Saulo
«(…) Olhei-o então mais
detidamente e pensei no que havia acontecido hoje. Como havíamos sido forçados
a esperar na ilha até os piratas irem embora, e eu não estava mais correndo o
tempo todo para fornecer água a homens sedentos, tive mais tempo para pensar
nos vários aspectos daqueles acontecimentos. Percebi que o nosso capitão Cosimo
tinha um segredo que não dividia com ninguém. Sua vista estava falhando. Agora
eu sabia o motivo porque, embora fosse um bom marinheiro e um homem sagaz, ele às
vezes fazia asneiras na sua navegação. Essencialmente, seguíamos uma rota de
porto a porto, nunca nos afastando muito do continente, porque o nosso capitão
não conseguia distinguir apropriadamente objectos distantes. Foi quando tivemos
de nos aventurar em mar aberto que ele encontrou grandes dificuldades. Ele não
enxergara aquela pequenina ilha no seu mapa porque a marca impressa que
indicava a sua localização era minúscula e fraca. Ele me mandara adiante para
encontrar o caminho para a colina da ilha e seguiu atrás de mim, atacando o que
havia à frente com a bengala, como fazia no barco, para sentir o caminho
adiante. Durante as horas do dia, enquanto esperávamos os piratas irem embora,
ele me dava a luneta para que eu o informasse do que via, pois, possivelmente,
só enxergava as figuras como borrões à distância. E não queria que ninguém
soubesse de nada disso. Devia ser um problema recente, e o capitão não conseguiria
escondê-lo por muito mais tempo da sua tripulação, mas, por enquanto, preferia
que o achassem um idiota a deixar que descobrissem que estava ficando cego. Admirei-o
pela sua coragem. E porque nunca me tratou cruelmente, decidi que não o
trairia. Com uma espécie de lealdade inapropriada, mantive o seu segredo e não contei
a ninguém o que sabia. Eu era muito jovem e inexperiente para perceber que um
capitão semicego, final e inevitavelmente, conduziria seus homens à morte.
Esperámos a noite toda, após os
piratas terem ido embora, antes de voltar ao nosso barco. O vinho, a maior
parte da água, duas lanternas e uma panela tinham desaparecido. Eles haviam
levantado com uma alavanca a tampa da caixa de dinheiro pregada ao chão do minúsculo
dormitório do capitão e levado todas as moedas guardadas ali. Alguns peixes
salgados tinham sumido, mas eles deixaram o resto dos suprimentos, inclusive um
barril de água. Não tocaram na carga nem danificaram a embarcação. Isso me
surpreendeu, mas o capitão disse: Não é a mesma coisa ao ser alcançado numa
perseguição. Não éramos uma ameaça para eles, e seria uma atitude muito ruim
para um marinheiro deixar outro marinheiro naufragado sem água e sem meios de
deixar a ilha. Ao nos prepararmos para sair, o capitão Cosimo chamou-me para
ficar a seu lado debaixo do toldo onde ele mantinha os mapas espalhados sobre a
mesa. Deve haver um porto a alguns quilómetros a oeste, onde poderemos vender o
nosso óleo. Não creio que saiba ler, rapaz. Eu sei, respondi. Minha mãe me
ensinou as letras de vários alfabetos. Ela sabia? Ele ergueu uma sobrancelha.
Não havia pensado muito sobre os
ensinamentos de minha mãe até descobrir, ao ficar mais velho, que poucos homens
conheciam igualmente as letras ocidentais e orientais. A maior parte ignorava
como se formavam e como soavam as palavras das diferentes línguas. Eu sabia que
os pais de minha mãe tinham-se oposto ao relacionamento dela com o meu pai, e
eles fugiram juntos, desafiando-os. Somente então me dei conta de que ela devia
ter tido uma boa educação, para poder mostrar-me as letras e me ajudar a ler e
a escrever. Então soletre isto aqui para mim. O capitão apontou para algo
escrito no pergaminho colocado diante dele. Eu nunca havia examinado um mapa tão
de perto e fiquei maravilhado de como tal coisa podia ser feita, e disse isso
ao capitão. Aquele mapa mostrava os contornos das costas da França, Espanha e
Portugal, com uma parte também da África, e exibia os nomes de lugares e portos
escritos em ângulos rectos às suas posições na terra. É um desafio à crença de
que um homem consiga fazer mapas completamente correctos, observei.
Sim, exactamente, rebateu
sombriamente o capitão Cosimo. De facto, desafia a crença, pois eles não têm a
exactidão que alegam. As cartas marítimas listam portos, características
costeiras, embocaduras de rios e pontos de referência, e os mapas nos mostram
os mares e a terra. Contudo, já encalhei em ilhas onde não deveria existir terra,
e não encontrei muitos portos onde o cartógrafo me prometera um abrigo seguro. Olhei
ao longo das partes de baixo e de cima do mapa e depois de cada lado. Isso indicou
que havia mais terras a norte e a leste. Virei o pergaminho para olhar na parte
de trás. Isso é tudo que existe? O capitão me lançou um olhar estranho. Numa época,
a resposta a essa pergunta teria sido sim. Mas agora, deu de ombros, há muitas
histórias sobre o que pode haver de um lado do Atlântico ou a oeste, mais além
do Mar Oceano. Um dos meus conterrâneos, um homem chamado Cristóvão Colombo,
apregoa suas ideias a quem quiser ouvir. Isto é, qualquer pessoa rica e
poderosa que queira ouvir. Ele se propõe a encontrar um caminho pelo oeste para
o Oriente a fim de ter acesso às riquezas que existem lá, sem o risco de tentar
uma passagem pela extremidade inferior da África ou ter de pagar tributos aos
turcos para trazer as mercadorias através de suas terras. Ele procura fundos
para uma expedição que vá descobrir a rota ao redor da parte de trás do mapa». In
Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014,
ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,