sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

No 31. Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Ao ver o príncipe sacudir-se mais uma vez, Gonçalo cuspiu para o chão.Continuava enjoado, ainda lhe corria o vinho nas veias e as tripas tinham-se-lhe revoltado, expulsando o toucinho que comera na véspera, na estalagem»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Serra Morena, Córdova, Abril de 1126

«(…) Taxfin olhou pela janela, para a serra Morena, que rodeava o velho castelo, e depois disse: Hixam de Hisn Abi Cherif está enterrado naquela pequena cuba, ali no monte. Com a cara virada para Meca, tal como o pai. A Zulmira ia lá muito, colocar-lhes margaridas nos túmulos. Fez uma pausa e suspirou: Podia ter sido tão grande, mas acabou discreto, e hoje já ninguém em Córdova se lembra dele. Taxfin viera à cerimónia fúnebre, como era obrigação do governador da cidade, e manifestara o seu pesar à viúva Zulmira, mas retirara-se no final, pois não era dia de intimidades. Paciente, mas determinado, deixara passar um ano, durante o qual enviara a Zulmira apenas duas mensagens de alento, fazendo-a perceber com subtileza que não a esquecera, mas que, apesar de interessado, não tentara aproximar-se, temendo que ela ainda não estivesse preparada para amar outra vez. Um dia, encontrei-a em Córdova, a passear perto da grande mesquita. O meu coração quase explodiu de alegria! Trazia as filhas pela mão. A Fátima, com cinco anos, e a Zaida, com dois. Eu vira-as a primeira vez no enterro do pai, e amava-as já. Eram tão bonitas, tão alegres, duas crianças felizes a saltitarem num jardim! Taxfin suspirou, saudoso.

Ficámos a conversar uma hora, e quando nos despedimos perguntei-lhe se a podia ir visitar, e Zulmira autorizou-me. Assim começara aquele amor. Casados, tinham vivido anos de enorme felicidade até à tarde nefasta em Coimbra, quando Zulmira e as filhas foram aprisionadas pelas tropas de dona Teresa. Descansai, prometo trazê-las de volta, afirmou Abu Zhakaria. Matarei quantos cristãos for preciso. Foi essa expedição que partiu na manhã seguinte, ao nascer do Sol, do castelo de Hisn Abi Cherif. Os arregimentados eram cerca de quarenta, cujo putativo alarife, Abu Zhakaria, considerava serem suficientes para um fossado rápido. Quando se despediu dele, Taxfin apenas lhe disse: Vai, querido Abu, e traz de volta as minhas meninas e a Zulmira. Depois, lançou uma profecia que surpreendeu o outro: Um dia, casareis com a Fátima aqui, no castelo dos Benu Umeyya! Abu Zhakaria contou-me que ficou ligeiramente embaraçado, e depois montou o seu cavalo e conduziu-o para fora do castelo, liderando a comitiva de mercenários. Ao passar a primeira curva na estrada, olhou para o topo de uma elevação, e viu o mausoléu onde repousavam os restos mortais de Hixam e de seu pai, os dois últimos Benu Umeyya. À porta da pequena arrábida estava uma das velhas criadas mouras, com a mão direita pousada junto ao coração, e Abu Zhakaria reparou que ela tinha lágrimas a escorrerem pelo rosto, e acreditou que chorava porque sabia que alguém ia morrer.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

O Sol já nascera naquele Sábado de Aleluia, mas o frio que a manhã herdara da madrugada fazia-se sentir ainda, e nós estávamos enrolados nos nossos mantos, para evitar constipações. Na véspera, tínhamos combinado ir caçar logo à prima hora, mas o Braganção falhara o encontro, à porta das cozinhas do castelo. Lá dentro, a padeira cozia o pão num forno a lenha e, enquanto aquele inebriante cheiro nos subia pelas narinas, várias mulheres passaram, com cestas à cabeça, cheias de legumes e frutas, aumentando o nosso apetite. Decidimos aguardar pelo Braganção, mas sobretudo pelo pão, para não abalarmos de estômago vazio.

A meu lado, Afonso Henriques estava sonolento. Na noite anterior, Raimunda mostrara-se dotada de mais energia do que era habitual, e ele dormira menos do que devia. Gostava da disponibilidade permanente da minha prima, mas confessou-me que pensara em Chamoa. A bela galega era feminina e irresistível, embora ele pressentisse nela uma inquietude perigosa, causada pelas lisonjas masculinas. Chamoa adorava ser cortejada, isso via-se a léguas, e o meu amigo, tal como minha esposa Maria, temia o ligeiro descontrolo das suas tentações. Gulosos machos, como Paio Soares ou o primo Mem Tougues, de bom grado lhe ferrariam o dente. Julgo que foi em Viseu que o meu melhor amigo descobriu o que era ter ciúmes. Sentia-se encantado, mas também sujeito à rivalidade, à disputa. Não desejava ser dominado, ficar à mercê dela, e rastejar aos seus pés seria uma fraqueza imperdoável para um príncipe. Talvez por isso, naquela manhã o meu melhor amigo estava sempre a dar uma espécie de estremeções espartanos. Ele dizia que era para espevitar...

Ao ver o príncipe sacudir-se mais uma vez, Gonçalo cuspiu para o chão.Continuava enjoado, ainda lhe corria o vinho nas veias e as tripas tinham-se-lhe revoltado, expulsando o toucinho que comera na véspera, na estalagem. Porcaria que nos serviram, resmungou. O príncipe perorou: Não culpeis o vinho, bebestes de mais. Gonçalo, irritado, protestou: Que sabeis vós, haveis estado lá? Afonso Henriques sorriu. Era sempre assim, o filho do Sousão. Afogava-se no vinho, como o Braganção, que nunca mais chegava. Nem sabem o que perderam..., murmurou Gonçalo». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «Abu Zhakaria conhecia a lenda fantástica daquele castelo, daquela ancestral e famosa família que se havia cruzado com Zulmira; conhecia a glória histórica dos antepassados de Fátima e Zaida»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Serra Morena, Córdova, Abril de 1126

«(…) Meteram-se a caminho numa carroça e chegaram a Hisn Abi Cherif dois dias depois, sendo recebidos por duas criadas velhas de Zulmira, cuja lealdade à família se mantinha intacta. Apesar da idade avançada, as serviçais haviam assegurado o asseio do castelo, cuidando com ternura do antigo jardim, onde nasciam o alecrim e a alfazema no meio das margaridas e das rosas, bem como das hortas e pomares, onde pontificavam as tangerinas e as laranjas, as alfaces e as cenouras, que um adoentado almocreve trocava por outros alimentos quando por ali passava. Contentes por reverem Taxfin, que recordavam com carinho, compuseram-lhe uma cama confortável, no velho quarto do casal, davam-lhe dois banhos diários e alimentaram-no com cozinhados suculentos, obrigando-o a beber elixires misteriosos, cujos ingredientes nunca revelavam. Nas semanas que se seguiram, Taxfin deliciou-se com as al-zaitunas e com o aruzz delas, doce devido ao al-sukkar que lhe juntavam; comia com gosto a sopa de isfinah e trincava com apetite o jabalii, cuja carne elas compravam ao almocreve. Em pouco tempo, ganhou forças e ânimo, e recomeçou a planear o resgate da sua família. Porém, até para as velhas mouras do castelo era evidente que uma longa viagem a Coimbra seria fatal para Taxfin, e foi tomada a decisão de ser Abu Zhakaria a chefiar a expedição ao Oeste, pois só ele, com a sua energia, a sua inteligência e a sua fidelidade, poderia ter êxito naquela aventura perigosa. O meu único temor, disse Abu Zhakaria, é deixar-vos sozinho.

