«Quatro longos meses nos separam ainda do ano da
Besta, e ela já aí está. A sua sombra obscurece-nos os peitos e as janelas das
nossas casas. À minha volta, as pessoas já não sabem falar de outra coisa. O
ano que se aproxima, os sinais prenunciadores, as predições... Por vezes digo a
mim mesmo: deixá-la vir! Deixá-la esvaziar por fim o seu alforge de prodígios e
de calamidades! Depois reconsidero, regresso em memória a todos esses bons anos
normais em que cada dia se passava na espera das alegrias da noite. E maldigo
abertamente os adoradores do apocalipse. Como começou esta loucura? Em que
espírito germinou ela primeiro? Debaixo de que céus? Não poderia dizer com
exactidão, e, no entanto, de certa maneira, sei-o. Daqui onde me encontro, vi o
medo, o medo monstruoso, nascer e crescer e expandir-se, vi-o insinuar-se nos
espíritos, até nos dos meus familiares, até no meu, vi-o sacudir a razão, espezinhá-la,
humilhá-la e depois devorá-la. Vi acabarem-se os dias felizes.
Até aqui, vivera com serenidade.
Prosperava, tinha boa aparência e fortuna, um pouco mais em cada estação; não
cobiçava nada que não estivesse ao meu alcance; os meus vizinhos adulavam-me
mais do que me invejavam. E, de súbito, tudo desaba à minha volta. Esse livro
estranho que aparece, depois desaparece por minha culpa... A morte do velho
Idriss, de que ninguém me acusa, é certo... A não ser eu mesmo. E essa viagem
que tenho de fazer a partir de segunda-feira, a despeito das minhas reticências.
Uma viagem da qual hoje me parece que não regressarei. Não é pois sem apreensão
que traço estas primeiras linhas neste caderno novo. Ainda não sei de que
maneira vou relatar os acontecimentos que se deram, nem aqueles que já se
anunciam. Um simples relato dos factos? Um diário íntimo? Um roteiro? Um testamento?
Talvez devesse falar primeiro
daquele que em primeiro lugar despertou as minhas angústias a propósito do ano
da Besta. Chamava-se Evdokime. Um peregrino de Moscóvia, que veio bater-me à
porta há dezassete anos, pouco mais ou menos. Porquê dizer pouco mais ou menos?
Tenho a data exacta no meu registo comercial. Foi a vinte de Dezembro de 1648. Sempre
anotei tudo, e principalmente os ínfimos detalhes, aqueles de que acabaria por me
esquecer. Antes de entrar pela minha porta, o homem fizera o sinal da cruz com
dois dedos estendidos, depois baixara-se para não chocar com o arco de pedra.
Trazia uma grossa capa negra, tinha mãos de lenhador, dedos grossos, uma
espessa barba loura, mas uns olhos minúsculos e a testa estreita. A caminho da
Terra Santa, não fora por acaso que parara em minha casa. Tinham-lhe dado o
endereço em Constantinopla, dizendo-lhe que era aqui, e só aqui, que tinha hipóteses
de encontrar aquilo que procurava. Gostaria de falar ao senhor Tommaso. Era o
meu pai, disse eu. Morreu em Julho. Deus o receba no Seu Reino! E que ele
acolha também os santos mortos da vossa família! A troca de palavras fazia-se em
grego, a nossa única língua comum, embora nem eu nem ele, com toda a evidência,
a praticássemos correntemente. Troca hesitante, insegura, em consequência do
luto, para mim ainda doloroso, para ele inesperado; e também devido ao facto de
que, falando ele a um papista apóstata e eu a um cismático tresmalhado,
tínhamos o cuidado de não pronunciar nenhuma palavra que pudesse ferir as
crenças do outro. Após um breve silêncio comum, continuou: Lamento muito que o
vosso pai nos tenha deixado». In Amin Maalouf, O Périplo de Baldassare, 2000, Editora
Difel, 2001, ISBN 978-972-290-884-9.
Cortesia de EDifel/JDACT
JDACT, Amin Maalouf, Literatura,