terça-feira, 31 de maio de 2016

A Favorita no 31. Vataça. Francisco do Ó Pacheco. «E o casório presencial consumou-se com a graça de Deus, corria o ano do Senhor de 1282, aos 26 do mês de Junho, tinha dona Isabel de Aragão 12 anos e o seu rei e esposo, Dinis, já caminhando pelos 20 anos adentro»


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«(…) Quando partiu com a mãe e os irmãos, de Ventimiglia para Zaragoça de Aragão, Vataça teria pouco mais de doze anos e foi então que conheceu a infanta Isabel, ainda sua parente afastada, filha do rei de Aragão, Pedro III e da rainha Constança da Sicília, e neta de Jaime I. Não ficou muito tempo na corte de Aragão, porque dona Isabel casara por procuração com o rei de Portugal, Dinis I, como já estava previsto entre as duas coroas, desde 1280. No ano seguinte, o rei de Portugal enviava a Barcelona três emissários, tendo por sua vez o rei de Aragão enviado também uma embaixada a Portugal e assim ficava resolvida a questão das arras, isto é, dos bens que ficariam para a rainha, caso ela sobrevivesse ao rei. Nessa carta de doacção, o monarca Dinis concedia à noiva, as vilas de Óbidos, Abrantes e Porto de Mós. Foi já em 1282 que a rainha dona Isabel e sua comitiva, onde se encontrava Vataça Lascaris, entraram em Portugal por Bragança e se dirigiram para Trancoso, onde o rei e esposo a aguardava para que se consumasse a boda real e lhe concedesse o senhorio da vila.
Viagem inesquecível, pensava Vataça. De um momento para o outro deixara a sua casa e os seus amigos em Ventimiglia e partira para Saragoça de Aragão. Pouco depois fazia caminho para Portugal, com dona Isabel de Aragão, que ia ser rainha desse reino, de que pouco tinha ouvido falar até então. Mas tal viagem jamais sairia de sua memória. E recordou o casamento de dona Isabel com o rei Dinis I, que quase não pode ser celebrado, religiosamente, em Trancoso nem em qualquer outra terra de Portugal, porque as igrejas se mantinham todas fechadas e sem cerimónias de culto, por interdição do papa, desde o reinado de Afonso III. Tudo porque aquele rei de Portugal estava excomungado, sob a acusação de ofensas à liberdade da igreja. Apesar das várias tentativas, no fina1 do reinado do rei bolonhês para terminar o conflito com Roma, só em 1289, já em pleno reinado de Dinis, o papa Nicolau IV colocou um ponto final a tão prolongado litígio. Para que não se agravassem as relações com o papado Dinis I mandou que as bênçãos eclesiásticas se fizessem com os prelados aragoneses que acompanhavam dona Isabel. E o casório presencial consumou-se com a graça de Deus, corria o ano do Senhor de 1282, aos 26 do mês de Junho, tinha dona Isabel de Aragão 12 anos e o seu rei e esposo, Dinis, já caminhando pelos 20 anos adentro, pois a 9 do Outubro seguinte, completaria a bonita idade de vinte e um anos. Começavam então os folguedos, grandiosos. que os casamentos reais sempre proporcionam aos povos, quaisquer que eles sejam e onde quer que se encontrem». In Francisco do Ó Pacheco, Vataça, A Favorita de Dom Dinis, Prime Books, 2013, ISBN 978-989-655-183-4.

Cortesia de PBooks/JDACT

Drama no 31. Canção do Cuco. Frances Hardinge. «Era mais velho, tinha uma mecha de cabelo sem cor penteada curva um centímetro acima da pele rosada, e sobrancelhas grisalhas espalhadas. As veias das mãos tinham o aspecto inchado que evidenciava idade avançada»

