sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Poesia. Matilde Campilho. «Você falava que os dólares vinham sempre com uma forma diferente eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Jóquei
FUR, com cara de Whitman

«foi assim que você pensou que eu viria ao mundo
foi assim que você me viu na floresta
foi assim que você me viu pendurado no poste eléctrico
sempre pendurado num ramo qualquer
sempre usando o Verão.
Você se lembra daquele Verão no Brooklyn
em que ficámos perseguindo os bombeiros
durante todo o dia apenas para ver
uma vez e depois outra vez
o leque aquático que se abria sobre o fogo?
Você citava poetas húngaros mas nesse tempo
eu só queria saber de inventar uma língua
que não existisse.
Você se lembra do concierge que nos recebia
na pensão do Brooklyn como se nunca nos houvesse visto antes?
E não havia semana que passasse
em que nós não dormíssemos
pelo menos uma madrugada
na pensão do Brooklyn.
Me lembro dos dólares amassados
que eu semanalmente tirava do bolso
para pagar a Doug
eu sabia o nome de Doug
o Doug nos tratava disfarçadamente
por menina e menino.
Você falava que os dólares vinham
sempre com uma forma diferente
eu adoro como você consegue tirar um coelho do bolso
eu adoro como você consegue tirar uma lâmpada do bolso
eu adoro como você consegue tirar a Beretta 92fs do bolso
foi assim que você pensou que eu ficaria
no mundo
com corpo de besta vestida
usando um lápis pousado na orelha

foi assim que você me viu
pedindo três ovos para Miss Elsie
a senhora da mercearia na Court Street
ela me deu oito ovos
porque ela sempre dava alguma coisa
ela me achava uma graça e ela não acreditava
em números ímpares. Eu também não.
Me lembro de você na mercearia
do Brooklyn você costumava ficar lá atrás
brincando na secção das ferramentas.
Se eu tivesse mais do que um coelho,
uma lâmpada ou uma pistola
eu teria te comprado um Black & Decker
eu acho que você seria a pessoa mais feliz da ilha
com um Black & Decker enfiado no cinto.

Foi assim que você pensou que eu ficaria no mundo,
usando flores em meu cabelo negro,
sempre escondidas no emaranhado dos cachos
sempre escondidas no emaranhado do caos
de minha cabeça negra.

Só você sabia quantas flores eu usava
porque agora eu já sei
que você dedicava as noites
à contagem. Deus não dorme
e você também não».

In Matilde Campilho, Jóquei, Coordenador da colecção Pedro Mexia, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2014, ISBN 978-989-671-213-6.

Cortesia de ETintadaChina/JDACT