Despreocupado, Taxfin virou-se para as duas criadas idosas e sorriu. Elas tomam conta de mim, descansai. Morreremos os três juntos, se nos vierem aqui atacar. Nasceu um brilho alarmado nos olhos de ambas as mouras, que só ele viu, e como de costume elas nada disseram. Além disso, afirmou Taxfin, o governador aqui não me teme. Não me queria era em Córdova, a fazer-lhe sombra! Mesmo assim preferia a vossa companhia, murmurou Abu Zhakaria. Ambos sabiam que era impossível e Taxfin decidiu mudar de assunto, falar em algo bonito, simples e profundo. Ainda vos lembrais da cara da Fátima?, perguntou. O outro pestanejou, atrapalhado, e Taxfin sorriu: um homem capaz de furar com o alfange os inimigos, e ficava aflito quando falava numa rapariga que, da última vez que a vira, tinha nove anos! Sim, confessou Abu Zhakaria, envergonhado. Todos os dias. Revelando o seu desgaste, Taxfin suspirou. Às vezes, tento recordar-me do sorriso da Zulmira, do seu rosto bonito, do calor do seu corpo, mas nem sempre o consigo.

Caiu o silêncio no quarto, enquanto as duas criadas se retiravam, levando o tabuleiro. A mais velha é do tempo da família antiga que aqui viveu, a outra chegou com Zulmira, comentou Taxfin. As duas envelhecidas mouras ainda haviam visto aquele pequeno castelo repleto de poetas, que declamavam versos de Ibn al-Barr, do rei Al-Mutamid ou de Ibn Sallam; escutado as dissertações de filósofos e juristas célebres; assistido aos disputados jogos de xadrez; ouvido a festiva música que ali se tocava. Eram do tempo em que a marca média da Hispânia estava acima de Toledo; do tempo em que Afonso VI perdia batalhas contra o pai de Ali Yusuf, em Zalaca; do tempo em que as primeiras taifas nutriam ainda uma poderosa esperança na ressurreição do califado de Córdova. Alguns walis de Sevilha, de Múrcia e de Badajoz ainda cá vieram desafiar o primeiro marido de Zulmira, contou Taxfin.

Abu Zhakaria conhecia a lenda fantástica daquele castelo, daquela ancestral e famosa família que se havia cruzado com Zulmira; conhecia a glória histórica dos antepassados de Fátima e Zaida. Elas não são minhas filhas, mas amo-as como se o fossem. O pai delas era da família Benu Umeyya, recordou Taxfin. Não havia mais poderosa família em toda a Andaluzia. Quando Taxfin as conhecera, Fátima tinha quatro anos e Zaida apenas um. Zulmira vivia naquele castelo com elas, já viúva. Ele cobiçara-a em Córdova, em dias de festejos. Era solteiro e governador da cidade, e o cargo permitira-lhe falar com ela algumas vezes. Mas Zulmira amava o marido e nunca lhe incentivara as cortesias. Taxfin admirava-a e tinha ciúmes do outro, gostava de um dia ser amado assim. – Quando recebi a notícia da morte de Hixam de Hisn Abi Cherif, só pensei no sofrimento de Zulmira. No desgosto dela, o seu amor derrotado por um estúpido acidente. Juro-te, querido Abu Zhakaria, nessa noite chorei por ela. Senti a profundidade da sua dor. Era imensa, mais escura do que uma noite sem estrelas». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Eles me perguntaram sobre minha vida anterior, mas eu não tinha muita coisa para contar, excepto que sempre tínhamos vivido com medo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

«(…) Pilhas de condimentos e remédios para cada doença, de dor de dente a calvície, eram comercializadas por enrugados vendedores ambulantes, chocando címbalos e batendo tambores enquanto tentavam atrair fregueses usando a língua comum ou sinais e mímica para anunciar seus artigos. O capitão Cosimo deixou o intendente e o carpinteiro-cozinheiro regatear os preços da comida e das substitutas para nossas lâmpadas e panelas roubadas e puxou-me em direcção a um canto mais tranquilo da feira. Ali se encontravam os vendedores de tapetes e tecidos, os tecelões, os alfaiates e, quase certamente, os aposentos de fundo onde um homem podia jogar dados e perder o dinheiro que carregava. Entramos num prédio e o capitão soltou a corrente do pulso e me prendeu a uma barra no chão. Deu-me um tapinha na cabeça. Eu o trato bem, não é mesmo, rapaz?, perguntou. Sim, capitão Cosimo, respondi. Então não vai fugir? Sacudi a cabeça. Se fugisse, suspirou o capitão, Panipat se dedicaria apenas a procurá-lo e o castigaria tão severamente que o faria preferir a morte. Mas, se continuar no meu barco, poderemos trabalhar juntos, pois acho que poderia lhe ensinar as habilidades apropriadas de um homem do mar; com o tempo, talvez haja alguma recompensa para si. Ele viu minha expressão mudar quando disse isso. Pois, na verdade, eu pretendia fugir assim que ele desse as costas. Mas agora essa era uma proposta diferente. Não me tornaria um escravo remador?, indaguei. Isso seria um desperdício de seus talentos. Você aprenderia sob minhas instruções? Talvez pudesse calcular a rota sozinho, embora eu sempre daria as coordenadas. O que me diz?

Eu desconfiava de que ele sabia que, se cometesse muitos erros mais, não conseguiria mais enganar os tripulantes em relação à sua vista deficiente. Agora esperava mascarar seus erros de navegação usando-me como bode expiatório para qualquer coisa que desse errado. Sim, eu gostaria de fazer isso, concordei. Bom rapaz. Poderemos ter algum problema com Panipat, que não se afeiçoou como eu. Mas cuidarei de você. E você fará o mesmo por mim. Deu-me outra tapinha na cabeça. Descanse um pouco aqui. Volto já. Ao retornar, o capitão Cosimo parecia bem satisfeito. Deve ter sido o efeito do álcool, pois, quando voltamos ao barco e ele apanhou a sua bolsa, ela estava muito mais leve do que antes. O capitão parecia imperturbado por ter perdido seus próprios lucros. Após distribuir as quotas aos remadores e ao resto da tripulação, restaram-lhe apenas algumas moedas que ele trancou na sua caixa de dinheiro. Partimos daquele porto de bom humor, com uma nova carga e provisões recém adquiridas. Poucos quilómetros ao largo, paramos o barco, pois mais ou menos uma vez por mês os escravos eram desacorrentados para se lavar e nadar no mar, onde não havia chance de fugirem. Nenhum deles jamais tentou nadar para longe. Panipat, observando-os com um pontudo arpão mortal atravessado no colo, era o suficiente para deter até mesmo o mais imprudente. Em todo caso, quando o cozinheiro começou a preparar uma refeição quente, o cheiro de comida chiando e a perspectiva de uma barriga cheia com uma ou duas canecas de vinho trouxeram-nos escalando de volta a bordo.

