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«(…) Percorrera vários corredores e a mortandade era geral.
Apontou para os três corpos: estes morreram aqui. Ainda os tentei ajudar,
mas... Ficaram todos em silêncio, como sinal de respeito, e depois o profetista
perguntou ao padre para onde deviam ir, mas antes que este dissesse alguma
coisa a mulher mais velha falou. Debíamos fugir. O padre apontou para irmã
Margarida, exaltado: ela merece a liberdade, mas tu não, pecadora! A mulher
mais velha ignorou-o e cruzou a porta, e depois voltou atrás e disse que por ali podiam
descer para a rua. O profetista seguiu-a, mas irmã Margarida ficou junto do
padre e dos três mortos. Pediu ao sacerdote: padre, preciso de me confessar...
Pequei... Com ternura, o padre colocou-lhe a mão direita na cabeça e disse: criança,
nada que tenhas feito é grave neste dia terrível... Irmã Margarida
precipitou-se, numa ânsia de lhe contar que se tentara enforcar, com medo de
morrer queimada; que perdera a vergonha com o carcereiro para conseguir uma
corda; e que agora lhe tinha roubado um fio, que por acaso era dela. Mas, sem a
ouvir, o padre interrompeu-a: criança, sofreste muito e injustamente. As
acusações contra ti são uma farsa... Porque não aproveitas e foges? Nesse
momento, irmã Margarida compreendeu pela primeira vez que podia aspirar a ser
livre e perguntou: fugir? Como? O padre respirou fundo: não sabes o que
aconteceu? Ela não sabia e ele explicou-lhe: Lisboa foi atingida por um
terramoto. A cidade está destruída. Se olhares pelas janelas, vais ver...
Devias aproveitar. Foge! Foge!, gritou o padre. Mas irmã Margarida estava
paralisada pelo que ouvira. Um terramoto...
Olhou em volta, perplexa. O padre abanou-a pelos ombros e gritou: olha para
mim, rapariga! Irmã Margarida assim fez e ele acrescentou: eu não chamo os
soldados. És a única pessoa que não merece morrer amanhã. A irmã Alice é outra
história. Afasta-te dela, eles vão andar à procura dela. E do outro também...
Mas, tu... Ninguém se vai preocupar contigo, não fizeste nada de mal. Foge,
foge, e depressa!
É de certa forma
compreensível que irmã Margarida precisasse de um incentivo para fugir. Ela não
era como eu, um pirata, um homem que odiava estar preso e que fugia à primeira
oportunidade, como aconteceu nessa manhã, e como já sucedera no passado, quando
estive preso pelos árabes. Ela era uma jovem que tinha sido presa, torturada,
julgada e condenada sem perceber bem porquê. Tinha desejado enforcar-se, e não
o conseguira. Naquela situação não sabia o que fazer. Fugir para onde? Eu sabia
para onde fugir, mas ela não, não tinha ninguém a quem pudesse recorrer, nem um
destino geográfico que pudesse dar sentido à sua fuga. Nem sequer família, pois
os pais haviam morrido. Para ela, a liberdade era ainda um território duvidoso
e desconhecido. Contudo, pressentiu que aquela oportunidade podia poupá-la à
morte na fogueira, e que a absolvição moral do sacerdote, seu confessor, era uma espécie de garantia
da existência de um sentido de justiça superior, que lhe dava razão. Portanto,
apoiou-se nessas palavras, ganhou forças e fugiu. Começou naquele momento a
reinventar-se como pessoa, e ainda bem, pois foi esse primeiro passo que
possibilitou o nosso encontro, dias depois. Se hoje a amo, devo-o também àquele
confessor da prisão, que extinguiu a relutância do coração de irmã Margarida e
lhe apontou um novo caminho.
Despediu-se do padre, e descobriu o
local de fuga do profetista e da freira mais velha. Entre duas celas, havia uma
escadaria de pedra que as derrocadas tinham colocado à vista. Formara-se uma
espécie de cascata de destroços, por onde se podia descer até à rua. A meio, a
freira mais velha e o profetista desciam, devagar, para evitar cair. Seguiu-os.
Quase caiu por duas vezes, antes de chegar finalmente ao chão. Os outros
esperaram por ela, mas o profetista estava muito agitado, com medo de que os
soldados os vissem. Na rua, tudo era confusão. Nuvens enormes de poeira
pairavam, ouviam-se gritos lancinantes e desmoronamentos constantes de
edifícios nas redondezas. Deus me balha..., repetiu irmã Alice. A cerca de cem
metros, apresentava-se uma das portas do Convento de São Domingos. E, um pouco
antes, nascia uma travessa,
que ia dar ao Rossio. Ao longe, irmã Margarida viu aparecerem vultos vestidos
de branco. Eram os soldados da Inquisição e avisou os seus companheiros de
fuga. Vamo fugi!, gritou o profetista. Desataram a correr, e nas suas costas
ouviram alguns tiros. Contornaram um dos cantos do palácio, enfiaram pela
estreita ruela, e o Rossio apareceu de repente à frente deles. Foi tal a
surpresa com o que lá se passava que pararam, embasbacados». In
Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos
vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro,
2010, ISBN 978-972-461-986-6.
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