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«A cabeça doía. Um som moía a sua mente, um raspar sem melodia, como o farfalhar de papel. Alguém dera uma risada, amassara-a numa grande bola irregular e usara para rechear o crânio dela. Sete dias, dizia rindo. Sete dias. Pára, resmungou. E parou. O som desvaneceu, até que mesmo as palavras que ela pensava ter ouvido sumiram da sua mente feito vapor no vidro. Triss? Ouviu outra voz, que soou muito mais alta e próxima do que a dela, a voz de uma mulher. Ah, Triss, meu amor, está tudo bem. Eu estou aqui. Acontecia alguma coisa. Duas mãos quentinhas envolveram-na, como um ninho. Não deixe que se riam de mim, sussurrou. Engoliu saliva e sentiu a garganta seca e rugosa. Não tem ninguém rindo, querida, disse a mulher, a sua voz tão sussurrada e gentil que era mais um suspiro. Ouviu murmúrios de preocupação um pouco mais distantes. As vozes de dois homens. Ela continua delirando? Doutor, pensei que você tinha dito que… Só um sonho interrompido, acho. Veremos como está Theresa quando ela acordar de vez.
Theresa. O meu nome é Theresa. Sim, ela sabia, mas era como uma palavra comum. Ela não parecia saber o que significava. Meu nome é Triss. Esse soava um pouco mais natural, como um livro aberto numa página familiar. A garota conseguiu abrir um pouco os olhos; ardeu de leve por causa da luz. Estava numa cama, apoiada num monte de travesseiros. Sentiu como se fosse muito ampla, coberta de rochas pesadas, e foi uma surpresa ver-se esticada no seu tamanho normal sob a colcha e a coberta. A mulher sentada ao seu lado segurava a sua mão com carinho. Os seus cabelos negros eram curtos e ajustados à cabeça, moldados em ondas firmes, brilhantes. Um floreado subtil de pó cobria as suas faces, abafando as linhas cansadas dos cantos dos olhos. As contas azuis de vidro do colar da mulher captavam a luz que atravessava a janela, cintilando pequenos diamantes na pele branca do pescoço e por baixo do queixo. Cada centímetro daquela mulher era dolorosamente familiar e, entretanto, desconhecido, como um mapa para o lar já quase esquecido. Uma palavra desceu, vagando de algum lugar, e a mente entorpecida de Triss conseguiu capturá-la. Ma…, começou. Isso mesmo, a mãe está aqui, Triss. Mãe. Mãe. Ma…, ma… Só conseguiu verter um resmungo. Eu…, não… Triss perdeu a frase, incapaz. Não sabia o que não, mas receava a intensidade desse não.
Tudo bem, filhinha. A mãe apertou-lhe de leve a mão e sorriu gentilmente. Você andou doente de novo, só isso. Teve febre, então é normal sentir-se cansada e meio confusa. Lembra-se do que aconteceu ontem? Não. O dia anterior era um imenso buraco negro, e Triss sentiu um assomo de pânico. Será que conseguiria lembrar-se de alguma coisa? Você chegou em casa encharcada. Lembra-se disso? A cama rangeu quando um homem se sentou do outro lado. Tinha um rosto comprido, forte, com rugas entre as sobrancelhas, como se sempre se concentrasse em tudo com muito afinco, e os cabelos eram loiros-claros. A voz era gentil, no entanto, e Triss sabia que partia dele um olhar todo especial, o qual apenas ela recebia. Pai. Achamos que você caiu no Grimmer. A palavra Grimmer fez Theresa sentir-se fria e trémula, como se alguém houvesse esfregado pele de sapo no seu pescoço. Eu…, não me lembro. Ela queria mesmo era fugir desse pensamento. Não a pressione. Havia outro homem em pé, aos pés da cama. Era mais velho, tinha uma mecha de cabelo sem cor penteada curva um centímetro acima da pele rosada, e sobrancelhas grisalhas espalhadas. As veias das mãos tinham o aspecto inchado que evidenciava idade avançada.
As crianças brincam perto da água; sempre fazem isso. Deus sabe que eu vivia perto dos riachos quando era pequena. Agora, menina, você deixou os seus pais muito preocupados, passou a noite toda com febre alta, não sabia quem eles eram. Suponho que agora já saiba muito bem quem eles são. Triss hesitou e fez que sim com a cabeça pesada. Reconhecia o cheiro. Cinza de cachimbo e pó de arroz. O médico assentiu sabiamente, e tamborilou os dedos na beira da cama. Como se chama o rei?, disparou, ávido. Triss deu um pulo, e ficou exasperada por um instante. Então lembranças das cantigas escolares infantis nadaram obedientes para dentro de sua mente. Um senhor é rei, um rei é George, um George é Quinto… George Quinto, respondeu. Muito bem. Onde estamos agora? Na antiga casa de pedra, em Lower Bentling, Triss respondeu, com crescente confiança. Perto do lago de pesca do rei. Reconheceu o cheiro do lugar: paredes húmidas, mais o perfume delicado de três gerações de gatos velhos e doentes. Estamos aqui de férias. Nós…, nós vimos aqui todos os anos. Quantos anos tem? Onze. E onde mora? The Beeches, Praça Luther, Ellchester. Muito bem. Melhorou bastante. O homem abriu um sorriso amplo, caloroso, como se tivesse genuíno orgulho dela. Veja, andou bastante doente, por isso imagino que está sentindo a cabeça como se estivesse cheia de algodão, não está? Bom, fique tranquila. Ao longo dos próximos dias, seu bom humor vai voltar para casa, digamos, com o rabinho entre as pernas. Já está sentindo-se melhor, não está?» In Frances Hardinge, Canção do Cuco, 2014, Novo Século Editora, Le Livros, 2015, EISBN 978-854-280-633-5.

