Saulo
«(…) Pilhas de condimentos e remédios
para cada doença, de dor de dente a calvície, eram comercializadas por
enrugados vendedores ambulantes, chocando címbalos e batendo tambores enquanto
tentavam atrair fregueses usando a língua comum ou sinais e mímica para
anunciar seus artigos. O capitão Cosimo deixou o intendente e o carpinteiro-cozinheiro
regatear os preços da comida e das substitutas para nossas lâmpadas e panelas
roubadas e puxou-me em direcção a um canto mais tranquilo da feira. Ali se
encontravam os vendedores de tapetes e tecidos, os tecelões, os alfaiates e, quase
certamente, os aposentos de fundo onde um homem podia jogar dados e perder o
dinheiro que carregava. Entramos num prédio e o capitão soltou a corrente do pulso
e me prendeu a uma barra no chão. Deu-me um tapinha na cabeça. Eu o trato bem,
não é mesmo, rapaz?, perguntou. Sim, capitão Cosimo, respondi. Então não vai
fugir? Sacudi a cabeça. Se fugisse, suspirou o capitão, Panipat se dedicaria
apenas a procurá-lo e o castigaria tão severamente que o faria preferir a
morte. Mas, se continuar no meu barco, poderemos trabalhar juntos, pois acho
que poderia lhe ensinar as habilidades apropriadas de um homem do mar; com o
tempo, talvez haja alguma recompensa para si. Ele viu minha expressão mudar
quando disse isso. Pois, na verdade, eu pretendia fugir assim que ele desse as
costas. Mas agora essa era uma proposta diferente. Não me tornaria um escravo
remador?, indaguei. Isso seria um desperdício de seus talentos. Você aprenderia
sob minhas instruções? Talvez pudesse calcular a rota sozinho, embora eu sempre
daria as coordenadas. O que me diz?
Eu desconfiava de que ele sabia
que, se cometesse muitos erros mais, não conseguiria mais enganar os
tripulantes em relação à sua vista deficiente. Agora esperava mascarar seus
erros de navegação usando-me como bode expiatório para qualquer coisa que desse
errado. Sim, eu gostaria de fazer isso, concordei. Bom rapaz. Poderemos ter
algum problema com Panipat, que não se afeiçoou como eu. Mas cuidarei de você.
E você fará o mesmo por mim. Deu-me outra tapinha na cabeça. Descanse um pouco
aqui. Volto já. Ao retornar, o capitão Cosimo parecia bem satisfeito. Deve ter
sido o efeito do álcool, pois, quando voltamos ao barco e ele apanhou a sua
bolsa, ela estava muito mais leve do que antes. O capitão parecia imperturbado
por ter perdido seus próprios lucros. Após distribuir as quotas aos remadores e
ao resto da tripulação, restaram-lhe apenas algumas moedas que ele trancou na
sua caixa de dinheiro. Partimos daquele porto de bom humor, com uma nova carga
e provisões recém adquiridas. Poucos quilómetros ao largo, paramos o barco,
pois mais ou menos uma vez por mês os escravos eram desacorrentados para se
lavar e nadar no mar, onde não havia chance de fugirem. Nenhum deles jamais
tentou nadar para longe. Panipat, observando-os com um pontudo arpão mortal
atravessado no colo, era o suficiente para deter até mesmo o mais imprudente.
Em todo caso, quando o cozinheiro começou a preparar uma refeição quente, o
cheiro de comida chiando e a perspectiva de uma barriga cheia com uma ou duas
canecas de vinho trouxeram-nos escalando de volta a bordo.
Essa era a ocasião em que os
tripulantes, tanto os escravos quanto os homens livres, falavam sobre o mar. E,
embora se apavorassem com tanto poder, eles sentiam afecto por aquele provedor
do seu sustento. É melhor do que a mulher com quem me casei disse um. Que
mulher se casaria com você?, zombou outro. O primeiro apenas riu. Eu já vi a
sua, e sei porque se empregou por sete anos. Se tivesse que encontrar isso ao
voltar para casa, eu me empregaria pelo dobro do tempo. Alguns dos remadores
contavam histórias de suas vidas anteriores. Os quatro escravos árabes, que
eram colocados juntos a boreste do barco, murmuravam baixinho entre eles, mas,
quanto aos outros quatro escravos, dois eram ladrões confessos e um terceiro
culpado de assassinato. Jean-Luc, um francês, tinha sido soldado e, embriagado,
matara a esposa num acesso de raiva; Sebastien, um homem magro e muito alto,
era padre. Fui preso pela Inquisição (maldita), contou-nos, por pregar heresia.
Escapei. Era passar a vida numa galé ou queimar na estaca. Escolhi isto aqui.
Alguns dias, quando por nosso louco capitão se perde, penso que talvez tivesse
sido melhor tostar numa fogueira do que assar aqui lentamente ao sol.
Eles me perguntaram sobre minha
vida anterior, mas eu não tinha muita coisa para contar, excepto que sempre tínhamos
vivido com medo. Acho que meu pai acreditava que éramos perseguidos pelos
familiares de minha mãe, que tentavam matá-lo por tê-la tirado deles sem
permissão. Não sei porque proibiram o casamento». In Theresa Breslin, Prisioneira
da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,