares dispostos ao redor de um pátio central, cujos andares superiores
se abriam para ele através de corredores altos e grades de ferro forjado ou de madeira.
Todos, quase sem excepção, ofereciam humildes habitações de um ou no máximo
dois quartos, num dos quais, quando não estava no próprio pátio ou ruela como serviço
comum a todos os vizinhos do cortiço, havia um pequeno nicho para cozinhar com
carvão. As pias para lavar e as latrinas, se as havia, estavam colocadas no pátio,
à disposição de todos eles.
À diferença dos outros cortiços
sevilhanos ocupados durante o dia só pelas mulheres e pelas crianças que
brincavam nos pátios, os dos ferreiros trianeiros estavam durante toda a
jornada de trabalho, pois tinham instaladas suas fráguas no térreo. O constante
repicar do martelo sobre a bigorna escapava de cada uma das ferrarias e se unia
na rua numa estranha algaravia metálica; a fumaça do carvão das fráguas, que
amiúde saía pelo pátio dos cortiços ou pelas mesmas portas daquelas modestas
oficinas sem chaminé, era visível de qualquer ponto de Triana. E ao longo do beco,
envoltos na algaravia e na fumaça, homens, mulheres e crianças iam e vinham, brincavam,
riam, conversavam, gritavam ou discutiam. Contudo e apesar do tumulto, muitos deles emudeciam e se detinham com os sentimentos à flor da
pele às portas dessas fráguas. Às vezes se distinguiam um pai que retinha o
filho pelos ombros, ou um velho de olhos entrefechados, ou várias mulheres que
reprimiam um passo de dança ao ouvir os sons do martinete: um canto triste
acompanhado apenas pelo monótono bater do martelo a cujo ritmo se compassava;
um canto próprio que lhes havia seguido em todos os tempos e lugares. Então,
por obra dos quejíos dos ferreiros, o martelar se convertia numa
maravilhosa sinfonia capaz de arrepiar os pelos.
Naquele 2 de Fevereiro
de 1748, festa da Purificação de Nossa Senhora, os ciganos não trabalhavam nas
suas ferrarias. Poucos deles iriam à igreja de São Jacinto e da Virgem da Candelária
para benzer as velas com que iluminavam o seu lar, mas, apesar disso, tampouco queriam
problemas com os piedosos vizinhos de Triana e menos ainda com sacerdotes,
frades e inquisidores; tratava-se de um dia de folga obrigatório.
Guarda a moça dos
desejos dos payos, advertiu uma voz rouca. As palavras, em caló, a língua
cigana, ressoaram no pátio que dava para o beco. Mãe e filha detiveram os seus
passos. Nenhuma delas mostrou surpresa, embora não soubessem de onde vinha a
voz. Percorreram o pátio com o olhar até que Milagros distinguiu na penumbra de
uma esquina o reflexo prateado da abotoadura da jaquetinha curta azul-celeste
do seu avô. Achava-se de pé, erguido e parado, com o cenho franzido e o olhar
perdido, como era habitual nele; havia falado sem deixar de morder um pequeno
charuto apagado. A moça, de catorze esplendorosos anos, sorriu-lhe e girou com
graça; sua longa saia azul e a sua anágua, seus lenços verdes revolutearam no
ar entre o tilintar de vários colares que lhe pendiam do pescoço». In Ildefonso Falcones,
A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand
Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.
Cortesia BertrandE/JDACT