Cortesia LeLivros/NSéculoE/JDACT

Paixão no 31. Camões. A Infanta dona Maria. José Maria Rodrigues. «A vida, o sol ardente, as aguas frias, os ares grossos, férvidos e feios. Mas os meus pensamentos, que são meios para enganar a própria natureza…»

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No Oriente
«(…) Em vez, porém, de voltar para o reino, o poeta, obrigado ao serviço militar, teve de ir para o aborrecido e perigoso cruzeiro do estreito de Meca (golpho de Aden), na armada do commando de Manuel Vasconcellos (Fevereiro de 1553). Eis como Diogo do Couto dá noticia desse cruzeiro: partido Manuel Vasconcellos de Gôa…, e em sua companhia Fernão Farto, que levava os padres para irem a Abassia, foram seguindo sua derrota até haverem vista da costa de Arábia, e Manuel Vasconcellos se foi lançar com toda a sua armada a Monte de Félix [é o Ras, cabo, ai Fil, ou Filuk, situado algumas dezenas de milhas, 38 em linha recta, para dentro do cabo de Guardafui, na costa setentrional da Somália; eis como elle vem descripto no roteiro inglês do Mar Vermelho e golpho de Aden, The Red Sea and Gulf of Aden Pilot, edição de 1900, Ras Filuk, ou mais propriamente Ras-al-Fil, o Mons Elephas dos romanos, assim chamado por causa da similhança que tem com um elephante, é uma elevada collina de 800 pés d'altitude acima do nivel do mar, a 8 milhas a oeste do Ras Alula. Tem a apparencia de uma ilha, quer se veja de leste, quer de oeste, pois são baixas as terras que lhe ficam ao pé. Os indigenas chamam-lhe geralmente Ras Belmúk; com tempo claro pôde ser visto á distancia de 40 milhas...; no valle que fica a leste ha uma laguna de agua salgada…; a oeste do Ras Filuk ha uma pequena, mas profunda baía, abrigada dos levantes e poentes, com um bom ancoradouro de 5 braças d'agua], como levava por regimento, pêra alli esperar as naos que haviam de vir do Achem e alli esteve até se lhe gastar a monção, sem lhe vir cahir alguma nas mãos. E sendo tempo de se recolher a invernar em Mascate, pêra recolher as nãos de Ormuz, por se recearem do cossario Cafár, se fez á vela e foi surgir naquelle porto, onde desapparelhou e esteve até Setembro e entrada de Uutubro, Década VII.
Ouçamos agora o poeta, edição de 1852:

Junto d'um sêcco, duro, estéril monte,
Inútil e despido, calvo e informe,
Da natureza em tudo aborrecido.
Onde nem ave voa ou fera dorme,

Nem corre claro rio ou ferve fonte,
Nem verde ramo faz doce ruido,
Cujo nome, do vulgo introduzido,
É Feliz, por antiphrasi infelice,
O qual a natureza

Situou junto á parte
Aonde um braço d'alto mar reparte
A Abassia da Arábica aspereza,
Em que fundada já foi Berenice (ver nota),
Ficando á parte donde

Nota: Se a palavra relativa por que começa este verso se refere á Arábia, trata-se da Berenice que ficava na Arábia Pétrea, no extremo norte do Aelaniticus sinus. Neste caso, o Ficando do verso 14 refere-se a Berenice e este verso e o seguinte formam como que um parenthesis. Se, porém, o antecedente do Em que é a parte do verso 10, trata-se de uma das três ou quatro Berenices, que se achavam situadas na costa africana do Mar Vermelho. E se no verso 15 se deve ler nelle, como fez o primeiro editor das Rimas, não póde deixar de ser uma destas. Nelle seria então o braço d'alto mar do verso 11, isto é, o Mar Vermelho, a que, diga-se de passagem, os nossos antigos escriptores davam como limites extremos Suez e uma linha tirada do cabo de Guardafui ao de Fartaque.

O sol que nella ferve se lhe esconde;
O cabo se descobre, com que a costa
Africana, que do austro vem correndo,
Limite faz, Arómata chamado,
Arómata outro tempo, que volvendo

A roda (2), a ruda lingua mal composta
Dos próprios outro nome lhe tem dado.
Aqui, no mar que quer, apressurado,
Entrar por a garganta deste braço,
Me trouxe um tempo e teve

Minha fera ventura.
Aqui, nesta remota, áspera e dura
Parte do mundo, quis que a vida breve
Também de si deixasse um breve espaço,
Porque ficasse a vida

Por o mundo em pedaços repartida.
Aqui me achei gastando uns tristes dias,
Tristes, forçados, maus e solitários,
De trabalho, de dôr e de ira cheios.
Não tendo tão somente por contrários

A vida, o sol ardente, as aguas frias,
Os ares grossos, férvidos e feios.
Mas os meus pensamentos, que são meios
Para enganar a própria natureza,
Também vi contra mi,

Trazendo-me á memoria
Alguma já passada e breve gloria,
Que eu já no mundo vi, quando vivi,
Por me dobrar dos males a aspereza,
Por mostrar-me que havia

No mundo muitas horas de alegria.
Aqui 'stive eu, com estes pensamentos,
Gastando tempo e vida, os quaes tão alto
Me subiam nas asas, que caía
(Oh vede se seria leve o salto!)

