quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Eles me perguntaram sobre minha vida anterior, mas eu não tinha muita coisa para contar, excepto que sempre tínhamos vivido com medo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

«(…) Pilhas de condimentos e remédios para cada doença, de dor de dente a calvície, eram comercializadas por enrugados vendedores ambulantes, chocando címbalos e batendo tambores enquanto tentavam atrair fregueses usando a língua comum ou sinais e mímica para anunciar seus artigos. O capitão Cosimo deixou o intendente e o carpinteiro-cozinheiro regatear os preços da comida e das substitutas para nossas lâmpadas e panelas roubadas e puxou-me em direcção a um canto mais tranquilo da feira. Ali se encontravam os vendedores de tapetes e tecidos, os tecelões, os alfaiates e, quase certamente, os aposentos de fundo onde um homem podia jogar dados e perder o dinheiro que carregava. Entramos num prédio e o capitão soltou a corrente do pulso e me prendeu a uma barra no chão. Deu-me um tapinha na cabeça. Eu o trato bem, não é mesmo, rapaz?, perguntou. Sim, capitão Cosimo, respondi. Então não vai fugir? Sacudi a cabeça. Se fugisse, suspirou o capitão, Panipat se dedicaria apenas a procurá-lo e o castigaria tão severamente que o faria preferir a morte. Mas, se continuar no meu barco, poderemos trabalhar juntos, pois acho que poderia lhe ensinar as habilidades apropriadas de um homem do mar; com o tempo, talvez haja alguma recompensa para si. Ele viu minha expressão mudar quando disse isso. Pois, na verdade, eu pretendia fugir assim que ele desse as costas. Mas agora essa era uma proposta diferente. Não me tornaria um escravo remador?, indaguei. Isso seria um desperdício de seus talentos. Você aprenderia sob minhas instruções? Talvez pudesse calcular a rota sozinho, embora eu sempre daria as coordenadas. O que me diz?

Eu desconfiava de que ele sabia que, se cometesse muitos erros mais, não conseguiria mais enganar os tripulantes em relação à sua vista deficiente. Agora esperava mascarar seus erros de navegação usando-me como bode expiatório para qualquer coisa que desse errado. Sim, eu gostaria de fazer isso, concordei. Bom rapaz. Poderemos ter algum problema com Panipat, que não se afeiçoou como eu. Mas cuidarei de você. E você fará o mesmo por mim. Deu-me outra tapinha na cabeça. Descanse um pouco aqui. Volto já. Ao retornar, o capitão Cosimo parecia bem satisfeito. Deve ter sido o efeito do álcool, pois, quando voltamos ao barco e ele apanhou a sua bolsa, ela estava muito mais leve do que antes. O capitão parecia imperturbado por ter perdido seus próprios lucros. Após distribuir as quotas aos remadores e ao resto da tripulação, restaram-lhe apenas algumas moedas que ele trancou na sua caixa de dinheiro. Partimos daquele porto de bom humor, com uma nova carga e provisões recém adquiridas. Poucos quilómetros ao largo, paramos o barco, pois mais ou menos uma vez por mês os escravos eram desacorrentados para se lavar e nadar no mar, onde não havia chance de fugirem. Nenhum deles jamais tentou nadar para longe. Panipat, observando-os com um pontudo arpão mortal atravessado no colo, era o suficiente para deter até mesmo o mais imprudente. Em todo caso, quando o cozinheiro começou a preparar uma refeição quente, o cheiro de comida chiando e a perspectiva de uma barriga cheia com uma ou duas canecas de vinho trouxeram-nos escalando de volta a bordo.

Essa era a ocasião em que os tripulantes, tanto os escravos quanto os homens livres, falavam sobre o mar. E, embora se apavorassem com tanto poder, eles sentiam afecto por aquele provedor do seu sustento. É melhor do que a mulher com quem me casei disse um. Que mulher se casaria com você?, zombou outro. O primeiro apenas riu. Eu já vi a sua, e sei porque se empregou por sete anos. Se tivesse que encontrar isso ao voltar para casa, eu me empregaria pelo dobro do tempo. Alguns dos remadores contavam histórias de suas vidas anteriores. Os quatro escravos árabes, que eram colocados juntos a boreste do barco, murmuravam baixinho entre eles, mas, quanto aos outros quatro escravos, dois eram ladrões confessos e um terceiro culpado de assassinato. Jean-Luc, um francês, tinha sido soldado e, embriagado, matara a esposa num acesso de raiva; Sebastien, um homem magro e muito alto, era padre. Fui preso pela Inquisição (maldita), contou-nos, por pregar heresia. Escapei. Era passar a vida numa galé ou queimar na estaca. Escolhi isto aqui. Alguns dias, quando por nosso louco capitão se perde, penso que talvez tivesse sido melhor tostar numa fogueira do que assar aqui lentamente ao sol.

Eles me perguntaram sobre minha vida anterior, mas eu não tinha muita coisa para contar, excepto que sempre tínhamos vivido com medo. Acho que meu pai acreditava que éramos perseguidos pelos familiares de minha mãe, que tentavam matá-lo por tê-la tirado deles sem permissão. Não sei porque proibiram o casamento». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,