Essa era a ocasião em que os tripulantes, tanto os escravos quanto os homens livres, falavam sobre o mar. E, embora se apavorassem com tanto poder, eles sentiam afecto por aquele provedor do seu sustento. É melhor do que a mulher com quem me casei disse um. Que mulher se casaria com você?, zombou outro. O primeiro apenas riu. Eu já vi a sua, e sei porque se empregou por sete anos. Se tivesse que encontrar isso ao voltar para casa, eu me empregaria pelo dobro do tempo. Alguns dos remadores contavam histórias de suas vidas anteriores. Os quatro escravos árabes, que eram colocados juntos a boreste do barco, murmuravam baixinho entre eles, mas, quanto aos outros quatro escravos, dois eram ladrões confessos e um terceiro culpado de assassinato. Jean-Luc, um francês, tinha sido soldado e, embriagado, matara a esposa num acesso de raiva; Sebastien, um homem magro e muito alto, era padre. Fui preso pela Inquisição (maldita), contou-nos, por pregar heresia. Escapei. Era passar a vida numa galé ou queimar na estaca. Escolhi isto aqui. Alguns dias, quando por nosso louco capitão se perde, penso que talvez tivesse sido melhor tostar numa fogueira do que assar aqui lentamente ao sol.

Eles me perguntaram sobre minha vida anterior, mas eu não tinha muita coisa para contar, excepto que sempre tínhamos vivido com medo. Acho que meu pai acreditava que éramos perseguidos pelos familiares de minha mãe, que tentavam matá-lo por tê-la tirado deles sem permissão. Não sei porque proibiram o casamento». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Panipat colocou um grilhão nos meus tornozelos e prendeu a eles uma corrente leve. Entregou a ponta da corrente ao capitão, que a envolveu no punho»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

«(…) E ele vai fazer isso? Ele deve ser maluco em pensar que alguém jogaria dinheiro fora em tal aventura! Acha que isso não existe? Não é porque talvez não exista. O que torna a expedição impossível é que o Mar Oceano é muito vasto para ser atravessado. Pode haver tempestades mais violentas do que podemos imaginar, grandes remoinhos capazes de tragar um navio de forma que nunca mais será visto, vastas extensões de água estagnada com algas marinhas por milhares de quilómetros, onde o vento não sopra e remos não conseguem remar. Ali um navio ficaria eternamente paralisado por uma calmaria e sem água potável. Homens morreriam de sede, ou ficariam loucos e se matariam uns aos outros. Sim, mas se conseguir chegar ao outro lado... Minha voz foi falhando porque o capitão perdera interesse na conversa e estabelecia nossa rota para o próximo porto. Acho que foi neste momento que me ocorreu que era possível viajar não apenas por comércio, mas por aventura, e isso talvez fosse algo que eu pudesse fazer. Pois eu começara a me apaixonar pelo mar, e seus humores e caprichos conspiravam para me arrebatar. O enjoo que começara a sentir ficara no passado e passei a ansiar pelo sopro do vento no meu rosto e a visão da água tão aflitivamente azul sob o sol da manhã. Naquele Verão descobri o quanto a água do mar podia ser morna. Os únicos banhos que eu havia tomado tinham sido num rio gelado, e talvez não mais do que cinco ou seis vezes em minha vida. Agora mergulhava nu do lado do barco para a cintilante água azul-celeste e me divertia com os homens, enquanto eles espirravam água e nadavam, depois deitava na areia branca e deixava que as ondas rastejassem sobre meu corpo, preguiçosa e languidamente com o calor.

Adorava observar a proa da galé repartindo as ondas enquanto seguíamos nosso curso. Com o Outono, os dias chegavam ao fim com um céu exibindo as mais maravilhosas cores de pôr do sol, rosa, amarelo, violeta, lavanda, índigo, carmesim. E, quando o perfurante brilho das estrelas aparecia no obscuro azul da grande abóbada de céu sobre as nossas cabeças, eu dormia com a canção do bate-bate da marulhante água contra os costados da nave. Nossas cargas eram pequenas e na maioria mercadorias em estado bruto: minério e grãos, amêndoas e óleo, goma de mástique, pedra-ume, açafrão e sal. Navios que carregavam metais preciosos, peles ou joias eram maiores e viajavam com escolta. Entrávamos e saíamos de portos na costa do norte do mar Mediterrâneo, e partíamos para o Atlântico para alcançar o movimentado porto espanhol de Cádiz, para onde navios maiores traziam mercadorias das terras setentrionais, tais como lã da Inglaterra e peles de animais da Islândia. Evitávamos navegar perto da África do Norte por temer os piratas que agiam ao longo da Costa da Barbária, e por causa da guerra travada pela rainha Isabel e o rei Fernando contra o povo muçulmano. Eles agora queriam o Reino de Granada no sul da Espanha, que por centenas de anos fora governado pelos mouros. Lomas achava que eles acabariam por banir completamente os muçulmanos e os judeus, embora, no passado, os judeus os tivessem servido muito bem em altos cargos do governo.

À medida que o tempo esfriava e as horas com luz do dia encurtavam, o capitão me consultava mais e mais ao ler seus mapas. Além da habilidade de ser capaz de decifrar letras, eu tinha aptidão para aritmética e rapidamente aprendera a interpretar as cartas, usando o almanaque e outros auxílios. Por todo o Inverno e entrando pela Primavera do ano seguinte, aprendi os nomes das constelações e a calcular nossa posição com base na ascendência da Estrela Polar no horizonte. Quando Panipat grunhia seu desprazer por eu realizar tarefas mais fáceis, o capitão Cosimo ria das suas objecções. O mestre dos remadores me olhava desconfiado e ficou ainda mais aborrecido quando, certo dia, após atracar num porto ao sul de Cádiz, o capitão declarou que me levaria à terra com ele enquanto realizava os seus negócios.

Panipat colocou um grilhão nos meus tornozelos e prendeu a eles uma corrente leve. Entregou a ponta da corrente ao capitão, que a envolveu no punho. Embora a corrente fosse fina e bem discreta, senti-me humilhado, não estava sendo tratado melhor do que um animal selvagem. Mas sabia que não deveria protestar. Panipat ficou de olho em mim ao deixarmos o barco. Ele bateu o cabo do chicote violentamente na palma da mão, como se para me lembrar qual seria o meu destino se tentasse escapar. O capitão Cosimo girou a bengala e usou-a para me empurrar à sua frente. Acompanhados por dois tripulantes, descemos a prancha, seguimos pelo lado do cais e através do portão arqueado para a cidade. Visitamos o representante dos mercadores, e o capitão fez seus negócios e encheu a bolsa. Pagou os salários dos tripulantes e lhes deu dinheiro para a compra de provisões, então seguimos as vielas tortuosas que levavam ao mercado e à cacofonia de sons de animais domésticos amarrados e aos granidos de aves com deslumbrantes plumagens». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião, 

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

O Símbolo Perdido. Dan Brown. «O convite não só era uma grande honra, como também significava que um mestre o considerava digno de receber aquele conhecimento oculto. A mão que o mestre estende ao iniciado»

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«(…) Com licença!, bradou Anderson correndo na sua direção. O senhor viu um homem careca com uma tipóia no braço? O homem ergueu os olhos do livro com uma expressão confusa. Um careca com uma tipóia!, repetiu Anderson com mais firmeza. - O senhor o viu? O turista hesitou e, nervoso, olhou para a extremidade leste do corredor. Hã..., vi, sim, respondeu. Acho que ele acabou de passar correndo por mim... na direcção daquela escada ali. Ele apontou para o final do corredor. Anderson sacou o rádio e berrou no aparelho. Atenção, todos os postos! O suspeito está se dirigindo para a saída sueste. Todos para lá! Ele guardou o rádio e arrancou a arma do coldre, pondo-se a correr rumo à saída.