De sonhados e vãos contentamentos
Em desesperação de ver um dia.
O imaginar aqui se convertia
Em improvisos choros e em suspiros,
Que rompiam os ares.

Aqui, a alma captiva,
Chagada toda, estava em carne viva,
De dores rodeada e de pesares,
Desamparada e descoberta aos tiros
Da soberba Fortuna,

Soberba, inexorável e importuna!
Não tinha parte donde se deitasse,
Nem esperança alguma onde a cabeça
Um pouco reclinasse por descanso!
Tudo dôr lhe era e causa que padeça,

Mas que pereça não, porque passasse
O que quis o destino nunca manso.
Oh que este irado mar, gemendo, amanso!
Estes ventos, da voz .importunados,
Parece que se enfrêam;

Somente o ceu severo,
As estrellas e o fado, sempre fero,
Com meu perpétuo dano se recrêam,
Mostrando-se potentes e indignados
Contra um corpo terreno,

Bicho da terra, vil e tão pequeno!
Se, de tantos trabalhos, só tirasse
Saber inda, por certo, que algum'hora
Lembrava a uns claros olhos, que já vi,
E se esta triste voz, rompendo fora,

As orelhas angélicas tocasse
Daquella, em cuja vista já vivi,
A qual, tornando um pouco sobre si,
Revolvendo na mente pressurosa
Os tempos já passados

De meus doces errores.
De meus suaves males e furores,
Por ella padecidos e buscados,
E, posto que já tarde, piedosa.
Um pouco lhe pesasse,
[…]

In José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

Navegar no 31. O Segredo da Bastarda. Cristiana Norton. «Chegou o dia em que a família e as duas criadas que os acompanhavam desde Guimarães embarcaram num barco chamado Gigante para o Brasil. Navegavam mais dois navios junto ao deles…»

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«(…) Tiveram de fazer as visitas de cortesia e ir aos beija-mãos no meio de nuvens de poeira, mas valeu a pena porque Rodrigo foi nomeado governador e Capitão-General de Minas Gerais, Baía e Grão-Pará. A nova situação obrigou-os a começarem a preparar as coisas para a viagem que estava marcada para daí a três meses, mas dessa vez dividiram as tarefas. Maria José tratou da compra de panos de linho, de algodão, de seda fina e também de chita da Índia, de cores sóbrias, como lhe recomendou o marido ao mostrar-lhe uma bolsa com moedas pesadas que o ministro lhe dera pessoalmente para que pudesse fazer face às despesas. Uma parte do dinheiro foi enviada a um tio da morgada, para que resgatasse as pratas que tinham ficado em casa do prestamista em Guimarães. Eram objectos que estavam na família havia várias gerações e Rodrigo tinha-se comprometido a recuperá-los assim que a sua situação económica o permitisse.
A entrada da casa encheu-se de coisas que eram descarregadas continuamente e Maria José teve de destinar um quarto espaçoso para irem pondo as caixas. O rodopio aumentou quando começaram a aparecer as costureiras e os alfaiates e invadiram os quartos de vestir de adultos e crianças, onde empilhavam peças dos mais variados panos para prepararem um enxoval digno do cargo e do clima do Brasil, oposto, em temperaturas e chuvas, ao do Minho. Tomaram medidas, sugeriram modelos, fizeram provas de vestidos de corte e redondos para os bailes, sapatos, luvas e enfeites de cabeça. Para as crianças, trajes de sair e de ir à missa, mas sobretudo roupa leve para andar por casa. O futuro governador declarou, com uma presunção nunca vista, que precisava de uma capa de seda preta com bandas ricamente bordadas, de chapéu de penas brancas, casacos curtos e abertos, por causa do calor, calções de tecido da Holanda em tom cru, ceroulas e cabeleiras. O alfaiate mandou o seu aprendiz assentar essas vontades todas, mantendo-se imperturbável, como se lhe estivessem a encomendar um par de camisas, enquanto a sua mente registava os cifrões com uma precisão de contabilista. Chegaram meias de seda de cor preta e pérola, e também branca para uso diário, de todos os tamanhos porque as crianças iam crescer todos os meses e não deviam encontrar-se nessas terras incivilizadas coisas tão imprescindíveis e, principalmente, de acordo com os costumes do reino.
Enquanto Maria José tratava desses assuntos de menor importância, Rodrigo dispôs-se a organizar a botica portátil aconselhando-se com um dos médicos da corte, que lhe fez uma lista dos trinta e tal remédios que convinha levar, e a ajuda do boticário que, além de lhe fornecer os produtos, lhes juntou umas folhas escritas pelo seu punho e letra com a enumeração das virtudes e a maneira de utilizar as drogas. O que a princípio lhe pareceu uma tarefa ingrata, deixou de o ser ao descobrir como se entretinha a mexer nos frascos, nos pós e nos unguentos que foram ocupando o compartimento destinado a cada um numa caixa de madeira nobre que mandara fazer. Perante o olhar atónito da mulher, que não conseguia acreditar que os serões se tivessem transformado em aulas de farmacologia, o governador descrevia os poderes curativos da água de canela, boa para a digestão, expulsar flatos, fortificar a cabeça e o coração; do bálsamo católico, que tanto servia para as feridas como para a dor de dentes; do óleo de amêndoas doces, que se usava externamente para qualquer dor e internamente nas deflexões, para adoçar a acrimónia da linfa, que ofendia muito. Maria José ouvia tudo com uma atenção fingida, muito mais preocupada com o avesso do ponto cruz, que a ajudava a suportar as intermináveis explicações do marido.
Chegou o dia em que a família e as duas criadas que os acompanhavam desde Guimarães embarcaram num barco chamado Gigante para o Brasil. Navegavam mais dois navios junto ao deles, porque nenhum capitão se arriscaria a atravessar sozinho os mares, onde costumavam surgir corsários, temporais, doenças ou outra situação inesperada que não seriam capazes de enfrentar sem ajuda. Depois de navegar duas semanas, avistaram o porto de Santiago, em Cabo Verde, que era a paragem obrigatória para se abastecerem de água doce e comprarem alimentos frescos para armazenarem no porão dos barcos. A família aproveitou os momentos livres para passear pela ilha: a nova condição de governador obrigava-o a fazer visitas a altos funcionários da coroa, ávidos de notícias, de cartas e de algum mexerico com que amenizar as longas tardes em que o mar lhes trazia sempre o mesmo som das ondas a desfazerem-se na areia, num ramerrão que lhes amolecia o corpo e os sentidos. Depois de se terem informado das novidades do reino e de indagarem sobre a vida dos Meneses, o desejo íntimo dos brancos da ilha era que acabasse a estada de pessoas ilustres para poderem novamente fechar o círculo e voltar à rotina, cansados de tanta cerimónia, dos sapatos que lhes apertavam os joanetes e do peso de uma roupa que não tinha sido pensada para essas latitudes e que tinham de usar nessas ocasiões». In Cristina Norton, O Segredo da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-23-1047-3.

