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de wikipedia e jdact
«Consideraremos
à parte da prosa de ficção um conjunto de obras que, embora contenham elementos
ficcionistas, tais como a alegoria, o diálogo e a descrição de visões, se
caracteriza todavia pelo predomínio dos motivos religiosos. Não pode falar-se,
na literatura portuguesa, de uma literatura propriamente mística, entendendo-se
como tal aquela que exprime, por meios estilísticos tendentes à sugestão
emocional, uma experiência imaginada ou experimentada de contacto directo com a
divindade. Nada na literatura portuguesa se pode comparar às Moradas de St., Teresa de Ávila
ou às obras de S. João da Cruz. Não parecem numerosas as obras que é usual
classificar como ascéticas, isto é, as que se ocupam dos preceitos que levam à
perfeição espiritual e preparam para o gozo da união com Deus (género que tem a
sua melhor expressão na Imitação de
Cristo). Deve todavia ressalvar-se que os textos de devoção não têm
sido sistematicamente explorados pelos historiadores da literatura. O grande
êxito que tiveram as obras de Frei Luís de Granada, autor de língua castelhana,
mas que viveu e editou em Portugal, é significativo da existência de um público
numeroso para este género de obras. Entre as poucas obras de inspiração
religiosa que seguidamente vamos examinar, inclui-se uma de cunho hebraico e
publicada em Itália. Embora adoptando a ficção pastoril, a sua inspiração é fundamentalmente
bíblica, e o seu tema nada tem que ver com o bucolismo, excepto a descrição idealizada
de um lugar ameno campestre.
Samuel
Usque
A Consolação às Tribulações de Israel (Ferrara, 1553),
do judeu português emigrado em Itália Samuel Usque, é constituída por três
diálogos entre pastores (Icabo, Numeu e Zicareu, anagramas de nomes judaicos) e
tem como propósito rememorar as perseguições sofridas pelo povo bíblico e
recordar-lhe as divinas promessas de resgate. Parece à primeira vista estarmos
simplesmente em presença de um livro de forma bucólica e de fundo religioso: tudo
são reflexões e queixumes acerca das matanças, das escravizações, vexames, padecimentos
sofridos pelos israelitas, em constante paráfrase de textos bíblicos e
históricos, ou sobre recordações familiares, mitigando-se o sofrimento com a
consolação das profecias e dos mistérios cabalísticos (a transmigração das
almas, os poderes ocultos). No entanto, o pastoralismo de Usque vai talvez mais
fundo do que o dos outros bucólicos portugueses, dado que a Bíblia, em que as
suas alegorias se apoiam constantemente, elabora a história e as crenças de um
novo nómada, ao passo que o bucolismo de Teócrito e Virgílio é muito mais
evoluído em relação às raízes do género. A imaginação literária, o estilo de
Usque constituem talvez por isso um caso único na nossa literatura
quinhentista, se descartarmos um certo parentesco com a obra em prosa de Bernardim.
Depara-se-nos em Samuel Usque o
estilo bíblico, em que o liame lógico é indirectamente dado por alegorias e
metáforas simples (ao nível suposto de uma cultura de pastores), com repetições
insistentes, com descrições pitorescas de circunstâncias que, logicamente, nada
fazem ao caso, mas inculcam uma representação imaginosa das ideias. Este processo
é sobretudo sensível no 1.° diálogo, Diálogo
pastoril sobre as cousas da Sagrada Escritura, o mais abundante em
descritivo campestre, traçando um quadro paradisíaco anterior às atribulações
israelitas. Icabo (anagrama de Jacob), que no simbolismo bíblico se confunde
corporeamente com o próprio povo judaico (também representado, aliás, pelas suas
ovelhas), não entra na matéria histórica dos seus lamentos sem primeiro nos dar
todo o lento desenrolar de um dia de pascigo, parece que hora a hora, rês a
rês, numa contemplação logicamente preguiçosa que mal suporta substantivo sem adjectivação
pitoresca, verbo sem adverbiação esmiuçadora, em longos períodos enumerativos que,
ainda assim, não dispensam um espraiamento parentético de longe a longe. Sannazzaro
não deixou de concorrer para este pastoralismo, pois certas paráfrases suas já
foram reconhecidas pelos eruditos. Mas, mais do que a écloga, domina a
inspiração do autor o versículo imaginoso e ritmado dos cânticos das
Escrituras, o que ainda mais se evidencia se desse trecho descritivo passarmos
às lamentações. Aí parece até que a exigência de melopeia, o tom agridoce dos lamentos
e interrogações, ritmo de balanceamento ou intensificação gradativa preexistem
à própria significação das frases e a comandam:
... Quando cansarão meus males e
fadigas, minhas enjúrias e ofensas, minhas saudades e misérias, as feridas n’alma
e minhas magoas, as bem-aventuranças longas e tão cansadas? E quando terá paz
tanta guerra contra o fraco sujeito, temor, suspeita, receios de minhas
entranhas? Té quando gemerei, suspirarei, matarei a sede coas lágrimas de meus
olhos?
In
António José Saraiva e Óscar Lopes, Quatro escritores de prosa doutrinal
religiosa, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI, nº 25,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, ISSN 1645-5169.
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