Trinta segundos depois, o louro musculoso de blazer azul saiu tranquilamente pela ala leste do Capitólio para o ar húmido da noite. Sorriu, saboreando o frescor do lado de fora. Transformação. Tinha sido tão fácil. Apenas um minuto antes, ele saíra rapidamente da Rotunda mancando e usando um casaco militar. Depois de se esconder num vão mal iluminado, havia tirado o casaco militar, revelando o blazer azul que usava por baixo. Antes de se desfazer do casaco, tirou uma peruca loura do bolso, colocando-a com cuidado sobre a cabeça. Então endireitou o corpo, tirou do blazer um guia de Washington e saiu calmamente do vão com um passo elegante. Transformação. É esse o meu dom. Enquanto as pernas mortais de Mal'akh carregavam-no em direção à limusine que o aguardava, ele arqueou as costas, esticando todo o seu 1,90m e jogando os ombros para trás. Respirou fundo, deixando o ar encher seus pulmões. Podia sentir as asas da fénix tatuada no seu peito se abrindo. Se ao menos eles conhecessem o meu poder, pensou, olhando para a cidade à sua frente. Hoje, à noite, a  minha transformação irá completar-se. Mal'akh tivera uma conduta impecável dentro do Capitólio, demonstrando obediência a todas as regras de etiqueta ancestrais. O antigo convite foi entregue. Se Langdon ainda não tivesse compreendido qual era o seu papel ali naquela noite, logo iria entender.

A Rotunda do Capitólio, assim como a Basílica de São Pedro, sempre tinha o dom de surpreender Robert Langdon. Ele sabia que aquele espaço era grande o suficiente para comportar com folga a Estátua da Liberdade, mas de alguma forma a Rotunda sempre lhe parecia maior e mais sagrada do que ele esperava, como se espíritos pairassem no ar. Naquela noite, porém, havia apenas caos. Agentes de segurança do Capitólio estavam isolando a Rotunda ao mesmo tempo que tentavam guiar os turistas perplexos para longe da mão. O menininho continuava chorando. Uma luz forte se acendeu, um turista tirando uma foto, e vários seguranças agarraram imediatamente o homem, tomando-lhe a câmera e escoltando-o até à saída. Na confusão, Langdon viu-se andando para a frente como num transe, abrindo caminho pelo aglomerado de gente para chegar cada vez mais perto da mão.

A mão direita cortada de Peter Solomon estava na vertical, com a superfície plana do pulso seccionado fincada no prego de uma pequena base de madeira. Três dos dedos estavam fechados, enquanto o polegar e o indicador se encontravam esticados, apontando para cima em direcção à cúpula altíssima. Todos para trás!, exclamou um dos agentes. Langdon estava perto o suficiente agora para ver o sangue seco que havia escorrido do pulso e coagulado sobre a base de madeira. Ferimentos post-mortem não sangram..., o que significa que Peter está vivo. Langdon não sabia se deveria ficar aliviado ou nauseado. A mão de Peter foi cortada com ele ainda vivo? Bílis subiu até à sua garganta. Ele pensou em todas as vezes que o monstro que havia feito aquilo parecia ter tatuado pequenos símbolos nas pontas dos dedos de Peter.

No polegar, uma coroa. No indicador, uma estrela. Não pode ser. Os dois símbolos foram registados instantaneamente pela mente de Langdon, ampliando aquela cena horrenda para transformá-la em algo quase sobrenatural. Aqueles símbolos já haviam aparecido juntos muitas vezes na história, e sempre no mesmo lugar, nas pontas dos dedos da mão de alguém. Aquele era um dos ícones mais cobiçados e secretos do mundo antigo. A Mão dos Mistérios. O ícone raramente era visto hoje em dia, mas, ao longo da história, havia simbolizado um poderoso chamado à acção. Langdon se esforçava para compreender o grotesco artefacto à sua frente. Alguém usou a mão de Peter para fabricar a Mão dos Mistérios? Era inimaginável. Tradicionalmente, o ícone era esculpido em pedra ou madeira, ou então desenhado. Langdon nunca tinha ouvido falar de uma versão de carne e osso. A ideia era repulsiva.

Senhor?, disse um segurança atrás de Langdon. Afaste-se, por gentileza. Langdon mal ouviu o que ele disse. Há outras tatuagens. Embora não pudesse ver as pontas dos três dedos fechados, Langdon sabia que também ostentariam marcas singulares. Era essa a tradição. Cinco símbolos ao todo. Ao longo dos milénios, os símbolos na ponta dos dedos da Mão dos Mistérios nunca haviam mudado..., e tampouco o objectivo simbólico da mão.

A mão representa..., um convite.

Langdon teve um súbito calafrio ao recordar as palavras do homem que o levara até ali. Professor, o senhor vai receber o convite da sua vida. Nos tempos antigos, a Mão dos Mistérios representava, na verdade, o convite mais cobiçado da Terra. Receber aquele ícone era uma convocação sagrada para se unir a um grupo de elite, aqueles que eram considerados os guardiões do conhecimento secreto de todos os tempos. O convite não só era uma grande honra, como também significava que um mestre o considerava digno de receber aquele conhecimento oculto. A mão que o mestre estende ao iniciado». In Dan Brown, O Símbolo Perdido, 2009, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-252-014-0.

Cortesia de BertrandE/JDACT

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segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Dan Brown. O Símbolo Perdido. «Aquela noite tinha sido estranhamente tranquila, e Anderson estava satisfeito. Tinha esperanças de conseguir ver um pouco do jogo dos Redskins na TV…»

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«(…) Um laboratório secreto dentro de um museu secreto, pensou ela, inserindo o cartão de acesso na porta do Galpão 5. O teclado se acendeu e Katherine digitou a sua senha. A porta de aço se abriu com um silvo. O conhecido gemido oco foi acompanhado pela mesma rajada de ar frio. Como sempre, Katherine sentiu a sua pulsação se acelerar. O trajecto mais estranho do mundo para chegar ao trabalho. Tomando coragem para a travessia, Katherine Solomon olhou de relance para o relógio de pulso ao pisar no vazio. Naquela noite, porém, não conseguiu livrar-se das preocupações ao entrar no galpão. Onde está Peter?