Cortesia de OLivro/JDACT

domingo, 29 de maio de 2016

Camões. A Infanta dona Maria. José Maria Rodrigues. «A vida cansada se melhora, toma espíritos novos, com que vença a fortuna e trabalho, só por tornar a ver-vos, só por ir a servir-vos e querer-vos»

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No Oriente
«(…) depois de instado por Umbrano, Frondelio repete os brandos versos, que de véspera cantara a propósito do caso desastrado:

Aquelle dia as aguas não gostaram
As mimosas ovelhas e os cordeiros
O campo encheram de amorosos gritos,
E não se penduraram dos salgueiros
As cabras, de tristeza, mas negaram
O pasto a si e o leite aos cabritos.
Prodígios infinitos
Mostrava aquelle dia,
Quando a parca queria
Principio dar ao fero caso triste.
E tu também, ó corvo, o descobriste,
Quando da mão direita, em voz escura,
Voando, repetiste
A tyrannica lei da morte dura.

Tionio meu, o Tejo crystallino
E as arvores que já desamparaste
Choram o mal de tua ausência eterna.
Não sei porque tão cedo nos deixaste!
Mas foi consentimento do destino.
Por quem o mar e a terra se governa.
A noite sempiterna.
Que tu tão cedo viste,
Cruel, acerba e triste,
Se quer de tua idade não te dera
Que lográras a fresca primavera?
Não usara comnosco tal crueza,
Que nem nos montes fera
Nem pastor ha no campo sem tristeza.
:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Qual o mancebo Euryalo, enredado
Entre o poder dos Rutulos, fartando
As iras da soberba e dura guerra,
Do crystallino rosto a cor mudando,
Cujo purpúreo sangue, derramado
Por as alvas espaldas, tinge a serra;
Que, como flor, que a terra
Lhe nega o mantimento,
Porque o tempo avarento
Também o largo humor lhe tem negado,
O collo inclina languido e cansado:
Tal te pinto, ó Tionio, dando o esprito
A quem to tinha dado.
Que este é somente eterno e infinito.
(Egloga 1ª)

Léa-se também o soneto 12, que o poeta escreveu antes da egloga 1ª:

Em flor vos arrancou, de então crescida,
Ah senhor Dom António! a dura sorte.
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos antigos esquecida.

Uma só razão tenho conhecida,
Com que tamanha magua se conforte:
Que, se no mundo havia honrada morte,
Não podieis vós ter mais larga vida.

Se meus humildes versos podem tanto,
Que co desejo meu se iguale a arte.
Especial matéria me sereis;

E, celebrado em triste e longo canto (ver nota),
Se morrestes nas mãos do fero Marte,
Na memoria das gentes vivereis.

