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Viagem de Cabral
«(…) A 15 de Setembro, as seis naus
sobreviventes ancoraram ao largo de Calecut. No regimento, dado por Manuel I,
declarava-se: se os mouros e indianos fossem tão contumazes que não aceitassem
esta lei de fé e negassem a lei de paz, que se deve ter entre os homens para
conservação da espécie humana, e defendessem [impedissem] o comércio e
comutação, que é o meio por que se concilia e trata a paz e amor entre todos os
homens, por este comércio ser o fundamento de toda a humana polícia, pero que os
contratantes difiram em lei e crença de verdade que cada um é obrigado,
então usassem o gládio material e espiritual. A rota das especiarias deveria
ser aberta, a bem ou a mal.
O encontro
de Pedro Álvares Cabral com o rei de Calecut, o Samorim, ocorreu num palácio,
erguido à beira-mar, com portas de madeira esplendidamente esculpidas. Pedro,
doente, levou cozinha, copa e cama. O Samorim vestia, da cinta até ao joelho, um
pano de algodão finíssimo; o resto do corpo, nu. Nas orelhas, arrecadas de
diamantes e de pérolas. Dos cotovelos até às mãos, manilhas de ouro com
pedrarias; o mesmo nas pernas e nos dedos das mãos e dos pés. No dedo polegar
dum pé luzia um grande rubi. Do seu corpo reverberavam raios. Os perfumadores e
o cuspidor eram de ouro. Acordaram que a pimenta fosse comprada ao preço pago pelos
mercadores de Meca. O rei disponibilizou casa para a feitoria e nela se estabeleceram
o feitor Aires Correia, o franciscano frei Henrique e os seus frades. Passaram
os dias. Ninguém lhes vendia pimenta e nenhuma alma se oferecia à salvação. Os mouros
e os seus parceiros indianos tentavam liquidar no ovo a nova rota das
especiarias.
Entrou
no porto um barco de Cochim com sete elefantes de guerra. Quis comprá-los o Samorim,
os mercadores recusaram. Para agradar ao rei, Pedro Ávares Cabral lançou contra
o barco o pequeno navio São Pedro.
Nos seus seiscentos tonéis, a grande nave indiana respondeu com música e frechadas.
Os portugueses dispararam tiros de camelo que abriram no zambuco rombos ao lume
de água e renderam-no. O Samorim veio à praia felicitar os vencedores. Pedro Álvares
ofereceu-lhe o navio e os elefantes de guerra. Passaram três meses. Só havia carga
para duas naus. Um mercador mouro fez constar que tinha no porto um navio carregado
de pimenta. Os portugueses tomaram de assalto a nave vazia enquanto a multidão atacava
a feitoria. Mataram o feitor e quarenta portugueses. Escaparam vinte, muito feridos,
entre eles frei Henrique e António Correia, menino de doze anos, filho do feitor
Aires Correia.
Ao
outro dia, 17 de Dezembro de 1500, os navios portugueses tomaram de assalto as dez
naus mouras, fundeadas no porto. Roubaram-lhes as especiarias, a fazenda e três
elefantes que salgaram para comer. Ataram os pés e as mãos dos cativos e chegaram
fogo às naus. Arderam à vista da cidade, assombrada pelas chamas e pelos gritos
dos que morriam queimados. As naus portuguesas navegaram então para Cochim,
cidade inimiga de Calecut. Atraído pelo negócio, o rei autorizou a abertura de uma
feitoria. Em Cochim carregaram a pimenta; em Cananor, a canela.
Guerra
marítima, comercial e ideológica
Calecut
assumiu então a liderança contra o estabelecimento da nova rota.
Impulsionavam-na os mercadores muçulmanos e os reis indianos do Malabar. Contava
também com o apoio do rei de Cambaia, o auxílio naval e militar do sultão do Egipto
e a participação discreta de Veneza. Anualmente as naus que chegavam de Lisboa descarregavam
a artilharia sobre Calecut e roubavam e incendiavam os navios fundeados no seu porto.
Na quarta viagem, a segunda de Vasco da Gama, a doutrina era a de impor pela força
das armas o senhorio da navegação e do comércio e fechar o Mar Vermelho. Jogava-se
na divisão das pequenas cidades-estado. Em Quíloa, Vasco da Gama obrigou o rei ao
pagamento de páreas de ouro e a percorrer as ruas da cidade, bandeira
portuguesa nas mãos, aos brados: Arraial! Arraial! Por Manuel I, rei de Portugal!
No golfão
da África para a Índia encontraram a nau Meri.
Transportava trezentos mouros de Meca com as mulheres e os filhos. Roubaram a nau
e tiraram os meninos, tornados mais tarde frades jerónimos em Nossa Senhora de
Belém. Amarraram os tripulantes e os passageiros debaixo da coberta e deitaram fogo.
Os presos soltaram-se. Com a água que entrava pelos buracos abertos pelos pelouros
apagaram as chamas. As naus do Gama voltaram e atiraram tições a arder. Quando
veio a noite, metade da nau ardia, a outra metade afundava-se com o resto da carga
humana. Ao entrar no porto de Calecut, Vasco da Gama capturou cinquenta pescadores.
Da parte do Samorim veio um emissário, vestido com o hábito dum dos frades
mortos na feitoria. A culpa fora dos mouros de Meca. Vasco exigiu o pagamento
da fazenda roubada. Ao meio dia, ao sinal da sua bombarda, as naus aproximaram-se
de terra com os cinquenta pescadores enforcados nos mastros. Omito o resto». In
António Borges Coelho, Na Esfera do Mundo, Editorial Caminho, 2013, ISBN
978-972-212-642-7.
Cortesia
Caminho/JDACT