Fazia mais de uma década que Trent Anderson, chefe de polícia do Capitólio, supervisionava a segurança daquele complexo. Era um homem musculoso e de ombros largos, com traços finos e cabelo ruivo cortado à escovinha, o que lhe dava um ar de autoridade militar. Deixava sua arma bem visível como aviso a qualquer um que caísse na besteira de questionar seu poder. Anderson passava a maior parte do tempo coordenando o seu pequeno exército de agentes a partir de um centro de segurança de alta tecnologia situado no subsolo do Capitólio. Dali, comandava uma equipe de técnicos encarregados de examinar monitores e dados de computador, além disso controlava uma mesa telefónica que o mantinha em contacto com os funcionários da segurança.

Aquela noite tinha sido estranhamente tranquila, e Anderson estava satisfeito. Tinha esperanças de conseguir ver um pouco do jogo dos Redskins na TV de tela plana da sua sala. A partida havia acabado de começar quando o seu interfone tocou. Chefe?

Anderson resmungou e manteve os olhos grudados na televisão enquanto atendia o interfone. O que foi? Houve algum problema na Rotunda. Os agentes estão chegando lá agora, mas acho que o senhor vai querer dar uma olhada. Certo. Anderson entrou no centro nervoso do sistema de segurança: uma instalação compacta, neomoderna, cheia de monitores de computador. O que tem aí? O técnico estava ajustando uma imagem de vídeo digital no seu monitor. Câmera da galeria leste da Rotunda. Vinte segundos atrás. Ele accionou o vídeo. Anderson ficou olhando por cima do ombro do técnico. A Rotunda estava quase deserta naquele dia, ocupada apenas por uns poucos turistas. O olho treinado de Anderson foi atraído imediatamente para a única pessoa sozinha que se movia mais depressa do que as outras. Cabeça raspada. Casaco militar verde. Braço ferido numa tipóia. Um pouco manco. Postura curva. Falando no celular. Os passos do homem careca ecoaram de forma distinta no áudio até que, de repente, ao chegar bem no meio da Rotunda, ele parou, encerrou o telefonema e ajoelhou como quem vai amarrar o atacador do sapato. No entanto, em vez de fazer isso, o careca tirou alguma coisa da tipóia e a pôs no chão. Depois se levantou e seguiu mancando depressa em direcção à saída leste.

Anderson ficou olhando para o estranho objecto que o homem havia deixado para trás. Que negócio é esse? O objecto tinha uns 20 centímetros de altura e estava posicionado na vertical. Anderson se aproximou do monitor e apertou os olhos. Não pode ser o que parece! Enquanto o careca se afastava apressado, desaparecendo pelo pórtico leste, um menininho ali perto disse: Mãe, aquele homem deixou cair alguma coisa. O garoto foi ver o que era, mas de repente estacou. Após um longo instante de imobilidade, apontou para o objecto e soltou um grito ensurdecedor.

Na mesma hora, o chefe de polícia girou o corpo e saiu correndo em direcção à porta, berrando ordens pelo caminho. Mandem um rádio para todos os postos! Encontrem o careca da tipóia e prendam-no! Agora! Correndo para fora do centro de segurança, ele subiu de três em três os degraus da escadaria gasta. O vídeo de segurança havia mostrado o careca da tipóia deixando a Rotunda pelo pórtico leste. O caminho mais curto para sair do prédio, portanto, o faria passar pelo corredor leste-oeste, que ficava logo à frente.  Eu posso interceptá-lo. Depois de chegar ao topo da escada e fazer a curva, Anderson vasculhou o corredor silencioso à sua frente. Na outra ponta, um casal de idosos caminhava devagar, de mãos dadas. Perto deles, um turista louro de blazer azul lia um guia e estudava os mosaicos do tecto em frente à Câmara dos Representantes». In Dan Brown, O Símbolo Perdido, 2009, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-252-014-0.

 Cortesia de BertrandE/JDACT

JDACT, Washington DC, Dan Brown, Literatura, Maçonaria,

Alexandre O’Neill. Poesia. «Comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho o sono centenário mal vestido mal alimentado para o trabalho»

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O Tempo Sujo

«(…) Há dias que eu odeio

Como insultos a que não posso responder

Sem o perigo duma cruel intimidade

Com a mão que lança o pus

Que trabalha ao serviço da infecção

São dias que nunca deviam ter saído

Do mau tempo fixo

Que nos desafia da parede

Dias que nos insultam que nos lançam

As pedras do medo os vidros da mentira

As pequenas moedas da humilh

Dias ou janelas sobre o charco

Que se espelha no céu

Dias do dia-a-dia

Comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho

O sono centenário

Mal vestido mal alimentado

Para o trabalho

A martelada na cabeça

A pequena morte maliciosa

Que na espiral das sirenes

Se esconde e assobia

Dias que passei no esgoto dos sonhos

Onde o sórdido dá as mãos ao sublime

Onde vi o necessário onde aprendi

Que só entre os homens e por eles

Vale a pena sonhar».

Poema de Alexandre O’Neill, in No Reino da Dinamarca

ISBN 978-972-37-1947-5

 Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT

JDACT, Alexandre O’Neill, Poesia, Cultura,

Alexandre O’Neill. Poesia. «Uma praia elegante um estendal de belos corpos indolentes e as últimas mentiras dum jornal a propósito de factos recentes»

 

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Inventário

«Uma palavra que se tornou perigosa

Um marinheiro dum país amigo

Uma pobre mulher tuberculosa

E a mulher orgulhosa que persigo

A velhinha que passa de buíque

Um incêndio prestes a romper

E as ruas as ruas onde vi

O que ainda não sei ver

Uma praia elegante um estendal

De belos corpos indolentes

E as últimas mentiras dum jornal

A propósito de factos recentes

Um senhor absolutamente sério

Um doutor que esteve por um triz

P’ra fazer parte dum novo ministério

E um velho muito velho que nos diz

Avesso à multidão aos seus gritos de louca

Tenho contudo um grande amor ao Homem

Mas cuidado Uma ideia não vive sem o pão da boca

Por aquilo que não sou não quero que me tomem

Outro senhor absolutamente honesto

Ainda a velhinha do buíque

E o velho muito velho diz o resto

Diz o resto e é para que fique

Meu lema é conhecido minha voz muito menos

Mas o que digo chega ao vosso coração

Por caminhos discretos preciosos serenos

Como um selo raro a uma colecção

(E num silêncio que toda a gente ouvia

Só a mosca deu sinal de si

Dizendo com graça e ironia

Ó Cesário Verde como eu queria

Que estivesses aqui!)»