Nota: Allude o poeta naturalmente á egloga 1ª que elle reputava a melhor de quantas hnvia feito. Por agora não mais, senão que este soneto que aqui vai, que fiz á morte de dom António Noronha, decerto, o soneto acima transcripto, vos mando em signal de quanto della me pesou. Uma egloga fiz sobre a mesma matéria, a qual também trata alguma cousa da morte do príncipe, que me parece melhor que quantas fiz. (Carta 1ª). Ha outro soneto, referente á morte de dom António Noronha, que o poeta escreveu mais tarde, sob a impressão das noticias que lhe deram de quanto essa morte havia sido lastimada pela inimiga e excellente Marfida da egloga 1ª, noticias motivadas provavelmente pelas allusões desta egloga á ingratidão da antiga namorada do gentil mancebo. Nesse soneto, o poeta inveja a sorte do seu amigo, que, ao menos, moveu a piedade um peito de diamante ou de serpente. Elle, embora morra mil vezes, não poderá conseguir tal resultado!

Alma gentil, que á firme eternidade
Subiste clara e valerosamente,
Cá durará de ti perpetuamente
A fama, a gloria, o nome e a saudade.

Não sei se é mór espanto em tal idade
Deixar de teu valor inveja á gente,
Se um peito de diamante ou de serpente
Fazeres que se mova a piedade.

Invejosa da tua acho mil sortes,
E a minha mais que todas invejosa,
Pois ao teu mal o meu tanto igualaste.

Oh ditoso morrer! ditosa sorte!
Pois o que não se alcança com mil mortes,
Tu com uma só morte o alcançaste!
(Soneto 229).

Houve, porém, uma novidade que encheu de alvoroço o coração do poeta, que o deixou ancioso por voltar para Lisboa: a infanta continuava solteira; já se não realizava o projectado casamento com o herdeiro da coroa de Espanha, que, ao partir da armada para a Índia, ficava noivo da rainha Maria de Inglaterra (logo que teve noticia do fallecimento do rei de Inglaterra, Eduardo VI, occorrido em 6 de Julho de 1553, João III apressou-se a tratar do casamento da irmã com o principe Philippe, não fosse Carlos V lembrar-se de querer casar o filho com a successora de Eduardo VI, tornando assim irrealizável o velho plano de lhe dar por marido o infante Luís, plano formado quando ella ainda poucas probabilidades tinha de subir ao throno e que agora tanto sorria ao monarca português; mas já era tarde; Lourenço Távora, o homem de confiança de João III, mandado a toda a pressa á corte de Inglaterra, com minuciosas instrucções, foi ardilosamente detido em Bruxellas por Carlos V, que, por fim, lhe fez saber que a rainha Maria de Inglaterra ia casar com seu filho; agora já se appellava para a deplorável situação em que ficava a infanta dona Maria! Agora já se argumentava com a obrigaçam em que o Emperador e seu filho estavam, e penhores que tinham dado para se nam poder tratar doutro cazamento; tudo foi inútil. Carlos V respondia que, por sua parte, a nada estava obrigado, pois não tinha havido acceitação, e que a do príncipe, seu filho, fora condicional, ficara dependente da sua).
É fácil de imaginar como esta noticia melhoraria a cansada vida do poeta, como lhe daria espiritos novos, para vencer a fortuna e o trabalho. Podemos suppôr como elle, se lhe fosse possível, desejaria embarcar em alguma das naus que d'alli a poucos meses voltariam para o reino, afim de poder tornar a ver, servir e querer a bem-amada, que tão rude golpe acabava de soffrer.

… A vida cansada se melhora,
Toma espíritos novos, com que vença
A fortuna e trabalho,
Só por tornar a ver-vos,
Só por ir a servir-vos e querer-vos.
(Canção 10ª

In José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT

A Mulher de Pedra. Tariq Ali. «Tinha escutado outras histórias sobre Yusuf Pasha contadas por tias e tios pertencentes ao outro ramo da família, descendentes de um tio-avô a quem o meu pai detestava e cujos filhos nunca haviam sido autorizados a visitar-nos»

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O Verão de 1899
«(…) Então, certo ano, e sem qualquer aviso, dez mil soldados gregos mataram o seu patrono persa, fizeram os seus oficiais prisioneiros e marcharam da cidade que hoje se chama Bagdad para a Anatólia. Nada lhes fez frente. Perante isto, o povo não demorou muito a compreender que, se apenas dez mil soldados podiam fazer uma coisa destas, então, os chefes e os governantes eram desnecessários... Yusuf Pasha ainda não concluíra a sua história, mas a expressão que cobriu o rosto do sultão bastou para interromper o seu discurso. Calou-se e não se atreveu a fitar de frente aquele que era o seu senhor. Quanto ao sultão, deixara-se dominar pela raiva, levantara-se e saíra da sala de rompante. Yusuf Pasha receou o pior. Tudo o que ele tinha em mente era alertar o amigo da juventude para os perigos da indolência e da sensualidade, bem como da influência sufocante dos eunucos. Quisera recordar ao amo a lei eterna, a qual ensina que tudo é temporário. Em vez disso, o sultão escolhera interpretar a história como uma referência de mau agouro em relação à dinastia otomana. Em relação a si mesmo. Qualquer outra pessoa teria sido executada, mas é provável que tenham sido as mesmas recordações de infância a fazer com que a misericórdia acabasse por levar a melhor. Yusuf Pasha recebeu um castigo bastante ligeiro. Foi exilado de Istambul. Para sempre. O sultão não desejava viver na mesma cidade que ele. E foi assim que ele aqui veio parar com a família, a este lugar selvagem e isolado, rodeado de rochas antigas, e decidiu que seria aqui que construiria o seu palácio no exílio. Sentia muito a falta de velha cidade, mas nunca mais voltou a ver o Bósforo.
Consta que também o sultão sentiu a falta da sua companhia, sendo muitas as vezes em que desejou a sua presença. Porém, os cortesãos, que sempre haviam invejado a influência exercida por Yusuf Pasha, arranjaram maneira de fazer com que os dois amigos jamais se voltassem a encontrar. É tudo. Estais satisfeita, minha pombinha? E vós, Orhan, sereis capaz de recordar aquilo que eu disse de um dia o repetir aos vossos filhos, quando eu já não me encontrar entre vós? Orhan sorriu e fez que sim com a cabeça. Quanto a mim, mantive um rosto inexpressivo. Sabia que o meu pai se limitara a contar meias verdades. Tinha escutado outras histórias sobre Yusuf Pasha contadas por tias e tios pertencentes ao outro ramo da família, descendentes de um tio-avô a quem o meu pai detestava e cujos filhos nunca haviam sido autorizados a visitar-nos, quer aqui quer em Istambul.
Todos eles haviam contado histórias bastante mais excitantes, bastante mais reais e infinitamente mais convincentes. Contavam como Yusuf Pasha se apaixonara pelo escravo branco que era o favorito do sultão e de como ambos tinham sido descobertos quando copulavam. O escravo fora executado no mesmo instante e os seus órgãos genitais atirados aos cães que se reuniam no exterior da cozinha real. Segundo esta versão, Yusuf Pasha fora açoitado em público, sendo depois banido da corte para viver em desgraça durante o resto da vida. No entanto, talvez a versão do meu pai também correspondesse à verdade. Talvez não existisse uma só narrativa capaz de explicar o facto de o nosso antepassado ter caído em desgraça. Ou talvez ninguém soubesse qual o verdadeiro motivo, daí que todas as versões existentes fossem falsas. Talvez.
Não tinha qualquer vontade de ofender o meu pai depois de um tão longo afastamento, daí que me refreasse e não o continuasse a interrogar. Perturbara-o profundamente há muitos anos atrás, quando me apaixonara por um mestre-escola que ali se encontrava de passagem, fugira com ele, tornara-me sua mulher e mãe dos seus filhos e apreciara a poesia que ele fazia, poesia esta que agora me parece bastante má, mas que, na época, me parecia muito bela. Infelizmente, a poesia fora sempre a verdadeira profissão de Dmitri, mas o certo é que ele tinha de ganhar a vida. Fora por isso que começara a leccionar. Era a forma por meio da qual conseguia ganhar algum dinheiro e cuidar da mãe. o pai dele morrera na Bósnia a combater pelo nosso Império. Fora o tom suave da sua voz enquanto recitava os poemas por si compostos que começara por me tocar o coração.
Tudo isto teve lugar em Konya, onde eu me encontrava a passar um tempo com a família da minha melhor amiga. Fora ela quem me dera a conhecer as maravilhas de Konya. Tínhamos visitado os túmulos dos velhos reis seljúcidas e espreitado para dento das casas pertencentes às comunidades sufis. Foi aqui que me encontrei com Dmitri pela primeira vez. Na época, eu tinha dezassete anos e ele quase trinta. Eu queria escapar à atmosfera asfixiante que se vivia em minha casa. Dmitri e a sua poesia surgiram a meus olhos como a estrada para a felicidade. Fui feliz durante algum tempo, mas nunca o bastante a ponto de obscurecer a dor que sentia por haver sido banida daquela que era a casa da minha família. Sentia a falta da minha mãe, e não demorei muito a sentir saudades do conforto característico da nossa casa. Acima de tudo, sentia a falta dos verões que passávamos aqui, nesta casa com vista para o mar. Claro que eu quisera sair de casa, mas sempre de acordo com os termos por mim estabelecidos. O édito emitido pelo meu pai declarando-me uma marginal constituíra um golpe deveras rude para mim. Na época, odiava-o. Odiava a sua mentalidade limitada. Odiava o modo como ele tratava os meus irmãos, sobretudo Halil, que, qual garanhão rebelde, se recusava a ser disciplinado. Por vezes, o meu pai chicoteava-o em frente de toda a família. Eram estas coisas que me faziam odiar tanto o meu pai. Contudo, a vontade de Halil permanecia inquebrantável. O meu pai considerava-o um anarquista preguiçoso e incapaz de sentir qualquer forma de respeito, daí que se tenha mostrado verdadeiramente surpreendido quando Halil se alistou no Exército, e, graças à história da nossa família, não demorou muito a ser promovido e a assumir o desempenho de deveres a realizar no palácio». In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000, tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea, 2002/2003, ISBN 972-105-125-X.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