Poema de Alexandre O’Neill, in No Reino da Dinamarca

ISBN 978-972-37-1947-5

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT

JDACT, Alexandre O’Neill, Poesia, Cultura,

domingo, 26 de dezembro de 2021

As Igrejas de Castelo de Vide. Ruy Ventura. «Dar valor a uma igreja, ainda que pequena e humilde, mas histórica, é respeitar um passado que nos mantém de pé, pois faz parte das nossas raízes. Não há futuro sem passado»

Cortesia de ArquivodoNorteAlentejano e jdact

Com a devida vénia a Ruy Ventura e ao jornal Alto Alentejo

As Igrejas de Castelo de Vide fazem falta

«(…) É certo que em Castelo de Vide e no seu concelho nunca existiram igrejas dedicadas a São Martinho ou à Senhora da Saúde (como alguém escreveu), mas o valor memorial e patrimonial de igrejas e capelas como as que existem no concelho alentejano é algo que não pode ser desperdiçado seja por quem for. Desde uma igreja de Santiago (que investigadores internacionais já identificaram como uma antiga mesquita) à do Salvador do Mundo (anterior à nacionalidade e ligada ao cristianismo moçárabe), passando pelo Senhor do Bonfim (com um admirável conjunto de pinturas murais), ao Bom Jesus e à Senhora do Carmo (com retábulos que urge estudar, restaurar e divulgar, no âmbito da comunidade de artistas que existiu em Castelo de Vide nos séculos XVII e XVIII), a Santo Amaro (uma admirável igreja barroca!), às medievais São Roque e Santo Amador e a muitas outras, há um imenso conjunto de oportunidades a explorar, no âmbito de uma religiosidade aberta, de um turismo religioso e cultural e de uma estratégia inteligente de desenvolvimento local. É um erro pensar que as igrejas só merecem estar de pé enquanto lá se celebrar missa todos os domingos. Não foram construídas para isso. A maior parte delas, desde o dia da sua inauguração, só teve eucaristia uma vez por ano (ou no dia da sua festa ou no dia do sufrágio de quem lá estava enterrado, em geral os seus fundadores). A sua manutenção era assegurada por um ermitão, que aí vivia de graça e em troca de habitação gratuita tinha de assegurar a abertura de portas aos fiéis. Hoje em dia serão usadas de outro modo, com fins distintos. Não serão todavia menos dignos.

Dar valor a uma igreja, ainda que pequena e humilde, mas histórica, é respeitar um passado que nos mantém de pé, pois faz parte das nossas raízes. Não há futuro sem passado. É muito urgente dar valor a este e a outros patrimónios, sobretudo num tempo em que motivações espúrias querem purificar a nossa memória, derrubando e vandalizando estátuas e pessoas, levando-nos para a barbárie. Acredito que os negócios sejam sedutores, que a pressa de resolver situações seja má conselheira, que a imaginação nem sempre seja abundante, que pressões várias, nem sempre legítimas, façam esquecer o dever maior. Não é por acaso que o Direito Canónico afirma só ser válida a alienação de ex-votos oferecidos à Igreja, ou de coisas preciosas em razão da arte ou da história com licença expressa da Santa Sé, permitindo todavia que, além do culto, da piedade e da religião, o bispo diocesano permita nas igrejas outros actos ou usos, que não sejam contrários à santidade do lugar. Mesmo que as circunstâncias tenham levado à perda da bênção do local, é sempre possível dar-lhes um uso digno que respeite a sua integridade memorial, arquitectónica e artística. Há exemplos vários disso mesmo no Alentejo e no país, alguns bem perto. Não é preciso reinventar a roda…

Um dos primeiros actos de São Francisco depois da sua conversão foi promover nos arredores de Assis a reparação da igreja de São Damião, que ameaçava ruína e estava abandonada. Para isso, vendeu tudo o que tinha e, segundo contam as suas biografias medievais, chegou a andar pela sua terra a pedir pedras para a reconstrução, prometendo recompensas divinas. Nem todos podemos chegar ao exemplo maior dos santos, mas, como me disse um dia, era eu adolescente, o saudoso cónego Justo, membro do cabido da Sé de Portalegre, se nem todos conseguimos ser santos, todos temos a obrigação de ser nobres e honrados. Haja nobreza de carácter, honra e humildade e a situação das igrejas de Castelo de Vide será resolvida a pouco e pouco pelos castelo-videnses, pelas suas autoridades civis e por quem dirige a sua paróquia. Não me passa pela cabeça que venham a ter uma atitude menos digna. O Paráclito os espicaçará». Ruy Ventura, As Igrejas de Castelo de Vide Fazem Falta, artigo publicado no jornal AltoAlentejo, 17/06/2020, Arquivo do Norte Alentejan.

Cortesia de JALentejo/RuyVentura/JDACT

JDACT, Património, Ruy Ventura, Cultura e Conhecimento, Castelo de Vide,

As Igrejas de Castelo de Vide. Ruy Ventura. «Desde que lhe retiraram as imagens aí veneradas, não mais foi reparada, limpa ou valorizada. Mas não é uma ruína. Não será muito difícil repará-la e dar-lhe nova vida…»

Cortesia de ArquivodoNorteAlentejano e jdact

Com a devida vénia a Ruy Ventura e ao jornal Alto Alentejo

As Igrejas de Castelo de Vide fazem falta

«Castelo de Vide é uma terra afortunada. Ao contrário de outras localidades, que ainda hoje lamentam os desvarios e vandalismos do passado, causadores da destruição de tantos edifícios valiosos, a terra de Salgueiro Maia detém no perímetro do seu concelho um património invejável seja sob que ponto de vista for. É, ainda, uma vila venturosa pelas gentes que nela habitam. Sem os castelo-videnses, teríamos no mesmo lugar do Alto Alentejo uma qualquer feia povoação, sem identidade e sem brilho, abastardada por uma sucessão de atentados urbanísticos e patrimoniais promovidos pelos seus habitantes e autorizados pelos serviços camarários. Felizmente, temos o contrário disso tudo, e essa realidade eleva a urbe aos olhos dos portugueses e dos estrangeiros. Entre as pessoas que dão vida a Castelo de Vide, há cidadãos de corpo inteiro que, ao longo do tempo, têm assumido a defesa do seu património. Se no passado não conseguiram evitar a demolição de uma parte das suas muralhas (e, nelas, da célebre Porta da Aramenha, proveniente da cidade romana de Ammaia), bem como de alguns edifícios religiosos, como a importante igreja do Espírito Santo ou a matriz antiga de Póvoa e Meadas, pode dizer-se que há uma linhagem de gente que não tem deixado destruir peças importantes da sua identidade artística e arquitectónica (popular ou erudita). Uns chegaram à investigação, à escrita e à publicação (César Videira, João António Gordo, Raposo Repenicado, Diamantino Sanches Trindade, Maria Guadalupe Alexandre, Diogo Salema Cordeiro, Jorge Rosa, Rosário Salema Carvalho, etc.); outros, mantendo-se mais ou menos na sombra, trabalharam de outro modo pela salvaguarda, valorização e divulgação do património da comunidade, que é parte integrante, diga-se, do património nacional. Nos últimos anos, merece especial relevo a actividade da associação denominada Grupo de Amigos de Castelo de Vide, que tem aliado a defesa dos interesses locais à edição de livros e à impressão do jornal Notícias de Castelo de Vide, também disponível na internet sob a forma de blogue.