Camões. A Infanta dona Maria. José Maria Rodrigues. «Mas que, a ser conservado do destino. As benignas estrellas prometendo lhe estão o largo pasto de Ampelusa, co monte que em mau passo viu Medusa»

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No Oriente
«(…) A impressão que o poeta sentiu conhecemo-la pela égloga 1.ª. O seu coração de patriota sobresaltou-se com o receio de que o barbaro cultor viesse arar os campos da pátria:

E praza a Deus que o triste e duro fado
De tamanhos desastres se contente;
Que sempre um grande mal inopinado
É mais do que o espera a incauta gente:

Que vejo este carvalho que queimado
Tão gravemente foi do raio ardente;
Não seja ora prodigio que declare
Que o bárbaro cultor meus campos are.

É verdade que Umbrano responde ao seu interlocutor Frondelio:

Emquanto do seguro azambujeiro
Nos pastores de Luso houver cajados,
Com o valor antiguo, que primeiro
Os fez no mundo tão assinalados,

Não temas tu, Frondelio companheiro,
Que em algum tempo sejam subjugados,
Nem que a cerviz indómita obedeça
A outro jugo qualquer que se lhe offreça.

E, posto que a soberba se levante
De inimigos, a torto e a direito,
Não crêas tu que a força repugnante
Do fero e nunca já vencido peito.

Que desde quem possue o monte Atlante
Adondc bebe o Hydaspe tem sujeito,
O possa nunca ser de força alheia,
Emquanto o sol a terra e o ceu rodeia.

Frondelio, porém, não se mostra tão optimista e responde:

Umbrano, a temerária segurança,
Que em força ou em razão não se assegura,
É falsa e vã, que a grande confiança
Não é sempre ajudada da ventura!
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
E, se altentares bem os grandes danos
Que se nos vão mostrando cada dia,
Porás freio também a esses enganos,
Que te está figurando a ousadia.

E, mais adeante, o próprio Umbrano reproduz assim os queixumes que ouvia a uma das nymphas que, perto dum tumulo, envolviam brandamente em ricos pannos um novo infante:

Uma, que dentre as outras se apartou,
Com gritos que a montanha entristeceram,
Diz que, despois que a morte a flor cortou,
Que as estrellas somente mereceram.

Este penhor carissimo ficou
Daquelle a cujo império obedeceram
Douro, Mondego, Tejo e Guadiana,
Até o remoto mar da Taprobana.

Diz mais que, se encontrar este menino
A noite intempestiva, amanhecendo,
O Tejo, agora claro e crystallino,
Tornará a fera Alecto em vulto horrendo.

Mas que, a ser conservado do destino.
As benignas estrellas promettendo
Lhe estão o largo pasto de Ampelusa,
Co monte que em mau passo viu Medusa.

E o triste presentimento do poeta realizou-se, embora em condições differentes das que elle receava. Quando desceu ao tumulo, 10 de Junho de 1580, o maior de todos os portugueses já não tinha duvidas sobre os tristes destinos da pátria (é bem conhecida a passagem da carta que elle escreveu pouco tempo antes de morrer: assi acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado á minha pátria, que não só me contentei de morrer nella, mas com ella. Outra noticia, que profundamente feriu o coração do poeta: o seu joven e querido amigo, António Noronha, o apaixonado adorador de dona Margarida da Silva, estes amores, contrariados pela familia de António, eram tambem mal correspondidos pela formosa menina, a Silvana da egloga 4.ª. O joven fidalgo, ainda parente da família real, foi enviado para Ceuta, onde em breve encontrou morte gloriosa, havia sido morto pelos mouros, em uma emboscada, nas imediações de Ceuta, no dia 18 de Abril do anno anterior, isto é, pouco depois de o poeta haver embarcado. Eis alguns dos bellos e sentidos versos em que Camões manifestou a sua dor pelo infausto acontecimento:

Frondelio
... O grande curral, seguro e forte,
Do alto monte Atlas não ouviste
Que com sanguinolenta e fera morte
Despovoado foi por caso triste?

Oh triste caso! Oh desastrada sorte,
Contra quem força humana não resiste!
Que alli também da vida foi privado
O meu Tionio, ainda em flor cortado!

Umbrano
Em lagrimas me banha rosto e peito
Desse caso terrivel a memoria,
Quando vejo quão sábio e quão perfeito
E quão merecedor de longa historia

Era esse teu pastor, que sem direito
Deu ás parcas a vida transitória.
Mas não ha hi quem de herva o gado farte,
Nem de juvenil sangue o fero Marte».
In José Maria Rodrigues, Camões e a Infanta D. Maria, Separata do Instituto, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1910, há memória do Mal-Aventurado Príncipe Real Luís Philippe (3 1761 06184643.2), PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do AHistórico/UCoimbra/JDACT