Se alguém pensa, por isto, que Castelo de Vide precisa de mim para liderar a defesa do seu património, decerto tem uma visão desfocada da realidade do concelho. Como investigador, é certo que assinei artigos na Invenire, Revista de Bens Culturais da Igreja (editada pela Conferência Episcopal Portuguesa) em que estudei obras de arte e tradições da vila onde nasceu Garcia de Orta; destaquei a localidade no meu livro Santo António na Região de Portalegre; publiquei artigos sobre as ruínas da ermida de São Paulo e sobre a igreja de Santa Maria da Devesa (com algumas novidades históricas); divulguei uma parte dos textos tradicionais do concelho em vários cadernos editados com a literatura oral da Serra de São Mamede; dei destaque à literatura castelo-vidense na volumosa antologia Poetas e Escritores da Serra de São Mamede; e, sobretudo, investiguei a toponímia, a heráldica, a história e o património do concelho no livro A Vide e o seu Castelo, obra hoje esgotada, a precisar de reedição revista e muito aumentada. Tal trabalho, que tenciono continuar (nomeadamente no doutoramento em História da Arte que me ocupará nos próximos quatro anos), não me transforma no entanto num elemento imprescindível na luta pela defesa do património concelhio, embora não lhe vire a cara, ao não esquecer que uma parte dos meus antepassados nasceu nesse município. Agradeço a honra que me foi concedida em duas publicações vindas a lume no jornal Alto Alentejo, nas quais surjo como líder de um grupo de pessoas de Castelo de Vide, mas não a mereço. Se manifestei o meu repúdio público pelas intenções do pároco viti-castrense e de mais algumas pessoas em vender a abandonada igreja de São Miguel (situada na Serra que já teve o nome do Comandante das Milícias Celestes e principal defensor da Igreja e do povo de Israel), limitei-me a fazer eco de uma notícia criada e difundida pelo Grupo de Amigos de Castelo de Vide no jornal que publica. Partilhei a notícia no facebook e comentei-a, dando o meu apoio aos castelo-videnses, estupefactos perante um incompreensível e pouco claro ataque ao seu património medieval. É certo que difundi a notícia e pus os meus fracos préstimos à disposição dos defensores do património local, mas nada fiz que outros não tivessem feito. O seu a seu dono…

Há quem defenda publicamente que as igrejas de Castelo de Vide não fazem falta. Permito-me discordar. Fazem tanta falta quanto as muralhas de várias épocas que envolvem a vila, quanto o castelo que lhe deu nome, quanto as antas e outros vestígios arqueológicos que povoam o município, quanto o pelourinho que se ergue em frente aos Paços do Concelho, quanto muitas tradições seculares que dão identidade à urbe. Diria mesmo que, dado o seu estatuto, fazem até mais falta. Com o que digo, não estou a estabelecer uma hierarquia, mas apenas a dizer que uma estratégia pastoral imaginativa, dialogante e aberta já lhes teria dado utilidade comunitária além do seu valor patrimonial, pois se não há cultura sem culto, também não há culto sem cultura.

A igreja de São Miguel não está arruinada, como tem sido dito. Está apenas abandonada porque a abandonaram há várias dezenas de anos, entregando-a à sua sorte e às forças da natureza. Aconteceu o mesmo a outras ermidas castelo-videnses, o que se lamenta. Desde que lhe retiraram as imagens aí veneradas, não mais foi reparada, limpa ou valorizada. Mas não é uma ruína. Não será muito difícil repará-la e dar-lhe nova vida, associando-a talvez à ermida de Nossa Senhora da Penha, sua vizinha, que não tem espaço para lá se celebrar a eucaristia, nem no dia da festa, ou instalando aí um agrupamento de escuteiros ou… (os castelo-videnses saberão, e parece que a edilidade já está a dar bons passos no sentido de não se apagar esse património). Essa igreja, já existente no século XV, era local de encontro dos cristãos-novos na centúria de quinhentos, tendo assim um valor memorial inalienável. Com potencial arqueológico importante, ninguém nos garante que por debaixo da sua cal não haja surpresas. Não deve ser vista, todavia, como algo que se possa separar da sua envolvente, tanto próxima, onde avulta um entorno prodigioso do ponto de vista natural e paisagístico, quanto alargada. Pergunto: não seria possível criar uma rota do sagrado que envolvesse todos estes edifícios ainda de pé e mesmo aqueles de que já só sobram ruínas? Ou será melhor defender o que defendiam alguns cidadãos de Guimarães no século XIX, ao quererem demolir o castelo da cidade porque o progresso seria levantar ali um bairro operário?» Ruy Ventura, As Igrejas de Castelo de Vide Fazem Falta, artigo publicado no jornal AltoAlentejo, 17/06/2020, Arquivo do Norte Alentejano.

Cortesia de JALentejo/RuyVentura/JDACT

JDACT, Património, Ruy Ventura, Cultura e Conhecimento, Castelo de Vide,

Os Sete. André Vianco. «Suficiente para nunca mais esquentarem a cabeça. Quando consegue falar com o Peta? Ele vai estar no bar hoje. Eu também vou. Falo com ele e ajeito tudo. Os dois entraram na casa»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Tiago ficara com a casa da família. Morava ali, na beira da praia. César, depois da partida de Sabrina, praticamente morava com Tiago. A amizade dos dois se iniciou logo que a família de Tiago chegara em Amarração. Formavam um grupo de sete pestinhas. Sabrina, a mais velha da turma, César, Tiago e Tadeu, mais dois irmãos, Olavo e Jéferson, e Eliana. Os sete da Amarração, como ficaram conhecidos. Dessa velha turma havia sobrado apenas eles dois, mais Olavo. Tiago e César se viam todos os dias. Trabalhavam na câmara municipal da cidade, no mesmo departamento, e nos finais de semana praticavam mergulho juntos. Todo o dinheiro que poupavam ia para os equipamentos, cada vez mais sofisticados e modernos. Infelizmente não conseguiam economizar muito. A esperança maior corria por conta do mar. Por duas vezes já haviam tirado coisas que lhes renderam um bocado de dinheiro. Na primeira, conseguiram duas imagens de santos. Tiago pensou em entregá-las para a igrejinha de Amarração, mas foi César quem o deteve. O amigo tivera o oportuno palpite de que aquelas coisas deviam valer algum dinheiro. Esperaram três semanas, e quando o salário da câmara municipal chegou pegaram um autocarro para Porto Alegre e foram directo para o museu da cidade. Lá descobriram que a coisa valia. Um coleccionador comprou as imagens. Eram peças portuguesas da época do descobrimento do Brasil. Conseguiram oito mil reais pelas duas. Mais da metade usaram para comprar a lancha e um motor novo. O restante do dinheiro durou mais alguns meses. Viajaram para vários parques de mergulho, conhecendo muita gente boa. A segunda vez que descolaram um dinheiro com mergulho foi com pequenos reparos no emissário submarino de Amarração. Havia três buracos no emissário que despejava o esgoto no oceano. Dessa vez, o dinheiro foi bem inferior aos oito mil reais, mas novamente realizaram uma série de excursões, conheceram mais gente, novos equipamentos e técnicas de mergulho. E, se o palpite de Tiago estivesse certo, dessa vez encheriam os bolsos com bastante dinheiro. Suficiente para nunca mais esquentarem a cabeça. Quando consegue falar com o Peta? Ele vai estar no bar hoje. Eu também vou. Falo com ele e ajeito tudo. Os dois entraram na casa.

Vê quanto ele cobra para alugar o equipamento. Alugar, ouviu?, frisou Tiago. O homem é chato, mas vou ver o que ele faz. Quando a gente tiver as fotografias nas mãos, eu levo para Porto Alegre. A Eliana está estudando História lá. Deve conhecer gente de confiança que pode nos dar uma ajuda. Estou desconfiado de que aquele barco é mais antigo do que esta cidade aqui. Está com toda a pinta de ser um galeão português. Caramba! Se for uma coisa tão antiga assim, podemos facturar uma enorme massa! Sei lá. Depende se tem alguma coisa lá dentro. Pelo barco mesmo, duvido que valha alguma coisa. Ele está muito podre, não sai de lá inteiro. Estou apostando numa outra jogada. Se a Eliana confirmar que é um galeão português, os indivíduos da faculdade vão ficar loucos para pôr as mãos nele; é aí que nós faturamos.

Cobra um dinheiro bom para mostrar onde o galeão está afundado. Não sei se nós vamos achar muita coisa valiosa dentro daquele troço. A gente podia mergulhar amanhã e ver se acha alguma entrada... É perigoso, Cesão. Aquilo está inteiro e podre. Pode cair tudo na nossa cabeça. É, mas se o barco é português mesmo aquelas duas imagens devem ter vindo dele, pode ter mais lá dentro, quatro mil cada uma. Sei lá. Vamos chamar o Lalá. De todos, a gente vai precisar de ajuda. Se ele topar, sem problemas, a gente entra. O Olavo é meio bundão, mas eu o convenço, pode deixar. Tiago aquietou-se e por um segundo a memória dos sete veio à sua mente. Sempre mergulharam naquela praia. Os sete. Juntos. Mas nunca tão distante. Nunca tão demoradamente. Com certeza adorariam tê-lo feito». In André Vianco, Os Sete, 1999, Editora Aleph, 2016, ISBN 978-857-657-339-5.

Cortesia de EAleph/JDACT

JDACT, André Vianco, Literatura, Terror,

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Guerras Climáticas. Harald Welzer. «Não se verão somente as migrações em massa, mas soluções violentas no enfrentamento dos problemas dos refugiados, que não abrangerão apenas os direitos à água ou ao cultivo e exploração do solo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Porque mataremos e seremos mortos no século XXI

«(…) O Eduard Bohlen se enferruja hoje, semi-enterrado na areia do deserto da Namíbia e talvez tenha chegado o momento em que o modelo completo das sociedades ocidentais, com todas as suas conquistas de democracia, direitos humanos, liberdade, liberalidade, arte e cultura, sob o ponto de vista de um historiador do século XXII, se demonstre tão irremediavelmente deslocado como nos parece hoje a visão do velho navio negreiro nadando no meio do deserto, um corpo estranho peculiar que dá a impressão de se ter originado noutro mundo. Isso no caso de ainda haver historiadores quando chegar o século XXII.

Este modelo de sociedade, tão impiedosamente desenvolvido ao longo de uma guerra com a duração de um quarto de milénio, tornou-se agora dominante, num piscar de olhos, no momento em que seu caminho vitorioso atingiu um alcance global, no qual até mesmo os países comunistas e aqueles que não eram exactamente comunistas foram incluídos, pela atracção irresistível de padrões de vida em que os automóveis, as televisões, os computadores de tela plana e as longas viagens determinaram as novas fronteiras da sua actuação, produzindo consequências inesperadas que ninguém havia calculado. As emissões de gás carbónico que a fome de energia das indústrias e das administrações dos países de desenvolvimento descontrolado produzem em níveis progressivamente maiores ameaçam os ritmos normais de desenvolvimento do clima terrestre. Suas consequências já se tornaram visíveis, embora o futuro ainda seja imprevisível. Ainda mais claramente agora, quando se percebe que a utilização desmedida das fontes de energia fóssil não pode mais ser continuada indefinidamente, uma vez que o fim destas reservas pode ser esperado antes de muito tempo, já que o esgotamento de tais recursos é inevitável, devido ao desinteresse pelas consequências e o descontrole com que são queimados.

Mas não é somente porque as transformações climáticas causadas pelas emissões de gases poluentes e que já provocaram um aquecimento global médio da ordem de dois graus não pareçam mais poder ser controladas que o modelo ocidental já atingiu os seus limites, mas também porque uma forma de desenvolvimento globalizado que tenha por base o consumo incontido de recursos naturais não poderá funcionar como um princípio de abrangência mundial. Isto porque este modelo funcionou logicamente apenas enquanto o poder de uma parte do mundo acumulou o que foi desviado de outras partes; este modelo é particular e não universal, nem todos os países poderão segui-lo doravante. Enquanto a astronomia não nos oferecer planetas próximos o bastante que possam ser colonizados, chegamos à constatação desapontadora de que a Terra é apenas uma ilha. Não teremos mais para onde nos expandir, depois que as reservas tenham sido esgotadas e os campos de cultivo ocupados pela urbanização.

Agora que os recursos restantes claramente estão se esgotando, pelo menos em muitas regiões da África, da Ásia, da Europa Oriental, da América do Sul, do Ártico e das Ilhas do Pacífico, surge o problema de que cada vez mais pessoas encontrarão cada vez menores bases de segurança para sua sobrevivência. Está ao alcance de todos a constatação de que conflitos armados surgirão entre estes povos, para que eles possam se nutrir do cultivo das próprias terras e das de seus vizinhos ou porque queiram beber das fontes de água que progressivamente se esgotam nos seus territórios ou nos territórios próximos; de forma semelhante, também se tornou visível para todos que as pessoas, dentro de um futuro previsível, não mais tenham mecanismos práticos de contenção dos refugiados de guerra e do meio ambiente, ao mesmo tempo que não se possam mais separar deles, porque cada vez mais novas guerras provocadas pela decadência ambiental surgirão e os povos fugirão para escapar às consequências da violência. Uma vez que eles terão de permanecer em algum lugar, darão origem a novas fontes de violência, nos seus próprios países, onde não saberão o que fazer com os refugiados internos, ou nas fronteiras de outras terras que desejem atravessar, mas onde não serão desejados de qualquer maneira.

O objectivo deste livro é o de responder às questões provocadas pela maneira como o clima e a violência se inter-relacionam. Em alguns casos, como o da Guerra do Sudão, este relacionamento é directo e pode ser constatado de imediato. Em muitos outros contextos de violência presente ou futura, no caso das guerras civis, de conflitos permanentes, do terror, da imigração ilegal, das disputas fronteiriças, das agitações e revoltas, predomina uma ligação com as modificações climáticas e os conflitos ambientais de carácter apenas indirecto, especialmente no sentido de que o aquecimento da temperatura provoca efeitos desiguais ao redor do globo, dependendo da densidade demográfica, da situação geográfica e das condições de vida, porque afecta as diversas sociedades de forma altamente diferenciada. Porém, tomadas no seu conjunto, quer as guerras climáticas assumam uma forma directa ou indireta, qualquer que seja a forma como se travem os conflitos do século XXI, a violência terá um grande papel futuro ao longo deste século. Não se verão somente as migrações em massa, mas soluções violentas no enfrentamento dos problemas dos refugiados, que não abrangerão apenas os direitos à água ou ao cultivo e exploração do solo, portanto, guerras de recursos naturais e não somente conflitos de religião, ou guerras de consciência». In Harald Welzer, Guerras Climáticas, Porque mataremos e seremos mortos no século XXI, LeLivros, Geração Editorial, 2010, Wikipedia.

Cortesia de LLivros/GeraçãoE/JDACT

Harald Welzer, JDACT, Clima, Conhecimento,